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terça-feira, 8 de junho de 2021

Pedro Nuno Santos vs. Ryanair

por estatuadesal

(In Expresso, 07/06/2021)

O ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, justificou hoje a reação às críticas da Ryanair sobre a ajuda estatal à TAP com o facto de não gostar de "deixar ofensas ao Estado português e ao Governo sem resposta".


"Eu não gosto de deixar ofensas ao Estado português e ao Governo sem resposta. Nem todos compreendem que um Estado e um Governo também têm de se dar ao respeito. Mas isso é a forma como nós cada um de nós encara a vida política", afirmou Pedro Nuno Santos à margem da apresentação do novo navio da CV Interilhas "Dona Tututa", que decorreu no Estaleiro Navaltagus, no Seixal, distrito de Setúbal.

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No passado dia 26 de maio, durante uma reunião, por videoconferência, com o ministro das Infraestruturas, o presidente do grupo Ryanair, Michael O'Leary, lamentou que o Governo português esteja a "desperdiçar" o dinheiro dos contribuintes na TAP, defendendo que deveria ser aplicado em escolas, hospitais e outras infraestruturas, como o aeroporto do Montijo, em vez de numa "companhia aérea falhada e com preços elevados".

O ministério de Pedro Nuno Santos reagiu em comunicado, nesse mesmo dia, afirmando não aceitar "intromissões nem lições" da Ryanair. Garantindo que o investimento na TAP é "estruturante", lamentou que a companhia irlandesa esteja a aproveitar-se de uma "situação difícil" e vincou que a "Ryanair é uma empresa privada e que não tem de interferir nas decisões soberanas tomadas pelo Governo português".

Já hoje, quando questionado pelos jornalistas sobre este tema, o ministro salientou que um país como Portugal "não se pode dar ao luxo de perder empresas que exportam 3.000 milhões de euros", como é o caso da TAP.

"Nós não somos a Suíça, nem a Noruega, para podermos, sem esforço, dar-nos ao luxo de perder empresas com esta dimensão. Nós somos um país com grandes dificuldades em matéria de balança de pagamentos, não podemos perder uma empresa que exporta 3.000 milhões de euros num ano normal. E é esse esforço estamos a fazer", sustentou.

Rejeitando que ao injetar capital na TAP o Governo esteja "a gastar dinheiro", Pedro Nuno Santos disse tratar-se, antes, de "um investimento numa empresa que é fundamental para a economia portuguesa e que liga Portugal ao mundo".

"A TAP é a primeira companhia aérea europeia - não é só portuguesa, europeia - a ligar a Europa ao Brasil e a mais de 10 países da África Ocidental. Este é um esforço que nós estamos a fazer conscientes de que aquilo que a TAP dá à economia nacional é muito mais do que aquilo que nós estamos a investir nela", defendeu.

Para o ministro das Infraestruturas e da Habitação, os portugueses deviam ter "mais orgulho" no seu país: "Não podemos aceitar ligeiramente que um empresário, mesmo que grande empresário, possa dizer o que quer sobre um Governo e esperar do mesmo Governo o silêncio. Isso não é um país dar-se ao respeito. Nós seremos mais respeitados no mundo se nos dermos ao respeito", considerou.

Relativamente às críticas internas, no seio do PS, quanto à forma como se dirigiu à Ryanair, Pedro Nuno Santos escusou-se a "alimentar essa discussão", afirmando apenas ser "incapaz de criticar em público um camarada". 


Ryanair: ser capacho não é estratégia económica

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 07/06/2021)

Daniel Oliveira

Não é sobre o apoio do Estado à TAP que quero escrever. Sobre esse assunto e sobre a importância da TAP para a sobrevivência de um “hub” em Portugal – sem o qual o turismo levará uma pancada brutal – já falei vezes que cheguem. É sobre o bate-boca entre o ministro das Infraestruturas e a Ryanair.

Existe a ideia de que foram as low-cost, sem qualquer intervenção política, que contribuíram para o desenvolvimento do turismo. Como se sabe, o negócio das low-cost tem uma grande componente de apoio público. Porque têm, graças aos seus preços, um grande impacto no turismo de massas, as suas rotas são fortemente subsidiadas, sobretudo na fase inicial. A Ryanair recebe apoios do Estado para voar para o Porto, Açores e Faro, por exemplo. Só no ano passado, por causa do Covid, teve 29 rotas apoiadas para o Porto – o que não a impediu de fazer cortes e despedimentos no Porto. Estes subsídios públicos a rotas comerciais, com os nossos impostos, não incomodaram o “liberalíssimo” Cotrim Figueiredo, quando dirigia o Turismo de Portugal.

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Com toda a legitimidade, a companhia irlandesa recorreu ao Tribunal Europeu para travar a ajuda à TAP. Não é caso único. Há processos semelhantes com Air France, Austrian Airlines, Finnair, KLM e SAS. A Ryanair tem sido a grande promotora destes processos e ainda este fim de semana anunciou mais um, contra o governo italiano. As decisões do tribunal têm sido diversas. No caso da TAP, o apoio está apenas suspenso e Portugal tem de o justificar.

A lei europeia não aceita que o acionista Estado seja igual aos outros. O da Ryanair pode queimar milhões para manter rotas deficitárias (é o que está a fazer), o acionista público não o pode fazer. Ou só o pode fazer se a sua empresa fosse saudável antes. É um ponto de vista ideológico – que geralmente se aplica de forma diferenciada a países periféricos e centeais – que se impôs na União Europeia sem nunca ter ido a votos. Mas o foco excessivo nas regras de concorrência europeia acaba por prejudicar a competitividade externa das empresas comunitárias. Sem estarem constrangidas pelas suicidas regras europeias, as companhias extracomunitárias, nomeadamente as norte-americanas, estão a receber grandes envelopes financeiros. No fim, vão estar mais fortes do que as nossas. Não é um problema para a Ryanair, que não concorre com elas.

O objetivo dos processos que a Ryanair vai pondo é aproveitar a crise para limpar a concorrência. É uma estratégia compreensível para uma empresa privada. Assim como é compreensível que um Estado tente impedir que isso aconteça, porque isso colocará Portugal nas mãos de interesses estratégicos que não controla. Estranho é que haja políticos portugueses que, mesmo podendo achar que salvar a TAP não seja a melhor solução, estejam disponíveis a colaborar com esta estratégia de terra queimada, que reforçará a capacidade de chantagem destas empresas exigirem dinheiro público para manterem rotas fundamentais que passarão a controlar. A Ryanair acabou de o fazer em Faro, onde as low-cost têm um grande peso. Fazem-no sempre em aeroportos que dominam.

Como é natural nas relações do Estado com empresas, o ministro das Infraestruturas pediu uma reunião com o queixoso. Não sei se o encontro teve alguma utilidade, mas, saído da reunião, a Raynair lançou um comunicado inaceitável (esse sim, pouco habitual) para qualquer Estado: “três mil milhões dos escassos fundos dos contribuintes portugueses não devem ser desviados de investir em escolas, hospitais e outras infraestruturas para subsidiar uma companhia aérea falhada”.

Perante este comunicado (e esta sequência tem sido ignorada por muitos), ele sim inusitado, Pedro Nuno Santos respondeu, também em comunicado, que "não aceita intromissões nem lições de uma companhia aérea estrangeira". E recordou que a empresa tem de respeitar a legislação portuguesa, coisa que reiteradamente se recusa a fazer, sobretudo no campo laboral, fazendo assim concorrência desleal às outras companhias a operar no país. Muita gente ficou incomodada porque, vivendo bem com os recorrentes abusos verbais de Michael O’Leary, acha que o Estado português será mais respeitado se ficar calado. Aproveitando mais este momento, e no comportamento oposto ao que tem com o seu catastrófico ministro da Administração Interna, António Costa fragilizou a posição portuguesa lançando novo ataque para dentro do seu próprio governo. O “fogo amigo” veio, desta vez, por interposta pessoa: a líder parlamentar do PS, que parece estar mais preocupada com as lutas internas no partido do que com a defesa do governo perante um ataque de um CEO de uma empresa estrangeira.

Michael O’Leary tem todo o direito a falar de apoios a concorrentes, mas extravasa o seu papel quando decide comportar-se como um jogador político nacional, comentando a política orçamental do Estado português. E mesmo no que toca aos apoios públicos, não tem grandes autoridade: a companhia já foi várias vezes condenada a devolver ajudas de Estado por essa Europa fora. Dinheiro francês ou irlandês que foi para as suas mãos em vez de ir para escolas e hospitais.

Dirão que, operando em Portugal, a Ryanair tem tudo a ver com o que se faz no país. Só que a Ryanair quer ser portuguesa nos direitos e estrangeira nos deveres. Com sede em Dublin, opera em Portugal desde 2008, mas apenas em novembro de 2018 aceitou que a lei a vigorar para os seus tripulantes baseados em Portugal fosse a portuguesa. E, mesmo assim, nunca o aceitou realmente.

Apesar de não ter sede em Portugal, a Ryanair recebeu os apoios públicos do Lay-off durante a pandemia. Para isso, é portuguesa. Mas, nas restantes relações com os trabalhadores, insiste em comportar-se como se fosse uma empresa estrangeira. Apresentou propostas ilegais aos seus tripulantes de cabine, que obrigava a abdicar dos créditos laborais anteriores a 2018, acompanhado pelo assédio laboral que sempre fez parte da cultura da empresa. A alguns trabalhadores, com mais de dez anos na casa, propôs que fossem vinculados com salário de 548€, abaixo do salário mínimo nacional em Portugal. Teve de ser condenada para pagar subsídios de férias e de Natal e por não respeitar os 22 dias de férias da legislação nacional. Apesar de receber apoios do Governo Regional dos Açores, pressionou os trabalhadores da base de Ponta Delgada a assinarem reduções salariais, perda de créditos laborais e a não-compensação pela mudança de base. Quem não aceitou viu os contratos suspensos. Nos últimos dois anos foram detetadas pela ACT 376 infrações na empresa, com 36 coimas. Mas dá lições de moral sobre quanto o Estado português paga a enfermeiros e professores, tentando que o populismo faça uma empresa conhecida pela sua selvajaria laboral parecer defensora dos direitos dos trabalhadores.

Para receber o dinheiro do Lay-off ou opinar sobre os salários pagos a funcionários do Estado, a Ryanair é portuguesa, mas quando teve uma greve em casa contactou várias tripulações com base noutros países da UE para substituírem os grevistas portugueses, chegando ao ponto de ameaçar com despedimento quem não aceitasse vir para Portugal e violando de forma grosseira a lei da greve. Quando recebe dinheiro do Estado éuma empresa em Portugal, quando há uma greve deixa de o ser.

Mas não é só com os trabalhadores que a Ryanair tem problemas. Apesar de se preocupar com os impostos dos portugueses, não se preocupa em fazer-lhes companhia. Em 2019, a Autoridade Tributária continuava a exigir que a Ryanair emitisse faturas com o número de contribuinte aos portugueses, coisa que evitava fazer. A maioria das reclamações dos clientes, que não conseguiam o que até um cliente de um café consegue, vieram dos Açores e da Madeira, por causa do subsídio de mobilidade. Há casos em que a Ryanair até conseguiu que um tribunal arbitral lhe desse razão, como a recusa em pagar IVA das raspadinhas vendidas a bordo. Para isso a empresa é irlandesa.

O estilo de O’Leary é conhecido, mas instalou-se a ideia que quem tem dinheiro nunca deve ter resposta. Quando se debatia o impacto ambiental do novo aeroporto do Montijo, que a Ryanair exige que seja imediatamente construído com o dinheiro dos outros, o presidente da Ryanair disse que tinha a solução: "É só pegar em duas shotguns e o problema dos pássaros resolve-se". Há quem acredite que a subserviência traz investimentos. Se existirem negócios em Portugal, a Ryanair ficará, diga o ministro o que disser. Ser capacho não é uma estratégia económica. É um mau hábito de que os investidores abusam. 

 As Odemiras dos bairros de Lisboa

Posted: 07 Jun 2021 04:00 AM PDT

 


«Há umas semanas, o país encolhia-se de horror perante as imagens de miséria que chegavam de Odemira. A indignação tolheu governo e deputados e nenhum responsável, político ou outro, deixou de lado a opinião alimentada pela consciência de que o caso dos imigrantes a viver em condições sub-humanas não podia admitir-se. Houve quem lembrasse que não era caso único nem sequer recente, enquanto a maioria rasgava as vestes e declarava a situação insuportável.

Como todos os outros, o caso de Odemira passou, ao fim de uns dias, de assunto de Estado a palha para engordar a longa lista de temas que queimam e se extinguem demasiado depressa - como os horrores vividos pelos moçambicanos às mãos de jihadistas, o descontrolo nas festas dos adeptos de futebol, a marquise de Cristiano Ronaldo e outros temas que por diferentes motivos despertam a indignação coletiva. Raras vezes duram tempo suficiente para encontrar responsáveis e soluções. Antes servem de combustível para alimentar causas próprias.

Sobre Odemira, disse Fernando Medina no seu espaço de comentário semanal que muito daquela história se contava pelo "desequilíbrio ambiental e dos serviços" - educação e saúde - e que "o ideal seria nunca ter deixado crescer a agricultura intensiva ao nível que cresceu". Porque, naturalmente, a avidez de produzir mais e mais, e a falta de portugueses que queiram trabalhar nos campos, combinadas com a deficiente fiscalização, haviam resultado naquela situação indizível.

Há, porém, outras Odemiras. E a muitas não pode apontar-se o crime da agricultura. Como aquela que se desenvolve debaixo do nariz do presidente da câmara de Lisboa, empurrando dezenas de nepaleses, bangladeshianos, senegaleses, guineenses e outros imigrantes que aqui chegam com parcos meios e ainda menos perspetivas para se alojarem em quartos de 15 metros quadrados. Divisões cortadas a pladur em que partilham o espaço à meia dúzia, a pagar mais de 100 euros por uma cama e tempo limitado de casa de banho. É o que têm de fazer para conseguir trabalhar nas mercearias e lojas de souvenirs que vão sobrevivendo à pandemia e garantir que o pouco dinheiro que fazem vai chegando às suas famílias, lá longe.

Também em Lisboa o problema não é novo ou desconhecido: foi identificado num estudo completado há uma década. Mas pouco se alterou nesta que é cada vez mais a realidade de bairros como a Mouraria, o Martim Moniz, o Intendente. Nem foi atalhado há um ano, já em tempos de pandemia, quando a polémica do dia eram as 170 pessoas retiradas de um desses edifícios, em plena Morais Soares, tendo 136 delas acusado positivo para a covid. Ou quando nos assaltaram dezenas de casos semelhantes por toda a cidade, prédios sobrelotados, sem condições, recheados de imigrantes a depender da ajuda de associações locais - que apontam para mais de um quarto dos estrangeiros em Lisboa a viver nessas condições. Para esses, não há alojamento digno à vista. Tão-pouco uma daquelas 6 mil casas prometidas por Medina há quatro anos, a renda comportável por quem não tem hoje acesso à cidade (parte delas chumbadas pelo Tribunal de Contas, menos de 400 feitas).»

segunda-feira, 7 de junho de 2021

  O governo e os britânicos

Posted: 06 Jun 2021 04:28 AM PDT


 

«Quando tudo corre bem, o mérito é do trabalho de casa bem feito pelo Governo. Quando corre mal, a culpa é das avaliações "intempestivas" e com "falta de lógica absoluta" do Executivo de Boris Johnson, ficando por explicar a incapacidade de negociação e diálogo prévio sobre decisões que apanham o país de surpresa.

No que toca ao turismo e à oportunidade que acaba de ser perdida por Portugal, é difícil ao Governo explicar o óbvio: como quer puxar dos galões quando entramos na lista verde do Reino Unido, mas evita assumir responsabilidades sempre que acontece o inverso.

Politicamente, a decisão de manter a matriz de risco foi ajustada ao objetivo de colocar pressão sobre o controlo dos números, transmitindo uma mensagem externa de rigor e segurança. Mas imagens como as que circularam da final da Champions não enganam. Aglomerados descontrolados de adeptos sem máscara não suscitaram apenas críticas internas, sendo difícil calibrar um discurso exigente perante tantas oscilações.

Os números e factos não chegam para se fazer caminho. Desde logo porque é cada vez mais difícil reunir consensos numa altura em que tantos reclamam uma alteração dos critérios para desconfinamento. E sobretudo porque as perceções contam quase sempre mais do que a realidade em si mesma. As mensagens contraditórias sobre a Champions ou sobre os santos populares dificultam a tarefa de conseguir que os portugueses entendam os objetivos e se mantenham unidos em torno deles.

Sete países europeus têm já em funcionamento o certificado digital covid. Garantido que está o princípio de não discriminação de não vacinados, com as regras clarificadas e concertadas ao nível da União Europeia, é preciso assegurar com urgência a concretização deste processo em Portugal. Essa será a única forma de não ficar dependente de negociações parcelares, ou de mercados restritos, normalizando gradualmente o turismo. Dependemos muito dos turistas britânicos, claro. Mas não podemos apostar todas as fichas num tabuleiro. Muito menos quando não temos capacidade negocial para provar que somos capazes de manter as portas abertas.»

 

Psiquiatra de férias

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 04/06/2021)

José Gameiro

Confesso que quando me perguntam, naquelas visitas em grupo a algum local turístico, o que é que faço na vida hesito em dizer que sou médico e muito menos psiquiatra. Não se trata de vergonha, mas antes de ter sossego... Assim livro-me de ouvir aquela frase frequente, temos de ter cuidado com o que dizemos porque ele pode adivinhar o que pensamos.

A confusão entre os psiquiatras e os bruxos, pelos vistos, mantém-se. Nem sempre a resposta que dou é bem aceite, depende do sentido de humor dos interlocutores. Não se preocupem, estou de férias e só trabalho se me pagarem. Mas apesar de esconder a profissão, já me aconteceu um pouco de tudo. Crises psicóticas, tentativas de suicídio, perdas de conhecimento, ataques de pânico.

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Não era uma viagem em grupo. Só uns raros contactos com gente que falava inglês ou francês, nos hotéis. Começou em Hanói. Decidi, em vez de viajar de avião para Saigão, hoje Ho Chi Minh, fazê-lo de comboio. O chamado Expresso de Reunificação une as duas cidades, numa longa viagem de mais de 24 horas. Parecia prometedor. Uma carruagem-cama, básica, mas confortável a um preço irrisório, garantia de bom arroz a todas as refeições. Na estação de Hanói uma jovem canadiana pediu-me ajuda para comprar o bilhete, não se entendia com o funcionário. Acabou por ficar no compartimento ao nosso lado. Lá veio a pergunta sacramental. O que é que fazíamos na vida? Não lhe menti.

Mal o comboio arrancou encontrei-a no corredor a chorar. Era a história clássica, mas muito dolorosa, da viagem para esquecer um desgosto de amor. Dentro das sub-histórias deste tipo, também uma clássica. Paixão por um homem casado, mais velho, dois anos de relação com constantes promessas de abandonar a mulher e “subitamente” a senhora engravida e agora é que não posso sair de casa. Raiva, tristeza, ideias de suicídio, viagem para o outro lado do mundo, para tentar esquecer. Penso que terá sido a “consulta” mais longa da minha vida. A noite inteira a tentar apaziguar a mágoa de quem não conseguiu ver o que lhe foi acontecendo. Amiga para a vida, ainda hoje mantemos o contacto e está bem.

Mas o mais complicado estava para vir. Chegado a Ho Chi Minh, vieram logo à memória as recordações do fim da guerra e o tristemente célebre abandono dos americanos pelo telhado da embaixada. Visita obrigatória é o Museu dos Vestígios da Guerra, anteriormente denominado Casa de Exposições para Crimes de Marionetes e Americanos. É um hino à vitória, omitindo o morticínio que praticaram depois de entrarem na cidade, com a execução de muitos que tinham lutado contra o Vietname do Norte. Um dos ícones turísticos da cidade são as centenas de quilómetros de túneis, ao seu redor. Com entradas disfarçadas na vegetação, albergavam infraestruturas básicas para a guerrilha, incluindo pequenos hospitais. As tropas americanas e do Vietname do Sul nunca conseguiram ter a topografia completa da rede e sofreram pesadas baixas nesta zona.

Os guias divertem-se a demonstrar que a maior parte dos ocidentais não consegue lá entrar, pela pequena dimensão dos seus acessos. Mas há túneis “turísticos”... Foi num destes, com um corredor de cerca de 50 metros, que tudo aconteceu. À minha frente uma inglesa relativamente bem nutrida, parou de repente e começou a gritar. Vou morrer, vou morrer. E sentou-se no chão, ofegante e alagada em suor. Não era preciso ser psiquiatra para perceber que estava com um ataque de pânico. Impossível voltar para trás, pelo menos mais dez turistas nos seguiam.

Sentei-me atrás dela e comecei a conversar. Que não havia problema, mais uns dez metros e já se veria a luz do dia. Nada. Só chorava. Estivemos assim uns dez minutos, uma eternidade. Atrás de mim outros começavam a hiperventilar. Sem outra solução resolvi dizer-lhe que era psiquiatra. Pediu-me a mão, não chegava à dela, mas agarrei-lhe o tornozelo, lá foi até à saída. Nessa noite jantámos no melhor restaurante de Ho Chi Minh, o Cuc Gach Quan. Que inglesa tão polite...