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quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A fadiga tem muitas faces

Posted: 29 Nov 2020 04:19 AM PST

«A OMS alertou para a subida da fadiga pandémica que pode atingir até 60% dos membros de certos grupos, traduzida por uma apatia que faz baixar a guarda e desleixar as estratégias preventivas.

Comparemos Primavera e Outono, o rebentar da flor e o cair da folha. Alguém defenderá que a chegada da pandemia e o confinamento que se seguiu foram fáceis de digerir? Mas o discurso oficial e o nosso desejo construíram um cenário a prazo, "sofra agora e ressuscite depois, mesmo que não saibamos definir o novo normal". Os profissionais de saúde eram guerreiros que teriam o merecido repouso, poucas vozes e testemunhos se levantavam contra a narrativa de "todos no mesmo barco", os avisos sobre uma segunda vaga outonal não estrangulavam a satisfação pelos nascentes dias de sol ou a esperança de a sentir "apenas" como uma réplica do terramoto inicial.

E ela veio. Surpreendentemente, até os que para ela nos tinham alertado se declararam... surpreendidos! O que não tranquilizou as pessoas, sobretudo porque foi evidente que algumas das (boas) medidas tomadas deveriam ter sido planeadas durante o período estival e a outras faltava coerência ou explicação clara. A fadiga regressou, mas era diferente. A seguir ao Outono chegará o Inverno, que não costuma ser meigo em termos de saúde. O túnel parece mais longo e a luzinha que lhe decreta o fim mais periclitante. O cansaço e alguma banalização do risco partilham a boca de cena com o desespero de muitos, que temem por emprego, negócio, habitação; futuro.

A tolerância sofre de anemia. Tomemos uma frase do PM: "Se os portugueses estão cansados, imaginem os profissionais de saúde". Ouvi alguns comentarem que não aspiram a ganhar o campeonato do cansaço, mas a ter melhores condições de trabalho; e profissionais de outras áreas murmurarem que preferiam estar exaustos e não a caminho da falência.

A fadiga tem muitas faces, a agressividade é uma. Não me refiro a indivíduos ou grupos que aproveitam o clima pesado para alimentarem agendas políticas. Falo do cidadão comum - mais triste, sedento do toque, apreensivo quanto ao futuro, namorando a contragosto a solidão.

Velha frase reaparece, "ando com os nervos à flor da pele". Receio que neste momento nos assemelhemos a cactos, espinhos e flores coabitam, mas tendem a ser os primeiros a vir à porta. Recomendo mezinha caseira - abrir sorriso e mãos, o Outro saberá que vimos em paz e aceitará o respectivo cachimbo.

Mas para muitos portugueses o Outro não tem rosto, chama-se desemprego, precariedade ou pobreza e exibe a sensibilidade de um rolo compressor. A revolta enrouquece nas ruas e volta para casa de mãos a abanar. Esse, é o verdadeiro cansaço que não conseguimos imaginar.»

Júlio Machado Vaz

O injector castigado

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 27/11/2020)

Cito uma mensagem do diretor do Sector Golden Sping, Campo de Kudinov, para o diretor-geral das Minas.“De acordo com o seu pedido de explicações para a paragem de seis horas da quarta brigada de prisioneiros, no sector das minas de ouro, passo a reportar. A temperatura do ar, de manhã, era de 60° negativos. O nosso termómetro foi quebrado pelo supervisor, no entanto, foi possível medir a temperatura, porque uma cuspidela gela, antes de cair no chão. A brigada chegou a horas ao trabalho, mas não conseguiu trabalhar, porque o injetor de água quente, que aquece o solo, recusou-se a funcionar. Avisei diversas vezes o engenheiro da manutenção que o injetor já estava a operar mal, mas não foram tomadas medidas. O engenheiro recusa substituí-lo por um novo. Os trabalhadores ficaram parados muitas horas, sempre ao frio, porque não foram autorizados a fazer fogo de chão, nem a regressar às barracas. Escrevi a todas as autoridades, desde há cinco anos, esclarecendo que não podia continuar a trabalhar com um injetor destes. O engenheiro chefe não liga nenhuma e exige que a produção se mantenha.”

Resposta do diretor de Minas.“Por se recusar a trabalhar mais de cinco dias e causar uma quebra da produção do sector, o prisioneiro Injetor deve ser detido durante 72 horas e não deve ser autorizado a ir trabalhar. Será colocado num pelotão com tarefas, em condições intensivas. O caso deve ser investigado. Irei notificar o engenheiro chefe de que há uma ausência de disciplina na produção. Recomendo a substituição do prisioneiro Injetor, por outro trabalhador.”

Estas mensagens são da obra “Contos de Kolimá”. O autor foi o escritor russo Varlám Chalámov, que cumpriu pena, por duas vezes, no total de 20 anos, a trabalhar 16 horas por dia, em minas de carvão e de ouro. Foi detido uma primeira vez por imprimir panfletos contra Estaline e uma segunda, mais longa, por atividades trotskistas, contrarrevolucionárias, sendo então enviado para a região de Kolimá, na Sibéria. Quando regressou a Moscovo começou a escrever os “Contos”, num total de duas mil páginas, publicados em seis volumes.

O absurdo do injetor que é detido não é, obviamente, suficiente para mostrar a violência da vida no Gulag. Muito menos para revelar a violência institucional que a raça humana, quando tem poder discricionário, é capaz de exercer sobre os seus. Mas serve para exibir a subserviência e a cobardia de quem, provavelmente, para salvar a pele e ter algumas benesses, é capaz de mandar prender uma peça mecânica, tão habituado a deter tudo e todos.

Muito se investigou sobre os limites de um grupo de pessoas, dirigentes e não dirigentes, nas suas capacidades de prender, torturar, matar e mandar matar. A Alemanha nazi, a União Soviética e os Balcãs, mais recentemente, foram os “laboratórios”, onde se tentou compreender até onde, em determinados contextos políticos, a raça humana é capaz de ir, na sua agressividade. Quando se pretendem justificar os Gulags, com as melhorias do nível de vida de um povo, usando a velha frase ‘os fins justificam os meios’, estão a tentar branquear-se os assassínios em massa, em zonas de oposição ao regime, assim como as execuções seletivas de possíveis concorrentes de Estaline.

Com o declínio da importância das humanidades e a instauração do capitalismo desregulado, iniciado por Reagan e Thatcher, o fosso entre ricos e pobres aumentou. E também se cometeram muitas atrocidades, em nome da democracia. Mas apesar desta evolução, nunca, nos países ocidentais, o essencial dos direitos fundamentais foi posto em causa. Não matamos e não prendemos injetores... De vez em quando, convém relembrar.

O que pode o mundo aprender com a pandemia do Covid-19

por estatuadesal

(Martin Wolf, in A Viagem dos Argonautas, 27/11/2020)

A coisa mais importante que aprendemos com o Covid-19 é quanto dano pode ser causado por uma pandemia relativamente suave se tivermos em conta padrões históricos de longo prazo. Chamar-lhe suave não é depreciar o sofrimento que tem causado, e continuará a causar, antes que um programa de vacinação eficaz seja lançado e sustentado globalmente. Mas o Covid-19 tem demonstrado uma vulnerabilidade social e económica muito maior do que os especialistas imaginavam. É importante compreender por que razão é assim e aprender a gerir melhor o impacto de tais doenças no futuro.

Num artigo recente, David Cutler and Lawrence Summers de Harvard estimam o custo total do Covid-19 só para os EUA em $16 milhões de milhões. Isto equivale a 75% do produto interno bruto anual dos EUA. Quase metade disto é o valor cumulativo do PIB perdido estimado pelo Gabinete do Orçamento do Congresso. O resto é o custo da morte prematura e da deterioração da saúde física e mental, de acordo com os valores habitualmente utilizados para as grandes economias mais ricas do mundo. O custo total é, segundo eles, quatro vezes superior ao da recessão após a crise financeira de 2008. Se o custo para o mundo fosse também de 75% do PIB anual, seria de cerca de $96 milhões de milhões, a taxas de câmbio de paridade do poder de compra. Isto é quase de certeza uma sobrestimação. Não obstante, o custo é enorme.

Até agora, o número global de mortos do Covid-19 está estimado em 1,4 milhões de pessoas. As mortes estão agora a um pouco menos de 10.000 por dia ou cerca de 3,5 milhões por ano. Se isto se mantivesse, as mortes acumuladas durante os dois primeiros anos poderiam atingir perto de 5 milhões, ou pouco mais de 0,06 por cento da população global. Para colocar isto em contexto, a gripe espanhola, que surgiu em 1918, durou 26 meses e custou entre 17 e 100 milhões de vidas, ou entre 1 e 6% da população global de então. Um número de mortes comparável para o Covid-19 seria hoje entre 80 milhões e mais de 400 milhões. Algumas pandemias, nomeadamente a Peste Negra no século XIV, foram muito mais letais mesmo do que a gripe espanhola.

Um relatório de 2006 do Gabinete de Orçamento do Congresso (GOC) defendeu que “uma pandemia envolvendo uma estirpe de gripe altamente virulenta (como a que causou a pandemia em 1918) poderia produzir um impacto a curto prazo na economia mundial semelhante em profundidade e duração à de uma recessão média do pós-guerra nos EUA”. Mas a gripe espanhola matou cerca de 675.000 americanos de uma população de apenas 103 milhões na altura. Isto equivale a mais de 2 milhões de habitantes hoje em dia. Se o GOC tivesse razão, o impacto económico desta pandemia deveria ter sido muito menor do que tem sido.

Um estudo semelhante para a Comissão Europeia, também publicado em 2006, concluiu que “embora uma pandemia tivesse um enorme impacto no sofrimento humano, muito provavelmente não constituiria uma ameaça grave para a macroeconomia europeia”. Esta conclusão estava bastante errada.

Por que razão, então, os prejuízos económicos de uma pandemia tão ligeira em termos comparativos têm sido tão grandes? A resposta é: porque poderia ser. As pessoas prósperas podem facilmente dispensar uma grande proporção das suas despesas diárias normais, enquanto os seus governos podem apoiar as pessoas e empresas afetadas em grande escala. Isto é também o que as pessoas esperam dos governos. A resposta à pandemia é um reflexo das possibilidades económicas e dos valores sociais atuais, pelo menos nos países ricos. Estamos preparados para pagar um vasto preço para conter as pandemias. E podemos fazer muito melhor do que antes.

Alguns defendem que os métodos escolhidos, nomeadamente os confinamentos não discriminatórios, têm sido largamente responsáveis por estes enormes custos económicos. Em vez disso, sugerem que a doença (e, portanto, os doentes) deveria ter sido deixada a vaguear livremente, procurando ao mesmo tempo proteger apenas os vulneráveis.

Isto é muito questionável. Uma razão é que quanto maior for a incidência da doença, mais pessoas estarão determinadas a protegerem-se a si próprias, um aspeto referido nas últimas Perspectivas Económicas Mundiais do FMI.

A experiência atual, em oposição às análises de custo-benefício de alternativas teóricas, reforça ainda mais a necessidade de suprimir totalmente a doença, sempre que possível. Um artigo recente do Institute for New Economic Thinking, To Save the Economy, Save the People First, sugere porquê. Um gráfico (reproduzido aqui) mostra que os países seguiram duas estratégias: a supressão, ou a arbitragem entre mortes e a economia. De um modo geral, o primeiro grupo tem feito melhor em ambos os aspetos. Entretanto, os países que sacrificaram vidas tenderam a acabar com uma elevada mortalidade e elevados custos económicos.

Agora, no meio de uma segunda vaga de infeções e confinamentos na Europa, a incapacidade de persistir até que terem alcançado o controlo total sobre o vírus na primeira vaga parece um grande erro. Evidentemente, testes eficazes, rastreio e quarentena seriam todavia melhores. Mas isso é impossível se as taxas de infeção estiverem próximas dos níveis recentes.

Ainda temos muito a aprender com o Covid-19, e devemos fazê-lo, porque a próxima pandemia pode ser muito mais letal do que esta. Entretanto, temos de procurar escapar à atual catástrofe tão bem e o mais rapidamente que for possível. Isto exigirá um elevado nível de cooperação global.

Embora os custos da pandemia tenham sido bastante extraordinários, assim, felizmente, tem sido a resposta científica. Agora as vacinas devem ser produzidas e distribuídas em todo o mundo. Um passo importante é que todos os países, incluindo os EUA, se juntem à Covax, a iniciativa de fornecer vacinas em todo o mundo. Os desafios globais precisam de soluções globais.

O Covid-19 tem sido um choque económico muito mais devastador do que os economistas esperavam. Esta é uma enorme lição. Uma doença ainda mais virulenta é perfeitamente concebível. Da próxima vez, temos de suprimir a nova doença muito mais rapidamente. Muitos agora tagarelam sobre a liberdade. Mas a segurança do povo deve continuar a ser a lei suprema da política, agora e para sempre.

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Publicado por

em 24/11/2020 (ver aqui), tradução de Francisco Tavares.

O autor: Martin Wolf (1946-) é um jornalista britânico que se concentra na economia. É o editor associado e comentarista-chefe de economia do Financial Times. Bibliografia: The Shifts and the Shocks: What We’ve Learned—and Have Still to Learn—from the Financial Crisis (Penguin Press 2014), Fixing Global Finance (The Johns Hopkins University Press 2008), Why Globalization Works (Yale University Press 2004), The Resistible Appeal of Fortress Europe (AEI Press 1994).

Nós, heróis da preguiça...

Posted: 28 Nov 2020 02:53 AM PST

«A autoridade governamental da Alemanha para a saúde pública fez recentemente uma campanha, exortando os jovens a ficar em casa, difundindo um vídeo que tem circulado com grande sucesso no mundo inteiro. Nele, surge um actor de idade avançada, falando do modo como viveu, no Inverno de 2020, quando era jovem, uma segunda vaga da pandemia de Covid-19. Ele situa-se, portanto, num tempo projectado no futuro e é a partir desse lugar que dá o seu testemunho: naquele tempo já longínquo de 2020, quando tinha 22 anos e era estudante de engenharia em Chemnitz, comportou-se como um herói, num momento em que o destino do país “estava nas nossas mãos”. O seu heroísmo consistiu em cumprir escrupulosamente esta regra: “a única coisa a fazer era ... NADA” (transcrevo assim, com as reticências, um momento de suspensão da fala, a preparação para pronunciar um “nada” enfático). Dá-se então um corte, muda-se de plano, e vemos um jovem entregue à preguiça, estendido num sofá e a beber refrigerantes.

O apelo à preguiça, à coragem heróica de não fazer nada, é coisa estranha num país como a Alemanha. Parece o mundo às avessas. Podemos ver neste vídeo um sinal de que há coisas que nunca mais serão como dantes. E uma delas é provavelmente o fim da economia, ou melhor, do processo de colonização que ela exerceu no espírito mais profundo da nossa época e que nos fazia ver tudo sob o prisma da economia. É verdade que o fim da economia já tinha sido anunciada por quem, deslocando-se para uma escala infra-económica, tinha tirado lições muito categóricas da esquizofrenia generalizada que caracteriza o capitalismo contemporâneo e tinha percebido que a própria economia se vira contra si própria.

Já não conseguimos ouvir com reverência, nem sequer com paciência, as previsões de crescimento económico e outros dados quantificados até às décimas para o próximo ano. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamou Valéry num célebre texto sobre a “crise do espírito” escrito no final da Primeira Guerra Mundial. Agora, depois de termos assistido a uma impensável e impensada interrupção do funcionamento da economia, e quando até no país de Max Weber se fazem apelos à preguiça ambiguamente irónicos (porque se fossem para ser interpretados de maneira completamente literal não seriam levados a sério), toda a fé no edifício do homo oeconomicus sofreu um abalo que torna muita coisa, neste plano, irreversível. Mesmo que tudo, no domínio económico, se recomponha (e não há dúvidas de que muito está a ser feito para isso, até porque era mais fácil ser anti-capitalista antes desta crise do que agora), a nossa fé entrou em colapso: nós, filhos e netos das relações económicas, sabemos agora que em qualquer momento sobrevêm outras determinações, fazendo ruir o belo edifício e as suas representações ideológicas porque todos percebemos que há algo errado na economia, mesmo se a nossa vontade é a de restaurar a ordem regida por ela.

Há domínios em que a descrença instalada ou em vias de instalação não provoca perigos imediatos. Mas quando assistimos a uma escalada, às claras, sem qualquer pudor, de um modelo de ciência empresarial, como está a acontecer com as vacinas contra o novo coronavírus, há boas razões para ficarmos não apenas desencantados, mas também assustados. Quem não sabia já, ficou agora a saber o que é a luta pela conquista do mercado pela indústria farmacêutica. Temos assistido a um espectáculo nunca visto (não porque não estivesse em cena, mas porque os seus palcos estavam mais escondidos) da captura e da instrumentalização da ciência para fins económicos e políticos. Médicos e cientistas convertidos ao populismo, reivindicando a condição de “stars”, lutas pela autoridade científica através de meios alheios às regras do campo científico: a par do populismo político, de que tanto se fala, há outros populismos que não atraem tanto a atenção, tais como o populismo médico, o populismo científico (uma contradição nos termos) e um populismo mediático que está tão normalizado que já nem o nomeamos. Nós, leigos e mortais, sabemos agora que é quase impossível organizar uma discussão racional.»

António Guerreiro

A quem estamos entregues?

Posted: 27 Nov 2020 02:15 PM PST

«(Declaração de interesses: tenho 76 anos e devo admitir que o choque pessoal que me causaram as notícias de hoje possa influir neste escrito. Tentarei evitá-lo)

A notícia do dia é a de um plano estratégico de vacinação contra a covid elaborado por um grupo não identificado da DGS e apresentado por Graça Freitas numa reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública. Antes de o comentar, deixo a minha perplexidade pelo processo. O governo nomeou um grupo de missão para a vacinação, que, dentro de um mês, terá de apresentar um plano de que consta, obrigatoriamente, a estratégia, com a definição de prioridades e do escalonamento por fases de vacinação. Sendo assim, o que levou Graças Freitas a este enorme erro político, com óbvias consequências na opinião pública, de apresentar à discussão um plano chocante e polémico, prematuro e à revelia das competências do grupo oficial de trabalho, e que o próprio primeiro ministro, como veremos adiante, já teve de vir fazer a “reparação de danos”?

Já depois das primeiras notícias, veio o Ministério da Saúde esclarecer que a estratégia de vacinação ainda não foi discutida com a tutela e que as informações vindas a público estão incluídas num documento meramente técnico e são parcelares e desactualizadas. Mas o mal já está feito e é, a meu ver, o erro mais grave de todos os já cometidos pela DGS.

O plano é chocante, absurdo e, pelo que pude estudar hoje, duvidosamente baseado em evidência científica. Quase que é caso para se exigir a identificação, para memória futura, dos seus autores.

A opção mais surpreendente é a de não considerar como prioritário o grupo etário dos mais de 70 anos (ou 75, o que vem a dar quase no mesmo). Desde o início da pandemia que sempre foi considerado como um grupo a proteger e a quem era recomendado o cuidado de se resguardarem no domicílio, tanto quanto possível. Muito bem. Note-se que não são de risco só por sofrerem mais frequentemente de comorbilidades; a idade é um fator de risco, em si mesma.

Agora, diz a DGS que as informações das farmacêuticas e da EMEA não apresentam evidência a favor da vantagem da vacinação dos maiores de 75 anos. Podia dizer-se que pode ser mais um caso de diferença entre “não evidência de que” e “evidência de que não”. Mas é mais. Não consegui confirmar essa informação. Pelo contrário, o que li sem margem para dúvidas, por parte da Pfizer, da Moderna e da AstraZeneca, é que as suas vacinas são eficazes em todos os grupos etários.

Há prioridades no plano que são indiscutíveis: o pessoal e utentes dos lares e o pessoal dos serviços de saúde. Note-se que nos utentes dos lares não haverá distinção de idades, apesar da tal alegada ineficácia da vacina nos mais idosos, que são a esmagadora população dos lares.

Neste primeiro grupo incluem-se também cerca de 250000 pessoas entre 50 e 75 anos com insuficiência cardíaca, respiratória e renal. Não se conta com os diabéticos e hipertensos descompensados, que são muito mais numerosos e que só virão no último escalão de prioridade. Até agora, a percentagem de mortes no escalão etário 50-70 anos é de cerca de 12%, sendo os restantes 88% de idade superior a 70 anos. A vacinação dos primeiros, no caso de todos os tais 250000 poderem ser infetados, evitará, portanto, cerca de 30000 mortes, teoricamente. A vacinação dos maiores de 75 anos (cerca de 1,7 milhões, 16,3% dos portugueses), mesmo que neste caso, por exercício de argumento, a eficácia da vacina seja de 60%, protege cerca de 1,5 milhões de pessoas, nas mesmas condições teóricas (possibilidade de todos serem infetados). Ao que parece, as únicas contas que este plano fez, numa perspetiva estritamente médica e insensível a considerações éticas e de saúde pública global, baseiam-se no facto de a maioria dos internados em cuidados intensivos serem doentes entre os 50 e os 70 anos com comorbilidades graves. Mas pode ser este o critério principal, por muito que preocupe os médicos intensivistas? De entre os 4276 mortos, no total, e do excesso de mortes não relacionadas diretamente com a covid, que percentagem representam os mortos em UCI?

Já agora, um aspeto porventura menor. Vão ser vacinados prioritariamente 45000 membros das forças de segurança. Qual é, até agora, a incidência e a mortalidade covid neste setor? Tem afetado significativamente a função das forças de segurança? No meio de tanto disparate, nem me tranquiliza o facto de isto se dever a um erro exclusivo da DGS. As primeiras declarações de Francisco Ramos, responsável pelo grupo agora nomeado pelo governo, não mostram desmarcação em relação a este plano, embora ainda não saibamos o que vai ser o plano definitivo do grupo.

Fica ao menos alguma esperança no discernimento político de António Costa, que hoje já veio pôr água na fervura, afirmando que "as vidas não têm prazo de validade” e que "há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos”. Oxalá. E porque estão calados todos os outros responsáveis políticos e partidários? Já se deviam estar a ouvir os clamores.

P.S. - E também Marcelo. “É de presumir que as pessoas responsáveis não tenham ideias tontas”.»

João Vasconcelos-Costa, médico virologista, no Facebook (27.11.2020, 17:00)