6 ago 2018 17:37
Opinião
4 comentários
A opinião de
José Couto Nogueira
No Zimbábue, as primeiras eleições sem Mugabe vão mudar algumas coisas, para que tudo fique mais ou menos na mesma.
Para os adultos antes de 1980, o Zimbábue não existia: falávamos então nas Rodésias, colónias fabricadas por Cecil Rhodes precisamente cem anos antes, para criar uma faixa ininterrupta britânica entre o Norte e o Sul do continente africano. Rhodes foi um dos impulsionadores da ideia de um caminho de ferro britânico que ligasse o Cairo, no Egipto, à Cidade do Cabo, na África do Sul, projecto nunca concretizado mas que mudou a forma de olhar para África. As ideias de Rhodes foram também matéria-prima para a discussão do chamado “mapa cor de rosa”, que amargou a vida portuguesa no final do século XIX. Mas isso é outra história.
Na década de 1950, o Norte e o centro tornaram-se independentes, com os nomes de Zâmbia e Malawi. Mas os colonos da Rodésia do Sul - o actual Zimbabué -, que praticavam uma agricultura muito rentável, não estavam dispostos a dividir o poder com as 16 tribos do seu território e declararam unilateralmente a independência. Foi a primeira vez, desde a independência dos Estados Unidos em 1776, que uma colónia se separou à força da Grã-Bretanha. Os ingleses protestaram mas nada fizeram e a ONU limitou-se à condenação da praxe.
Os colonos da Rodésia do Sul , dirigidos por Ian Smith, aguentaram bem a antipatia internacional (embora apoiados abertamente por Portugal e pela África do Sul) mas não conseguiram dominar a sublevação de dois partidos africanos, o ZAPU e o ZANU. Seguiu-se uma guerra civil selvagem. Para abreviar uma longa e sangrenta história, em 1980 Robert Mugabe, um professor da classe média africana que se tornou líder do grupo independentista ZAPU, assumiu o poder como Presidente a assinou um acordo com os colonos, segundo o qual eles não tinham qualquer poder político mas podiam conservar as suas terras.
É graças a Mugabe, e pelas piores razões, que o Zimbabué reaparece esporadicamente no noticiário internacional. Primeiro, o ZAPU, agora rebaptizado Zanu-PF e amalgamado com as forças armadas, colou-se que nem lapa ao poder e criou uma ditadura brutal, mal disfarçada com oito eleições em que Mugabe inevitavelmente ganhava e os opositores fatalmente desapareciam. Depois, resolveu expropriar as quintas dos brancos e dá-las aos ex-combatentes do ZAPU, que estavam pouco interessados em explorá-las. O resultado foi que o país, além de dirigido com mão de ferro, deixou de poder alimentar a sua população. Mugabe, hoje com 94 anos, tornou-se o símbolo do ditador africano violento e incompetente, e com razão: foi o presidente em exercício com mais longo tempo no poder em África e o Zimbábué caiu na extrema miséria. Em 2002, o país foi expulso da Commonwealth.
Em 2008, o único opositor de Mugabe com algum peso, Morgan Tsvangirai, conseguiu quase 50% de votos nas eleições e por algum tempo o ditador viu-se obrigado a fazer um acordo de partilha que não cumpriu. (Tsvangirai morreu de cancro o ano passado. Anos depois da eleição de 2008, Mugabe descair-se-ia ao reconhecer que o opositor tinha obtido 73% dos votos.)
Não podendo ser deposto por nenhuma oposição, Mugabe acabou derrotado pelos seus próprios apaniguados. Em 2013 começou a promover a sua segunda mulher para sucessora. Grace Mugabe, sul-africana, nascida em 1965, é conhecida no país como Gucci Mugabe, pelo seu hábito de ir à Europa gastar fortunas em compras, e é detestada por muitos, inclusive os militares da velha guarda, que a consideram uma arrivista. Foram eles que organizaram um golpe palaciano, no ano passado, e escolheram Emmerson Mnangagwa como novo Presidente.
Mnangagwa, de 75 anos, foi assessor de Mugabe e chefe dos “serviços de informação”. Os seus métodos valeram-lhe a alcunha de Crocodilo. Para se legitimar, Mnangagwa marcou mais umas eleições, tendo o cuidado de manter uma mal-afamada Comissão Eleitoral e de garantir todos os métodos para ganhar , evitando contudo métodos violentos, pois o que precisa acima de tudo é de uma legitimação internacional que liberte o Zimbábué do sufoco das sanções e estimule o investimento estrangeiro.
Mas entretanto o partido de Tsvangirai (MDC) tem um novo líder, Nelson Chamisa, pastor protestante e advogado de 40 anos, não ligado ao regime, que representa uma esperança nova para os esfomeados zimbabianos. Embora sem sangue, a competição entre os dois adversários foi tensa e envolveu a maior parte dos 17 milhões de habitantes. 75% compareceram às urnas na segunda feira passada, dia 30 de julho. Na quarta-feira, 1 de Agosto, a comissão eleitoral finalmente anunciou os resultados, mais ou menos dentro do esperado: maioria absoluta para Mnangagwa.
E os resultados deram o resultado também esperado: motins e mortes. É muito provável que os distúrbios continuem nos próximos dias. Se crescerem muito, mas mesmo muito,talvez Mnanagagwa tente um acordo com Chamisa; ou talvez Chamisa tenha a mesma sorte muitos oposicionistas de eleições anteriores...
Já durante a campanha o MDC tinha afirmado que as listas estavam viciadas, que os boletins de voto tinham sido concebidos de forma capciosa e que tinha existido intimidação dos eleitores. Também que a comissão eleitoral é parcial, o que foi confirmado por observadores e especialistas internacionais independentes.
Formou-se também uma coligação de grupos civis não partidários, a ZESN, que colocou 6.500 fiscais em parte das 10.985 secções de voto. Havia outros grupos fora da coligação, mas nenhum estava autorizado a divulgar números antes da declaração oficial. Cerca de dois milhões de votos não puderam ser validados por estes grupos.
Resumindo: mesmo sem Mugabe, o Zanu-PF fez umas eleições à Mugabe.
O facto, ainda assim, é que a situação do país nunca mais será a mesma sem Mugabe. É verdade que Mnangagwa tem um passado sinistro, mas os analistas concordam que a sua governação será diferente sob muitos aspectos. Percebe de negócios – e como! Era dono, juntamente com a clique militar, de incontáveis empreendimentos comerciais e imobiliários e das minas de ouro, platina e diamantes que passaram a ser as maiores exportações desde que a agricultura caiu no abandono.
O Zanu-PF precisa que este resultado seja reconhecido pois está consciente de que uma eleição considerada fraudulenta impedirá a integração do país na comunidade internacional e as consequentes ajudas financeiras necessárias para escapar à bancarrota.
Ao fim de quatro décadas de Mugabe, o desemprego é enorme e as infra-estruturas estão em muito mau estado. Mnangagwa tem insistido sempre na necessidade de pacificação nacional para haver investimento estrangeiro. Como irá fazer essa pacificação, ninguém sabe, apenas se pode imaginar.
A questão realmente não é quem ganhou esta eleição, porque quem ganhou, por fraude ou à força, foi certamente o Zanu-PF e os militares vão reprimir violentamente quem disser o contrário. A questão é até que ponto a clique no poder está disposta a ceder à oposição para aliviar o estado deplorável da economia e a fome dos cidadãos.
Quanto a Mugabe, lá está, impávido, com a sua mulher Grace, a gozar uma merecida reforma dourada.