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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Debater as cinzas

Opinião

Pedro Ivo Carvalho

Hoje às 00:05

ÚLTIMAS DESTE AUTOR

Se o combate aos incêndios em Portugal fosse um filme de série B, podíamos resumi-lo assim: "Chamas infernais, descoordenação no terreno, bombeiros às cabeçadas, investigação do Ministério Público, audições parlamentares e comissão de inquérito" (as duas últimas fatalidades deverão estar por dias). Só não há uma ardente história de amor porque o tema presta-se pouco ao romance e muito à incompetência. Chega a ser penoso assistir ao drama de Monchique e ver expostas as fraquezas do costume. São os próprios bombeiros a personificar a estupefação coletiva: como é que mais de mil homens e 17 meios aéreos não foram capazes de controlar, ou apenas mitigar, durante quase uma semana, o mar de chamas que exauriu o pulmão verde do Algarve? A manchete de hoje do JN pode ajudar a explicar parte do problema (os helicópteros alugados à pressa não estão equipados com espuma antifogo, recurso determinante em fogos de grandes dimensões), mas há, na cronologia sumária deste incêndio, sinais evidentes de atrapalhação, de ausência de estratégia, de omissão de comando. A Proteção Civil sai, mais uma vez, chamuscada. Veremos se irremediavelmente.

Queríamos aprender tanto tão depressa que não aprendemos nada. Ao esforço financeiro do Estado para montar uma máquina eficaz de combate e à bem intencionada tentativa de sensibilizar os portugueses para a limpeza dos terrenos (onde isso já vai...), não correspondeu, depois, uma lógica funcional e integrada das estruturas de cúpula, obrigadas por definição a prever cedo e a agir depressa. Monchique, ainda assim, não é uma lição tão dolorosa quanto as infligidas há um ano, mas é um retrato em carne viva do que nos espera nos próximos anos. Continuaremos a fugir de uma casa a arder. Enredados num debate circular sobre meios e fins e longe, muito longe, do princípio de tudo. Debatendo as árvores. Não as cinzas.

SUBDIRETOR

Asfaltar a CP

Cimento líquido

Miguel Guedes

Hoje às 00:04

TÓPICOS

ÚLTIMAS DESTE AUTOR

Há muitos anos que espero ver a CP a apanhar o comboio. Nesse dia que há-de trilhar caminho, picaremos bilhete num país com uma política de transportes que invista na ferrovia como força nuclear da inclusão geográfica das suas gentes, assumindo redes de circulação integradas. Os Comboios de Portugal coram de vergonha perante a degradação e o desinvestimento, a anos-luz da filigrana das redes de transportes urbanos. Com ou sem demissões no Conselho de Administração, continuaremos a ser testemunhas a ver andar a carruagem, viajantes "wagon-lit" sem romantismo, dormentes pela interminável e dolorosa viagem. A perplexidade com que assistimos à degradação da CP e da qualidade do serviço que presta aos seus clientes atingiu máximos históricos neste verão de 2018. Mas não é indignação de primeira viagem. A deterioração, sentida há uma década de ferrugem, é visível a olho nu. Há limites. Mesmo para os indefectíveis de um "Trabant" a rolar em estradas albanesas.

A solução milagrosa poderia ser uma adaptação da receita que Cavaco Silva, plantador de alcatrão, prescreveu na década de oitenta. Asfaltar os carris. Bastaria uma ínfima parte do investimento que alcatroou Portugal entre 1986 e 2004 (de 196 km para mais de 2000 km de auto-estradas em 18 anos) ou uma quota-parte do investimento em estradas paralelamente construídas para, consulta do viajante, escoar mais parcerias do que pessoas em viagem. Se o assunto fosse alcatrão, não haveria apeadeiros para Portugal e os seus comboios. Há assuntos em que somos especialistas. Outros há, à beira da ruptura, que ignoramos olimpicamente até à última estação.

Ricardo Araújo Pereira vociferava "segue, segue, segue por uma estrada de espiche" num dos mais emblemáticos sketches do "Gato Fedorento". Manuel João Vieira, crónico candidato à Presidência da República, queria alcatifar Portugal. Plantar a ideia de que a CP é só mais uma empresa pública a ser mal gerida é coisa para fazer km de caminho. Aproveitando a falta de ar condicionado do momento e a supressão da paciência, não faltará quem clame pela entrega da empresa ao sector privado. E a liberalização do longo curso está já ali. Enquanto outros países investem na sua rede ferroviária como prioridade, não faltará quem procure a salvação noutros carris, invertendo o jogo, afastando ferozmente a CP do sector público enquanto se comovem sentimentalmente com o regresso dos comboios ao postal turístico da Linha do Tua.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

MÚSICO E ADVOGADO

Mesmo sem Mugabe, o Zimbabué teve umas eleições "à Mugabe". O que pode significar que mudou alguma coisa apenas para tudo ficar na mesma

6 ago 2018 17:37

MadreMedia

Opinião

4 comentários

A opinião de

José Couto Nogueira

José Couto Nogueira

No Zimbábue, as primeiras eleições sem Mugabe vão mudar algumas coisas, para que tudo fique mais ou menos na mesma.

Para os adultos antes de 1980, o Zimbábue não existia: falávamos então nas Rodésias, colónias fabricadas por Cecil Rhodes precisamente cem anos antes, para criar uma faixa ininterrupta britânica entre o Norte e o Sul do continente africano. Rhodes foi um dos impulsionadores da ideia de um caminho de ferro britânico que ligasse o Cairo, no Egipto, à Cidade do Cabo, na África do Sul, projecto nunca concretizado mas que mudou a forma de olhar para África. As ideias de Rhodes foram também matéria-prima para a discussão do chamado “mapa cor de rosa”, que amargou a vida portuguesa no final do século XIX. Mas isso é outra história.

Na década de 1950, o Norte e o centro tornaram-se independentes, com os nomes de Zâmbia e Malawi. Mas os colonos da Rodésia do Sul - o actual Zimbabué -, que praticavam uma agricultura muito rentável, não estavam dispostos a dividir o poder com as 16 tribos do seu território e declararam unilateralmente a independência. Foi a primeira vez, desde a independência dos Estados Unidos em 1776, que uma colónia se separou à força da Grã-Bretanha. Os ingleses protestaram mas nada fizeram e a ONU limitou-se à condenação da praxe.

Os colonos da Rodésia do Sul , dirigidos por Ian Smith, aguentaram bem a antipatia internacional (embora apoiados abertamente por Portugal e pela África do Sul) mas não conseguiram dominar a sublevação de dois partidos africanos, o ZAPU e o ZANU. Seguiu-se uma guerra civil selvagem. Para abreviar uma longa e sangrenta história, em 1980 Robert Mugabe, um professor da classe média africana que se tornou líder do grupo independentista ZAPU, assumiu o poder como Presidente a assinou um acordo com os colonos, segundo o qual eles não tinham qualquer poder político mas podiam conservar as suas terras.

É graças a Mugabe, e pelas piores razões, que o Zimbabué reaparece esporadicamente no noticiário internacional. Primeiro, o ZAPU, agora rebaptizado Zanu-PF e amalgamado com as forças armadas, colou-se  que  nem lapa ao poder e criou uma ditadura brutal, mal disfarçada com oito eleições em que Mugabe inevitavelmente ganhava e os opositores fatalmente desapareciam. Depois, resolveu expropriar as quintas dos brancos e dá-las aos ex-combatentes do ZAPU, que estavam pouco interessados em explorá-las. O resultado foi que o país, além de dirigido com mão de ferro, deixou de poder alimentar a sua população. Mugabe, hoje com 94 anos, tornou-se o símbolo do ditador africano violento e incompetente, e com razão: foi o presidente em exercício com mais longo tempo no poder em África e o Zimbábué caiu na extrema miséria. Em 2002, o país foi expulso da Commonwealth.

Em 2008, o único opositor de Mugabe com algum peso, Morgan Tsvangirai, conseguiu quase 50% de votos nas eleições e por algum tempo o ditador viu-se obrigado a fazer um acordo de partilha que não cumpriu. (Tsvangirai morreu de cancro o ano passado. Anos depois da eleição de 2008, Mugabe descair-se-ia ao reconhecer que o opositor tinha obtido 73% dos votos.)

Não podendo ser deposto por nenhuma oposição, Mugabe acabou derrotado pelos seus próprios apaniguados. Em 2013 começou a promover a sua segunda mulher para sucessora. Grace Mugabe, sul-africana, nascida em 1965, é conhecida no país como Gucci Mugabe, pelo seu hábito de ir à Europa gastar fortunas em compras, e é detestada por muitos, inclusive os militares da velha guarda, que a consideram uma arrivista. Foram eles que organizaram um golpe palaciano, no ano passado, e escolheram Emmerson Mnangagwa como novo Presidente.

Mnangagwa, de 75 anos, foi assessor de Mugabe e chefe dos “serviços de informação”. Os seus métodos valeram-lhe a alcunha de Crocodilo. Para se legitimar, Mnangagwa marcou mais umas eleições, tendo o cuidado de manter uma mal-afamada Comissão Eleitoral e de garantir todos os métodos para ganhar , evitando contudo métodos violentos, pois o que precisa acima de tudo é de uma legitimação internacional que liberte o Zimbábué do sufoco das sanções e estimule o investimento estrangeiro.

Mas entretanto o partido de Tsvangirai (MDC) tem um novo líder, Nelson Chamisa, pastor protestante e advogado de 40 anos, não ligado ao regime, que representa uma esperança nova para os esfomeados zimbabianos. Embora sem sangue, a competição entre os dois adversários foi tensa e envolveu a maior parte dos 17 milhões de habitantes. 75% compareceram às urnas na segunda feira passada, dia 30 de julho. Na quarta-feira, 1 de Agosto, a comissão eleitoral finalmente anunciou os resultados, mais ou menos dentro do esperado: maioria absoluta para Mnangagwa.

E os resultados deram o resultado também esperado: motins e mortes. É muito provável que os distúrbios continuem nos próximos dias. Se crescerem muito, mas mesmo muito,talvez Mnanagagwa tente um acordo com Chamisa; ou talvez Chamisa tenha a mesma sorte muitos oposicionistas de eleições anteriores...

Já durante a campanha o MDC tinha afirmado que as listas estavam viciadas, que os boletins de voto tinham sido concebidos de forma capciosa e que tinha existido intimidação dos eleitores. Também que a comissão eleitoral é parcial, o que foi confirmado por observadores e especialistas internacionais independentes.

Formou-se também uma coligação de grupos civis não partidários, a ZESN, que colocou 6.500 fiscais em parte das 10.985 secções de voto. Havia outros grupos fora da coligação, mas nenhum estava autorizado a divulgar números antes da declaração oficial. Cerca de dois milhões de votos não puderam ser validados por estes grupos.

Resumindo: mesmo sem Mugabe, o Zanu-PF fez umas eleições à Mugabe.

O facto, ainda assim, é que a situação do país nunca mais será a mesma sem Mugabe. É verdade que Mnangagwa tem um passado sinistro, mas os analistas concordam que a sua governação será diferente sob muitos aspectos. Percebe de negócios – e como! Era dono, juntamente com a clique militar, de incontáveis empreendimentos comerciais e imobiliários e das minas de ouro, platina e diamantes que passaram a ser as maiores exportações desde que a agricultura caiu no abandono.

O Zanu-PF precisa que este resultado seja reconhecido pois está consciente de que uma eleição considerada fraudulenta impedirá a integração do país na comunidade internacional e as consequentes ajudas financeiras necessárias para escapar à bancarrota.

Ao fim de quatro décadas de Mugabe, o desemprego é enorme e as infra-estruturas estão em muito mau estado. Mnangagwa tem insistido sempre na necessidade de pacificação nacional para haver investimento estrangeiro. Como irá fazer essa pacificação, ninguém sabe, apenas se pode imaginar.

A questão realmente não é quem ganhou esta eleição, porque quem ganhou, por fraude ou à força, foi certamente o Zanu-PF e os militares vão reprimir violentamente quem disser o contrário. A questão é até que ponto a clique no poder está disposta a ceder à oposição para aliviar o estado deplorável da economia e a fome dos cidadãos.

Quanto a Mugabe, lá está, impávido, com a sua mulher Grace, a gozar uma merecida reforma dourada.

O absurdo brasileiro

6 ago 2018 15:49

MadreMedia

A opinião de

Francisco Sena Santos

Francisco Sena Santos

É já daqui a dois meses (primeira volta em 7 de outubro, finalíssima três semanas depois) que 147 milhões de cidadãos eleitores (o voto brasileiro é obrigatório, expresso através de uma espécie de máquina multibanco) vão escolher o próximo presidente do Brasil. É uma eleição mergulhada em histórias de absurdo.

O líder das preferências é Lula, com uma robustez de apoios (à volta de 30 a 33%) que ultrapassa as intenções de voto nos dois candidatos que aparecem nas posições seguintes, Jair Bolsonaro (17%) e Marina Silva (10%). Lula foi neste fim de semana confirmado como candidato presidencial do PT, mas toda a gente sabe que o ainda muito popular ex-presidente está na cadeia, há já quatro meses e não parece que esteja para ser libertado nos tempos mais próximos: Lula é um político condenado já em segunda instância, por corrupção passiva, a mais de 12 anos de cadeia e, conforme a lei da Ficha Limpa, está impossibilitado de disputar as eleições. Pode ainda aparecer alguma escapatória, mas é altamente improvável. Os juristas entendem que há “uma inelegibilidade chapada”. Mas Lula, a partir da prisão continua a prometer que vai fazer o Brasil renascer.

Sem Lula na eleição, há uma anomalia democrática, Jair Bolsonaro, o candidato que não é da democracia mas se serve da democracia, quem salta para a frente das intenções de votos na primeira volta. Bolsonaro é um ultra com língua solta: este ex-militar e defensor dos generais do regime da ditadura que sufocou o Brasil durante 21 anos, defende a tortura de delinquentes e as execuções extrajudiciais ao estilo de esquadrões da morte por parte da polícia. É um feroz fustigador das liberdades civis, mete toxicodependência, homossexuais, mulheres e negros, tudo no mesmo saco da intolerância dele. Bolsonaro é o “boca suja”, são célebres os desaforos estridentes, tais como “polícia que não mata não é polícia”, “o erro da ditadura foi torturar em vez de matar” ou “as mulheres devem ganhar menos porque engravidam”.

Bolsonaro é um absurdo democrático comparável com Duterte, Ortega ou Maduro. Está a ser-lhe prognosticada a possibilidade de sair na frente da primeira volta da eleição, em 7 de outubro. Se assim acontecer, é o resultado da ausência de Lula e da multiplicação de candidaturas frágeis. Não se vê, porém, que na segunda volta possa crescer e chegar à presidência. O candidato finalista adversário de Bolsonaro deverá receber uma vaga de votos anti-Bolsonaro para barrar o candidato ultra. Mas em eleições para deputado ele já foi o candidato mais votado no Rio de Janeiro. Quando os EUA já elegeram Trump para presidente, ninguém pode excluir que o Brasil arrisque Bolsonaro. O discurso securitário é uma arma que Bolsonaro usa com eficácia.

No terceiro lugar das sondagens brasileiras aparece Marina Silva. Esta ecologista veterana nos combates presidenciais recebeu 22 milhões de votos nas eleições de há quatro anos, ganhas por Dilma. Marina tende a repetir ou ampliar esse caudal de votos. A defesa por Marina de um outro modo de governar, com a promessa de liderança sem venda de cargos a interesses e outras corrupções, e com prioridade à defesa da natureza, faz de Marina uma candidata forte, capaz de juntar votos de vários campos. É improvável que baste para a eleger Presidente, mas os inflamados discursos bíblicos de Marina alimentam a fé desta candidatura.

O estranho panorama presidencial brasileiro poderia sugerir uma boa oportunidade para o chamado “Centrão”. Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, por mais que agrade a empresários e investidores, não está a mostrar-se com energia para garantir o fundamental para ganhar uma eleição: intenção de voto robusta. O mesmo se aplica a Ciro Gomes, posicionado um pouco mais sobre a esquerda do centro.

Esta eleição presidencial brasileira, a dois meses do voto, remete-nos assim para um teatro de absurdos. Fernando Henrique Cardoso (FHC), 87 anos, ex-presidente, agora retirado da política mas sempre respeitado e indiscutida referência, assume a inquietação quando assume “não sabemos para onde vamos, a população não confia em ninguém, está distanciada, a fragmentação do sistema de partidos é inédita”. FHC não exclui que apareça um aventureiro, um “free rider”, capaz de ganhar.

Uma questão essencial passa, neste momento, pelo que vai acontecer aos votos dos que continuam fiéis a Lula. Serão 30 milhões? Serão 40 milhões? Vão para quem? Será que Lula ainda pode conseguir o milagre de aparecer como candidato? Não se acredita. Será que o pêtismo vai conseguir fazer funcionar a transferência do voto em Lula para um candidato como Fernando Haddad, gestor do programa de governo do PT depois de ter mostrado credenciais como perfeito de São Paulo, a maior cidade da América do Sul?

Os anos de FHC e, sobretudo, os de Lula, foram os melhores do Brasil. Mas o lulismo e o pêtismo corromperam a confiança criada. Lula ainda beneficia de muitos créditos (aconchegados por muitas dúvidas e perplexidades sobre o modo como o Direito é aplicado no caso Lula), a par de imensa hostilidade. Lula tende a ser um efeito decisivo na escolha do próximo presidente.

Há quem discuta o modo como o jornalismo brasileiro está a cobrir a campanha de Bolsonaro, explorando as peculiaridades da personalidade mas sem ir ao fundo da ideologia. Há quem veja erros que resultam em propaganda, tal como aconteceu nos EUA na campanha que levou à eleição de Trump. Há quem veja a contenção do jornalismo brasileiro no tratamento do assassinato da deputada carioca Marielle Franco, que tanta consternação causou na alma popular, como um inquietante indicador sobre a crise neste Brasil de absurdos.

O mundo de agora tem chefes como Trump e Putin, Erdogan e Netanyahu, Duterte e Maduro, para além de muitas outras criaturas pouco recomendáveis, como, dentro da Europa, acontece na Hungria, na Polónia ou em Itália,

Tudo pode acontecer na eleição de outubro no Brasil. Até pode acontecer os votos brancos e nulos serem tantos que dariam um presidente nulo.

Moralidade e política amoral, uma vez mais

ladroes de bicicletas

Posted: 06 Aug 2018 03:06 AM PDT

No Expresso do último sábado, ainda a propósito do caso Robles, Pedro Adão e Silva (PAS) e Daniel Oliveira (DO) retomam a defesa da política amoral, como outros, à esquerda e à direita, vêm fazendo. Embora apresentem argumentos diferentes, ambos defendem uma linha divisória entre política e moral, que me parece particularmente perniciosa.
PAS pergunta: “Pode alguém com uma agenda contra a especulação lucrar com o imobiliário?” Responde: “sim”. E DO concorda.
Para PAS, as contradições entre as políticas que se defendem e os comportamentos individuais na mesma área não levantam questão alguma, resvalando para um relativismo moral.
Segundo PAS, o que levou à demissão de Robles foi a sua retórica socialista. O problema residiria na “batalha verbal” que este travara “fundada em acusações morais”. Argumenta que esta batalha só é um problema porque pode fazer ricochete. Depreende-se que, se não tivesse ocorrido qualquer batalha verbal, tudo estaria bem. Se os bloquistas substituíssem ‘especulação’ por ‘inflação’ ou ‘despejo’ por ‘término do contrato de arrendamento’, abstendo-se de fazer considerações de ordem moral sobre o estado da habitação e sobre os seus responsáveis, Robles ainda seria vereador.
Mas PAS equivoca-se. A contradição entre políticas e comportamentos persistiria, continuaria a ser relevante e seria, de resto, apontada pelos adversários. Foi esta contradição que fez com que Robles tenha visto diminuída a sua capacidade política e não a dureza das suas palavras ou as considerações de ordem moral. Foi a impossibilidade de dissociação entre política e moral que ditou a sua demissão.
Para DO, o que está em causa não é um problema de linguagem. Mas sim a elaboração de considerações de ordem moral sobre comportamentos individuais, de agentes económicos ou políticos. Apenas as políticas públicas importam. Creio que há vários problemas aqui.
Em primeiro lugar, a dicotomia entre discussão acerca da moralidade dos comportamentos individuais e das políticas públicas é equivocada. Estas discussões não são mutuamente exclusivas. A primeira não impede a segunda, e vice-versa, até porque as políticas públicas, ou seja, as políticas de mudança institucional têm sempre impactos nos tais comportamentos individuais. Ambas as discussões são então legítimas e podem ser travadas, nem que seja para se concluir que não há nada de moralmente reprovável, pelo contrário, nas duas. Mas também se pode concluir que há linhas éticas que não devem ser ultrapassadas, sobretudo por governantes ou representantes políticos, que têm responsabilidade moral acrescida.
Em segundo lugar, a autonomização dos comportamentos individuais em relação à avaliação moral opera uma equivalência entre um conjunto muito variado de ações. Para um agente político, cuja ação política tem incidido sobre os efeitos nefastos da especulação imobiliária na habitação, arrendar ou vender uma casa não equivale à realização de um investimento imobiliário com uma mais-valia inusitada e que contribui para o problema que se combate. Há uma questão de grau e logo de natureza.
Em terceiro lugar, não é possível separar a moral da política, ou a moral da economia. Como se poderia, com esta separação, definir critérios de avaliação de políticas? Como determinar o que é justo e o que injusto, o que é certo e o que é errado? A política não é o domínio do técnico. Se fosse, seria engenharia. E mesmo esta...
Em quarto lugar, se nos abstivéssemos de avaliar moralmente os políticos e os agentes económicos, o relaxamento da exigência moral como que atrofiaria os músculos éticos destes, bem como dos cidadãos, o que tornaria muito mais difícil a defesa de políticas justas. Como persuadir a favor da provisão pública de habitação sem condenar moralmente a exclusão do acesso a este bem essencial? Como defender a igualdade sem condenar moralmente as disparidades numa sociedade em que cresce a distância entre uma reserva de precários que mal ganham para viver e os muito ricos que ostentam os seus consumos conspícuos? Como melhorar a qualidade da política sem condenar as portas giratórias entre a política e os negócios e a enorme falta de carácter que revelam? Etc.
Finalmente, esta separação só serve a direita para quem o mercado, supostamente eficiente e autorregulado, não convoca questões de justiça, porque é o resultado da racionalidade amoral dos agentes.
É por tudo isto que à questão de PAS eu respondo: não. A política é indissociável da moral, que está para lá da legalidade. Diz respeito ao que está certo e ao que está errado nos comportamentos individuais e colectivos, algo que uma comunidade política deve debater, deve debater sempre.