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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Trabalhistas a favor de um segundo referendo do Brexit

Jéssica Sousa 24 Setembro 2018, 11:47

O líder do partido trabalhista, Jeremy Corbyn, garante que se a conferência anual do partido decidir apoiar um novo referendo ao Brexit, ele irá defendê-lo.

Jeremy Corbyn, líder dos trabalhistas britânicos, anunciou que irá defender um novo referendo sobre o Brexit se essa posição for decidida na próxima conferência anual do partido.

O líder do partido garantiu que vai convocar uma “votação clara” para que os militantes se pronunciem sobre a postura do partido quanto ao rumo das negociações para a saída do país da União Europeia (UE). O debate do partido sobre um eventual novo referendo irá decorrer esta terça-feira, 25 de setembro, refere a ”Reuters”.

Corbyn tem-se sentido relutante em apoiar as exigências do partido relativamente a um segundo referendo, mas o partido concordou, na passada noite de domingo, 23 de setembro, que o partido votaria numa moção que apoie ”todas as opções restantes na mesa, incluindo a campanha para uma votação pública”, caso nenhuma eleição se desencadeie, segundo os planos de saída para maio do Brexit.

Na véspera do congresso do partido trabalhista, Corbyn afirmou que a sua posição é “definida pela democracia que existe no partido”. O líder explica que irá “aderir” a qualquer decisão que venha a sair deste encontro e sublinhou que, seria preferível pedir eleições antecipadas, mas se a decisão dos congressistas for no sentido de pedir um segundo referendo, esse será o cenário pelo qual o líder trabalhista irá lutar nos próximos tempos. A declaração, citada pela imprensa britânica, marca uma inversão da posição oficial de Corbyn, que sempre disse que queria respeitar o resultado do referendo de junho de 2016.

Um segundo referendo é o cenário preferido pela maioria dos trabalhistas britânicos. Segundo uma sondagem recente, mais de 75% dos trabalhistas querem esse segundo referendo, no entanto, a liderança do partido tem hesitado em pedir essa nova consulta popular pois a maioria dos municípios votou a favor do Brexit.

A pressão sobre o líder trabalhista, na oposição, aumentou após a publicação de uma sondagem que sugere que 86% dos membros do partido quer que se convoque uma nova consulta. Ainda assim, o líder trabalhista diz que prefere a realização de eleições legislativas antecipadas, antes de se colocar a hipótese de um segundo referendo.

Há um troll fascista em cada um de nós!

OPINIÃO

Patrícia Calca, Politóloga, ISCTE-IUL 24 Setembro 2018, 00:05


Para os trolls fascistas, ser-se chamado de fascista é quase uma vitória, serem aclamados de trumpistas provoca-lhes um sorriso e, serem referidos, vezes sem conta, como proporcionadores e apoiantes de teorias da conspiração, são momentos únicos nos seus dias.

Não se me afigura como novidade que a Internet seja a terra dos trolls, aqueles tipos(as) que criam perfis falsos, ou que sob o seu nome se escondem atrás do seu teclado. Essas pessoas, que podemos ser todos e cada um de nós, pensam-se sempre com uma moral superior à dos outros num dado momento, e assim, cheios de razão passam os seus dias em frente a um computador. Mas não é para vos falar do embrutecimento que a desejada democratização da informação através da Internet, também provoca, que escrevo estas linhas. Escrevo-vos hoje desta tipologia, mas com fundamentos mais complexos do que a frustração diária com a sua vida, pelo menos assim o acredito. Falo-vos dos trolls fascistas.

Um troll deste género, é, diria eu, um refinamento do que ser um troll implica. E eu sei, isto não é nada, mesmo nada académico, mas a verdade é que a minha observação me tem feito chegar a esta conclusão. Perdoem-me os mais sensíveis, hoje não falamos de ciência, mas de percepções. Esta pessoa, esse troll, por norma, tem memorizada bastante informação, como se passasse os seus dias a armazenar conteúdos e detalhes mais ou menos relevantes. No meio da sua argumentação, os trolls atiram para o ecrã argumentos falaciosos, mas cheios de verdades. O problema é que se os factos não são necessariamente mentiras, mas os trolls fascistas usam-nas para convencer outros e tentar convertê-los à sua causa. Claro que, na maioria dos casos, não há na sua argumentação uma ligação coerente entre as realidades, apresentam a sua interpretação, que é simplista e logo mais facilmente vendável.

Para os trolls fascistas, ser-se chamado de fascista é quase uma vitória, serem aclamados de trumpistas provoca-lhes um sorriso e, serem referidos, vezes sem conta, como proporcionadores e apoiantes de teorias da conspiração, são momentos únicos nos seus dias. Claro que não vos digo nada de novo, mas já se viram na situação, por causa destes trolls, ou porque estão chateados, ou simplesmente porque podem fazê-lo, de ceder à tentação de se tornarem também vocês em trolls? Quem nunca? E quem de vós avançou para esse abismo com difícil regresso? Eu procuro não o fazer. Não que seja moralmente superior (se eu o fosse já me poderia auto-denominar de aprendiz de troll) mas porque ser-se um troll, especialmente um do tipo fascista, dá um trabalho grande, e mais, o tempo despendido é considerável.

Ora vejamos: há que policiar todos os que não estão de acordo connosco, apanhar-lhes as fraquezas, os enganos, transformar-lhes os sorrisos em algo questionável, e persegui-los em todas as acções que estes tenham (na Internet, é claro). No final, se isto não resultar avançar com outros trolls para o campo de batalha, sim porque um bom troll actua em manada, o que se manifesta em likes, re-tweets, longas notas acusatórias dos pseudo-inimigos dos seus amigos trolls, de entre outras acções mais ou menos públicas.

Mas já ocorreu ao amável leitor que ainda me lê, reflectir nos recursos que são necessários para converter realidades e certezas: o “Trump é muito mais homem de Estado do que se pensa”, “vamos ser todos vítimas de ataques terroristas porque deixamos que todos os refugiados venham para a Europa”, “no tempo do Salazar é que era”, “tudo são fake news”, etc. Há quem realmente tenha tempo a mais, eu tenho para mim que há boas maneiras de lidar com esta gente, mas não são estas as formas ideais. Por exemplo, confrontá-los com dados e estudos científicos (mas temos mesmo que os ajudar nas interpretações porque troll que se preze vai sempre procurar espremer conclusões que ali não estão); ou optamos por os ignorar, se bem que ignorar pessoas e situações nunca resolveu nada para sempre. Contudo, colocá-los numa “lista negra” ou persegui-los on-line também não é a melhor situação, corremos o risco de nos transformarmos em trolls potencialmente fascistas. Quando isso acontecer, eles terão ganhado.

Ladrões de Bicicletas


Dez anos de neoliberalismo mórbido

Posted: 23 Sep 2018 05:26 PM PDT

O colapso do banco Lehman Brothers há precisamente dez anos simbolizou a eclosão da crise financeira que viria a dar origem à maior recessão mundial desde a Grande Depressão. Esta ficaria conhecida como a crise do sub-prime, em virtude da sua origem próxima nos incumprimentos ao nível dos empréstimos para habitação por parte de alguns dos segmentos relativamente mais pobres da população norte-americana. Com efeito, este segmento do mercado de crédito cedeu em primeiro lugar devido à sua especial vulnerabilidade. No período que antecedeu a crise, era comum nos Estados Unidos a concessão de empréstimos a mutuários de baixos rendimentos, com elevado risco de incumprimento e sem garantias reais (nalguns casos extremos conhecidos como empréstimos ninja: “no income, no job, no assets”) com vista à sua posterior titularização em combinação com empréstimos de menor risco. A ideia seria que o risco menor de uns compensasse o risco maior de outros, mas o processo de titularização e revenda sistemáticos fez com que o risco sistémico se tornasse cada vez maior e a vigilância fiduciária por parte das instituições de crédito cada vez menor.
No entanto, esta não é senão a primeira camada da explicação desta crise. Indo um pouco mais fundo, devemos recordar a evolução da política monetária norte-americana, que passou de muito acomodatícia nos primeiros anos deste século em resposta ao pessimismo decorrente da crise do dot.com e do 11 de Setembro a bastante contraccionista no período antes da crise. Entre 2004 e 2006, a taxa directora da Reserva Federal subiu de 1% para mais de 5%, o que terá desencadeado a catadupa de incumprimentos que levaria ao pânico generalizado e ao congelamento do crédito. Mas o Fed não esteve sozinho na adopção de uma orientação de política que, em retrospectiva, quase parece desenhada para provocar uma recessão: na zona euro, o BCE também subiu gradualmente a sua taxa directora de 2% para 4,25% entre 2005 e 2008.
Por outro lado, é também verdade que a crise financeira não teria tido as características ou a magnitude que teve sem a profunda desregulamentação do sistema financeiro que teve lugar nas décadas anteriores, cujo exemplo mais acabado terá sido provavelmente a revogação em 1999, pela administração Clinton, da Glass-Steagall Act, que datava do tempo da Grande Depressão e que impunha a separação entre as actividades de banca comercial e de investimento. Foi esta desregulamentação que permitiu a acumulação e ocultação de um risco sistémico cada vez maior a coberto de instrumentos financeiros cada vez mais bizantinos e opacos, sem contrapartidas adequadas ao nível da solidez das instituições financeiras.
Mais profundamente, porém, o enorme aumento do endividamento cuja insustentabilidade subitamente desvendada provocou a crise financeira não pode deixar de ser considerado uma consequência do projecto político de transferência de rendimento e restabelecimento do poder das elites cuja implementação remonta ao início da década de 1980 e a que damos o nome de neoliberalismo. Em grande medida, este endividamento sem precedentes correspondeu à reciclagem, sob a forma de concessão de crédito, da parte do rendimento crescentemente apropriada e acumulada pelas elites em resultado do aprofundamento da desigualdade. É nesse sentido que se pode afirmar que a crise financeira de 2007-2008 e a Grande Recessão que se lhe seguiu constituem a primeira grande crise do neoliberalismo: porque resultaram directamente da conjugação dos processos de desregulação, sobre-endividamento, financeirização e aumento da desigualdade que são característicos do neoliberalismo.
É a esta luz, mais do que com base na evolução conjuntural das taxas de crescimento, que faz sentido analisar até que ponto é que a economia global superou a crise. Se tomarmos como critério a alteração ou manutenção destes factores mais profundos, somos forçados a concluir que esta não foi ultrapassada. Embora a regulação e supervisão financeiras tenham sido aprofundadas tanto nos Estados Unidos como na Europa, a tendência actual é novamente de desregulação (por exemplo, com o processo em curso nos EUA de revogação de parte substancial dos requisitos introduzidos em 2010 pela Dodd-Frank Act em resposta à crise). E mais fundamentalmente ainda, nem os níveis de desigualdade, nem os níveis globais de endividamento, nem o enorme poder da finança sofreram qualquer tipo de redução significativa desde a crise – antes pelo contrário. A crise demonstrou os limites e vulnerabilidades do neoliberalismo, mas ao contrário do que chegou a supor-se não o pôs verdadeiramente em causa.
Entretanto, a nível político, as ondas de choque da Grande Recessão incluíram a chegada ao poder por parte de um conjunto diverso de líderes de perfil iliberal e autoritário, na maior parte dos casos cavalgando o descontentamento popular resultante da própria crise. Porém, independentemente do carácter frequentemente populista dos seus discursos, as agendas políticas destes líderes continuam a servir as elites, muitas vezes de forma especialmente agressiva, pelo que eles próprios não deixam de contribuir para acentuar os factores profundos da crise. São, no fundo, sintomas mórbidos de um regime velho que resiste enquanto o novo não consegue nascer.
(no Expresso online a 20/09/2018).

Entre as brumas da memória


O Sol quando nasce é para todos

Posted: 23 Sep 2018 01:57 PM PDT

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23.09.1973 – O dia em que Neruda morreu

Posted: 23 Sep 2018 10:51 AM PDT

Pablo Neruda morreu em 23 de setembro de 1973, apenas 12 dias após o golpe de Estado no Chile, oficialmente em consequência de um cancro na próstata.

Se houve sempre dúvidas quanto à veracidade desta causa, elas agravaram-se há cerca de cinco anos quando o motorista do poeta afirmou que ele terá recebido uma injecção letal numa clínica de Santa Maria, em Santiago do Chile, para impedir que se exilasse no México como era sua intenção. Com base nestas declarações, o Partido Comunista do Chile apresentou uma denúncia formal à Justiça, foi aberto um processo e, em Abril de 2013, foi iniciada a exumação dos restos mortais do poeta (sepultado juntamente com a sua última mulher no jardim da casa em Ilha Negra), que foram enviados para análises em Espanha e nos Estados Unidos. Na clínica em questão, nunca foi possível encontrar a ficha médica de Neruda, nem a lista dos trabalhadores presentes.

Em 2015, «um relatório oficial, do Ministério do Interior do governo do Chile, diz claramente que Neruda foi assassinado. Ou que morreu fruto de intervenção de terceiros».

Entretanto, em 2017, ficou mesmo provado que não morreu de cancro na próstata.

Mas hoje é dia de o recordar em vida, com a sua voz inconfundível:
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Os empregados de limpeza da net

Posted: 23 Sep 2018 06:08 AM PDT

Se têm 40 minutos, e se são do tempo em que os animais já não falavam mas os portugueses ainda percebiam francês, dediquem-nos a esta reportagem, feita com enorme precaução e sigilo sobre os milhares de pessoas que, em Manila, nas Filipinas, fazem a limpeza da web. São empresas subcontratadas pelas grandes empresas da web nossas conhecidas incluindo, naturalmente, Facebook. Um funcionário experimentado chega a visualizar 25 mil imagens por dia, das quais uma parte significativa é eliminada: decapitações, atrocidades, terrorismo (de 37 organizações deve ser tudo eliminado), pornografia, sexo, etc. seguindo o guião que cada uma das empresas fornece. Não podem dizer o que fazem, o que ganham, onde trabalham. Muitos desistem e ficarão com sequelas psicológicas ou mesmo psiquiátricas para toda a vida.

Este trabalho é feito por denúncias e há milhões por dia. Eventualmente por meio de busca.

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Quando é que o passado passa?

Posted: 23 Sep 2018 03:16 AM PDT

«Não, não é um detalhe. Numa cultura como a nossa que satura de simbolismo a morte, os seus rituais e a sua espacialidade, é evidente que ter deixado intacto o Vale dos Caídos revela bem com qual das memórias espanholas se confunde o discurso da reconciliação que a transição pós-franquista quis impor para calar a exigência de depuração de responsabilidades. Um monumento que se quis esmagador desde a sua génese, que comemorava, não a paz mas a vitória de uma parte da Espanha sobre a outra, nunca foi e não pode ser um instrumento de reconciliação, como as reportagens de Manuel Louro aqui no PÚBLICO bem mostraram. Deve, isso sim, ser contextualizado e revelado como o emblema de vingança que Franco quis que ele fosse.

Tudo somado, que Franco seja exumado do Vale dos Caídos e transferido para uma sepultura comum, e privada, é politicamente muito simbólico – e perfeitamente básico numa democracia que rejeite explicitamente a ditadura e o fascismo –, mas francamente do menos importante para conseguir que o Estado espanhol enfrente as suas responsabilidades históricas e legais. Muito mais grave do que perpetuar a decisão do rei Juan Carlos de o ter enterrado lá é que todos os governos espanhóis desde o final do franquismo se tenham recusado a resolver o problema humano, político e legal dos espanhóis assassinados nos territórios gradualmente ocupados pelos franquistas durante a guerra de Espanha (1936-39), na retaguarda e longe da frente de combate, e nos anos do pós-guerra (pelo menos até 1951), um número entre 110 e 160 mil, segundo as fontes, cujos corpos não foram encontrados, exumados e devidamente identificados. Nesta contabilidade não se incluem, naturalmente, os cerca de 40-50 mil mortos em território republicano, cujos corpos passaram por aquele processo e foram homenageados e compensadas as suas famílias ao longo dos 40 anos da ditadura franquista.

Desde há muito que a ONU urge o Estado espanhol a cumprir as suas obrigações internacionais, recordando que o desaparecimento forçado é um crime que não prescreve, ao contrário do que pretendem governantes e magistrados. Quando o juiz Baltasar Garzón aceitou, em 2008, abrir uma investigação judicial sobre um total de 114.266 casos de “desaparecimentos forçados” e sequestro de crianças (filhas de mães republicanas) que configuram crimes contra a humanidade, praticados ou encobertos pelo regime franquista entre o início da guerra civil (1936) e dezembro de 1951 – porque o franquismo continuou a matar em massa mesmo depois do final da guerra, em abril de 1939 –, uma tempestade política abateu-se sobre ele. O Ministério Público espanhol, numa das mais vergonhosas avaliações que do passado genocida de uma ditadura uma instituição judicial possa ter feito, recorreu da abertura desse processo, considerando que aquelas mortes às mãos de autoridades militares e políticas não passavam, afinal, de um conjunto de “delitos comuns” que teriam prescrito à luz da Lei de Amnistia de 1977 – a mesma que a ONU tem insistido que a Espanha revogue por forma a que ela própria possa cumprir as obrigações previstas nos tratados internacionais que subscreveu: em 1985, a Convenção Internacional contra Tortura e, em 2007, a Convenção Internacional contra os Desaparecimentos Forçados, que estabelece, preto no branco, que “os Estados subscritores tomarão as medidas apropriadas para investigar” os “desaparecimentos forçados que sejam obra de agentes do Estado ou de pessoas ou grupos de pessoas que atuam com a autorização, o apoio ou a aquiescência do Estado”. Ao entender que não se podem julgar hoje “crimes contra a humanidade”, porque “a legalidade penal internacional não existia no momento da comissão dos factos”, a Justiça espanhola parece achar que também não se podiam julgar os nazis em Nuremberga por um tribunal que, justamente, tipificou pela primeira vez na história o “crime contra a humanidade”.

Direita, PSOE e juízes conseguiram bloquear a investigação expulsando Garzón da carreira judicial, em 2012. Dois anos antes, a Justiça argentina, ao abrigo do princípio de justiça universal (o mesmo princípio que permitiu que em Espanha se abrisse um processo contra Pinochet), abria uma ação contra os responsáveis “pelos delitos de genocídio e/ou crimes contra a humanidade que tiveram lugar em Espanha” entre 1939 e 1977. A Justiça espanhola recusa-se desde então a colaborar com a investigação e em deter, extraditar ou sequer interrogar vários acusados, sobretudo ex-ministros de Franco.

Magistratura e poder político podem dizer o que quiserem, mas o passado só passa quando as vítimas dele disserem que passou.»

Manuel Loff

Os juízes, a “sedução mútua” e o sofrimento da vítima

  por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 23/09/2018)

cancio

O crime de violação sofreu várias alterações ao longo do tempo. A última das quais, em 2015, cria dois tipos de violação, um "mais grave" e outro "mitigado". No primeiro caso estão as situações em que é usada "violência, ameaça grave ou colocação da vítima em incapacidade de resistir"; no segundo aquelas em que é constrangida ao ato "por qualquer outro meio". A pessoa é violada nos dois casos - penetrada contra a sua vontade -- mas no segundo, por estar em causa "apenas" não haver consentimento, o legislador achou que podia cortar a pena quase para metade: no tipo 1 é de três a 10 anos, no tipo 2 de um a seis anos.

Esta alteração ao CP, pretendendo ser moderna e de acordo com a Convenção de Istambul, mantém o espírito de antanho - aquele para o qual violação "a sério" é quando a vítima leva pancada de criar bicho, lhe apontam uma faca ou lhe metem droga na bebida.

Dentro desta perspetiva de apoucamento de tudo o que não inclua a tal violência do tipo 1, é digno de nota, e até contraditório com a atual redação do crime de violação, que o que se lhe segue no CP, o Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistência, tenha, quando há penetração, uma pena de dois a 10 anos - ou seja, com o limite máximo igual ao da violação "mais grave".

Daí que seja simultaneamente expectável e surpreendente encontrar na nota que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses exarou em resposta às críticas ao acórdão que ficou conhecido como "da sedução mútua" e do qual é cossignatário o seu presidente, Manuel Soares, a seguinte frase: "Não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave."

Que a acusação e condenação em causa foram por abuso sexual de pessoa incapaz de resistência foi dito em todas as notícias, pelo que não se percebe que está a ASJP a desmentir. Nem por que afirma que o crime de violação tem pena mais grave; como vimos, o "tipo 2" tem-na até bem mais baixa.

Mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação "olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência". Dirá que foi violado, porque se sentirá violado.

Por outro lado, mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação "olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência". Dirá que foi violado, porque se sentirá violado. O nome dado ao crime no CP não altera a natureza do ato.

Mas a nota da ASJP não fica por aqui. Afirma: "Não é verdade que o tribunal tivesse considerado que o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ocorreu num ambiente de sedução mútua; essa qualificação refere-se ao contexto que antecedeu a prática dos crimes e que foi dada como relevante para a determinação da pena."

Perdoem os meritíssimos; acham mesmo que a crítica a essa parte do acórdão se deve a crer-se que nele se diz ter havido sedução mútua enquanto a vítima estava a ser violada - desculpem insistir no termo -, inconsciente, na casa de banho da discoteca, pelos dois homens? Por favor. Toda a gente entendeu que a ideia é que houve "sedução mútua" antes das violações. E que isso atenua a culpa dos violadores.

O que quem criticou a decisão não percebe, e o comunicado não explica, quiçá por inexplicável, é, primeiro, onde foram os juízes buscar essa factualidade, porque não está vertida no acórdão - a não ser que baste dizer que a jovem esteve "a dançar na pista", ou que estava de shorts ou que bebeu; segundo, em que medida, mesmo a ter existido "sedução mútua" (e com os dois, porque os dois a violaram), poderia tal contribuir para atenuar a pena de um crime que ocorre quando a vítima, como um dos agressores disse numa escuta, "está toda desmaiada".

A ASJP, na sua fúria corporativa, termina acusando quem se indigna de "agravar ainda mais o sofrimento da vítima". É bonito. Pena não terem uma linha - uma que seja - para citar do acórdão sobre esse sofrimento.

Esta forma de a ASJP fazer de conta que quem critica o acórdão não percebe de Direito, de português ou de mero bom senso - nem conhece o histórico da legislação e dos tribunais portugueses em matéria de crimes sexuais contra mulheres e violência de género -- serve apenas para justificar o que se segue: a acusação de que houve "tratamento sensacionalista" e que as críticas derivam disso, de "agendas políticas ou sociais" e das "expectativas de associações militantes de causas". Esta afirmação, que visa colocar os tribunais num lugar de neutralidade, serenidade e rigor de que os comuns mortais estão vedados, seria só patética se não evidenciasse a ingénua perversidade dos que só veem agendas nos outros - quando as críticas visam precisamente ajudar os magistrados a identificar e consciencializar a agenda subliminar que resulta numa justiça discriminatória e machista.

Já era dose. Mas a ASJP, na sua fúria corporativa, termina acusando quem se indigna de "agravar ainda mais o sofrimento da vítima". É bonito. Pena não terem uma linha - uma que seja - para citar do acórdão sobre esse sofrimento.