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sábado, 17 de novembro de 2018

A EUROPA RESISTE

  por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 17/11/2018)

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Clara Ferreira Alves

(Ó dona Clara, eu já tinha ouvido chamar ao vórtice actual do capitalismo financeiro muita coisa menos "algoritmos opacos". Só há opacidade na percepção de como está a ser administrado o mundo actual, para quem não sabe o que é a taxa de lucro, nem nunca leu nada sobre a sua tendencial queda, que está a ser combatida com o recurso à mundialização das desigualdades. 

Se o parágrafo acima é muito esotérico para o capricho da pluma eu faço uma síntese, parafraseando o Bill Clinton: "It's the inequality, stupid"! E, a Europa, não resiste, não. Há muito que alinhou na dança.

Comentário da Estátua, 17/11/2018)


O mundo parece cada vez menos percetível e controlável, organicamente administrado por algoritmos opacos.


Não foi assim há tanto tempo. Novembro de 1989. Em frente a um muro cinzento e grafitado, um homem toca violoncelo saudado pelo Rato Mickey, que diz “Willkommen in Est-Berlin”. Est está riscado com um X negro. As pessoas caminham para cá e para lá, atravessando a fronteira desfeita. Junto do homem está um grupo que o abraça, grato pelo bocado de História, tão importante como os bocados arrancados que durante meses se venderiam nas ruas como recordação do dia da queda do Muro de Berlim. O homem é o violoncelista russo Mstislav Rostropovitch, “Slava”, um dos grandes músicos do século XX. Slava estava exilado nos Estados Unidos, depois de ter sido perseguido pelo regime de Moscovo e privado da cidadania soviética, país ao qual só regressaria em 1990.

A queda do Muro representou um dos momentos sinfónicos da Europa, quando as cicatrizes das duas guerras pareciam sarar de vez, deixando um risco na superfície do continente unido pela união das duas Alemanhas e o colapso da União Soviética. Putin era então um funcionário dos serviços secretos em Dresden, e considerou o assalto ao quartel-general da Stasi a suprema humilhação da Mãe-Rússia. Moscovo ficou em silêncio e ele meteu-se no Trabant e desandou, farejando a derrota. Putin ainda não existia. Merkel ainda não existia. E Trump, símbolo do egotismo e ganância de Nova Iorque nos anos 80, dava entrevistas onde dizia coisas como adoro ter inimigos, combato os meus inimigos, adoro levá-los ao tapete. Em janeiro de 1989 foi capa da “Time” e o narcisismo patológico levou o jornalista a perguntar-lhe se já tinha tentado a psicoterapia. Os atuais donos das democracias iliberais da Europa de Leste, herdeiros das autocracias que os precederam, massacrados pela História dupla e triplamente, ainda não existiam. Os políticos amados eram Mandela e o checo Václav Havel, um escritor dissidente que se tornou Presidente da Checoslováquia. O humanismo era o sentimento dominante na Europa e a vitória da democracia e do capitalismo liberal conduziram a pena de Francis Fukuyama para “O Fim da História”, título do qual se arrependeu mil vezes.

A História continuou, ou como marcha encenada do kitsch supremo, como a viu Milan Kundera em premonição, ou como relação de causa e efeito.

Muitas coisas terríveis aconteceram nos anos 80, não sendo a menor delas a epidemia de sida e a devastação que causou, mas o sentimento geral, e o tal humanismo como gesto natural, logo criaram uma planetária angariação de fundos para o tratamento e descoberta da vacina. Ou o Live Aid e o We Are The World, para ajudar África. Este era o ar do tempo.

O otimismo do final dos anos 80, que culminou com a queda do Muro, fez da década de 90 uma década prodigiosa que começou com a libertação de Nelson Mandela e o fim do apartheid. A primeira Guerra do Golfo não enevoou o otimismo, e os exércitos americanos deixaram cem mil corpos iraquianos no deserto julgando ter neutralizado Saddam, sitiado em Bagdade. O conflito israelo-palestiniano caminhou para os acordos de paz de Oslo. Em África, o genocídio do Ruanda, em 1994, também não conseguiu destruir a convicção de que a humanidade caminhava para um amanhã de prosperidade e liberdade.

Para um jornalista, as duas décadas, 80 e 90, foram privilegiadas. A História oferecia um acontecimento por dia.

No dia 11 de setembro de 2001, o sonho liberal estilhaçou-se. E a América reagiu como um grande animal ferido. Em 2007, a crise financeira fez o resto. E, pouco a pouco, começámos a perceber que o admirável mundo novo não era assim tão admirável. De cidadãos passámos a consumidores, a nova ordem mundial inverteu-se e perverteu-se com o gigantismo e o apetite aquisitivo da China, a América das hipotecas deu cabo dos bancos da Europa e impôs uma austeridade cujas consequências são visíveis no esfarelamento da União Europeia e no ‘Brexit’. Depois do otimismo do alargamento, o pessimismo da contração. O Médio Oriente veio morrer nas nossas praias. E a revolução digital aliada à inteligência artificial é usada para controlar uma humanidade dependente e viciada.

Hoje, olhamos para um planeta onde nos comportamos como o vírus que mata o hospedeiro. A democracia iliberal ganha eleições, a extrema-direita alemã ameaça a Europa, o fascismo ganha em Itália, e Mr. Trump deixou de vender condomínios. Muitos jornalistas proletarizaram, trivializaram ou foram decapitados, real e metaforicamente. Os cidadãos consumidores consomem os conteúdos que eles mesmos ou o seu grupo insistentemente, neuroticamente, geram. Os políticos perderam prestígio e autoridade. As pessoas deixaram de se interessar pela verdade. E as artes entraram no remake, na repetição, na elegia ou na distopia. A biografia comezinha, a que Alexandre O’Neill chamava a vidinha, é hoje o centro da tragédia.

O mundo parece cada vez menos percetível e controlável, organicamente administrado por algoritmos opacos.

Resta a memória. Como se viu pelas cerimónias do Dia do Armistício, que o Presidente Emmanuel Macron, devoto do simbolismo, encenou junto ao Arco do Triunfo para mostrar ao mundo que a Europa resiste.

Nem mais um contrato diário

  por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso, 17/11/2018)

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(Uma vergonha, a fazer lembrar esse excelente e emblemático filme de Elia Kazan, "Há lodo no cais".

Um governo, supostamente "de esquerda" não pode permitir práticas de contratação deste jaez. E se são legais, mudem-se as leis.

Comentário da Estátua, 17/11/2018)


Ricardo tem 33 anos e trabalha há uma década no Porto de Setúbal. No entanto, dez anos de trabalho não são considerados um emprego permanente. Para os empregadores, Ricardo continua a ser um "trabalhador eventual", cuja função seria suprimir necessidades temporárias.

Conta à TSF que vive de contratos diários. "Todos os dias somos escalados por turno. Cada turno que efetuamos é um contrato novo". O primeiro turno diário corresponde a oito horas de trabalho, o segundo corresponde a sete. Muitas vezes, Ricardo faz ambos no mesmo dia.

O caso de Ricardo está muito longe de ser único. Corresponde à situação de 90% dos trabalhadores do Porto de Setúbal, de acordo com o Sindicato dos Estivadores e da Atividade Logística (SEAL).”

(Fonte: TSF)

Esta violência laboral justifica a greve da SEAL, a qual quase paralisou o Porto de Setúbal. O efeito é esse porque os trabalhadores precários, tratados como espécie de escravos ao dia, como gente com funções alegadamente não permanentes, afinal são absolutamente indispensáveis ao movimento do Porto de Setúbal.

Não me interessa entrar na história toda, que pode ser lida nas notícias, não me interessa saber se a ACT acordou agora, interessa-me isto:

É intolerável que em 2018 cheire a Estado Novo. Estes trabalhadores são evidentemente essenciais à empresa, têm funções permanentes e não sabem o que seja um contrato de trabalho com os direitos a ele associados. Acordam na incerteza. Sabem que vão trabalhar. Não sabem por quantas horas, a que valor, qual a duração do abuso. Nada os acode numa situação de doença. O seu “mínimo de existência” é grosseiramente validado pela entidade empregadora entre o nascer do sol e a noite escura.

Se há matéria a que a esquerda não pode ser indiferente é esta.

Estes trabalhadores têm de ver a sua situação de facto reconhecida, têm de ter segurança no emprego, absoluta liberdade sindical e direito ao trabalho digno, com retribuição justa, pondo fim a esta “praça da jorna” ou “praça da vergonha”.

Conseguem imaginar a situação relatada pela TSF?

"Todos os dias somos escalados por turno. Cada turno que efetuamos é um contrato novo". O primeiro turno diário corresponde a oito horas de trabalho, o segundo corresponde a sete. Muitas vezes, Ricardo faz ambos no mesmo dia”.

É, pois, de louvar que os trabalhadores se recusem a trabalhar enquanto a entidade empregadora - a empresa Operestiva - não assinar contratos de trabalho permanentes com todos os precários (parece que perante as consequências da paralisação, houve uma proposta manhosa de dar trabalho a uns quantos).

Solidariedade no combate é isso.

Solidariedade pelo combate deve ser toda.

Nem mais um contrato diário.

A civilização contra a cultura

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 16/11/2018)

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António Guerreiro

E, de repente, ao entrar em funções, confrontada com a questão das touradas, a ministra da Cultura pronunciou a palavra “civilização”, explicitando assim, espontaneamente, o campo e o horizonte de ideias em que esta discussão tem lugar. O aparecimento e a evolução semântica e ideológica da palavra “civilização” e das problemáticas que ela trouxe consigo é um assunto importante na história das ideias, que no nosso tempo mobilizou estudos de figuras tão importantes como Jean Starobinski e Émile Benveniste.

A civilização como categoria é um elemento central do projecto iluminista, para o qual ela designa o processo fundamental da História e o resultado desse processo: a superação de um estado primordial em direcção a um estado considerado superior do ponto de vista moral, cultural, científico, tecnológico, etc. A ideia de civilização tornou-se o critério pelo qual a barbárie — ou não-civilização — é julgada e condenada. Ela só pode ser compreendida em função da ideia de progresso, da concepção de que há um progresso da humanidade.

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A história da ideia de civilização não pode ser feita sem a referência à ideia de cultura, com a qual ela forma um par. E esse par ganhou uma importante configuração dicotómica — a civilização em oposição à cultura — que nos chegou da tradição romântica alemã. A reivindicação da Kulturcontra a Zivilisation (vista com desconfiança como ideia muito francesa), a defesa da “cultura espiritual” e enraizada contra o cosmopolitismo e universalismo da ideia de civilização, democrática na sua essência, encontra em Thomas Mann, na sua fase inicial, um representante que manifestou todo o seu desprezo pela classe que ele denominou como intelectuais da civilização, Zivilisationsliterat, a que pertencia, aliás, o seu irmão Heinrich Mann.

O par dicotómico civilização/cultura é de uma grande complexidade, ao ponto de ser muito difícil responder a esta questão: quando Freud escreveu Unbehagen in der Kultur, publicado em 1930, é sobre o mal-estar da cultura ou sobre o mal-estar da civilização que ele escreveu? Sobre isso, os tradutores nunca se entenderam e nas principais línguas europeias encontramos o título traduzido das duas maneiras.

Fácil é então perceber porque é que os defensores das touradas reivindicam a ideia de cultura e os que querem que elas sejam proibidas tomam a civilização como critério. Mais difícil — mas necessário — é perceber que as duas partes não estão envolvidas num litígio em que é possível uma verdadeira discussão, isto é, um encadeamento das frases de um lado e de outro que formam uma argumentação e uma contra-argumentação, tendo como condição necessária o pressuposto de que é possível as duas partes litigarem.

Ora, neste caso não se trata nunca de um litígio, mas de um diferendo. O que é um diferendo? Há um diferendo, explicou o filósofo francês Jean-François Lyotard, quando o discurso de uma parte não tem nenhum sentido para a outra parte porque as duas falam uma linguagem diferente e nem partilham um terreno mínimo, uma razão comum, que possa tornar possível o esforço que consistiria em cada uma das partes se colocar no lugar da outra.

É que, neste caso em que há um diferendo, as palavras de uns não podem ser encadeadas nas palavras dos outros. Há uma absoluta heterogeneidade de linguagens, uma incomensurabilidade dos discursos, ao ponto de aquilo a que uns chamam cultura os outros chamarem barbárie. E cada vez que uma das partes explica e defende as suas razões, só confirma as razões da outra parte. E, assim, o conflito nunca pode ser equitativamente resolvido, não é possível recorrer a uma regra de julgamento aplicável ao discurso de ambos os lados. O diferendo não é uma mera oposição de opiniões nem se resolve accionando os mecanismos da democracia.

Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam

  por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 17/11/2018)

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A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.

É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.

Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade.

Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças.

Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.

Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.

Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.

O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.

Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas.

As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização.

O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.

Entre as brumas da memória


Pobre Brasil…

Posted: 16 Nov 2018 01:01 PM PST

Brazil's new foreign minister believes climate change is a Marxist plot.

«Brazil’s president-elect Jair Bolsonaro has chosen a new foreign minister who believes climate change is part of a plot by “cultural Marxists” to stifle western economies and promote the growth of China.»

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Dica (826)

Posted: 16 Nov 2018 10:06 AM PST

Electoral Authoritarianism, Elective Dictatorship (Javier López)

«Jair Bolsonaro will be President of Brazil. A homophobic soldier with authoritarian excesses, who has scorned democratic mechanisms and threatened his political rivals, will lead the greatest regional power in Latin America that is now a global giant. In fact, his profile, a caricature of a third-rate dictator, would be comical if it weren’t for the fact that he amassed more than 50m votes. His election, with incalculable consequences, is the latest in a long line highlighting the battered fragility of democracy. What is happening to our societies when voters decide to put their destiny in the hands of eccentric authoritarians, while the influence of the far-right multiplies election after election all over the planet?»

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As nossas democracias vão acabar?

Posted: 16 Nov 2018 02:25 AM PST

«Ditaduras houve que delapidaram as riquezas do país, outras que construíram em poucos anos um poder económico difícil de obter quando se respeitam as regras e os direitos humanos.

É uma possibilidade real. Este movimento civilizacional de vertigens totalitárias pode, para alguns, parecer uma coisa extraordinária numa parte do mundo que se reconhece como a mais evoluída, a herdeira dos grandes avanços do conhecimento da humanidade, em contraponto com o que se passa nas outras partes mais atrasadas. No entanto, de um ponto de vista estritamente histórico, não há nada de extraordinário. Alterações radicais e revoluções já aconteceram muitas vezes e continuarão a acontecer sempre que a raiva e o descontentamento acumulado nas populações encontram condições para pôr à prova o poder estabelecido. É que as revoluções não acontecem sempre contra regimes autoritários, mas também contra os regimes estabelecidos que deixam de ter condições para exercer o seu domínio. As ditaduras e as democracias são duas formas distintas de exercício do poder, mas são ambas formas de exercício do poder de uma minoria sobre a maioria. Se a revolução francesa é um modelo de revolução de um povo faminto contra um poder absoluto, a revolução nazi dos anos 30 na Alemanha é o exemplo de como uma democracia liberal, assente na mais sofisticada civilização, berço de filósofos, escritores e músicos, cede perante uma vaga de fundo de ódio, de irracionalidade e de selvajaria.

Porque estão hoje as democracias em crise?

Não subscrevo as teorias de que foram a emigração e as plataformas sociais que deram lugar a esta revolta que vai tomando proporções globais. Parece-me óbvio que esta vaga foi espoletada, no imediato, pelos efeitos da crise financeira global e da recessão que se seguiu, no fecho de um longo processo de desindustrialização e de deslocalização de actividades dos chamados países desenvolvidos para as emergentes economias asiáticas. Acresce que estes últimos 30 anos foram também um período de alargamento das desigualdades, em contraponto com o que vinha acontecendo desde a II Guerra Mundial. Este movimento tectónico foi com certeza um processo complexo, mas que teve como resultado um avivar de frustrações que os poderes instituídos não souberam antecipar e gerir. E quando o povo acha, com razão ou sem ela, que está a ser enganado, acontecem destas coisas.

As ditaduras são boas ou más para as economias?

Há exemplos para todos os gostos. Ditaduras houve que delapidaram as riquezas do país, outras que construíram em poucos anos um poder económico difícil de obter quando se respeitam as regras e os direitos humanos. Temos, como exemplo, a industrialização da União Soviética com Estaline, que, num curto espaço de tempo, transforma um país agrícola e medieval numa potência industrial, ou o restabelecimento do poderio industrial na Alemanha nazi, que em poucos anos lhe vai permitir assumir o domínio militar de praticamente toda a Europa. Só que nenhum destes modelos é aconselhável ou sequer bom para a saúde. As indescritíveis e vergonhosas páginas escritas na União Soviética e no império nazi, de utilização de trabalho escravo e total indiferença perante a dignidade do género humano, são exemplos do que nunca deveria ter acontecido. Mas convém também ter presente que as democracias não são más para o desenvolvimento económico. Foi em democracia que o império britânico se construiu e em democracia que os Estados Unidos ganharam hegemonia global. Os resultados não dependem pois do modelo, muito menos das mitologias ideológicas.

E em Portugal? Vamos também para uma ditadura?

Se países que são modelos históricos de democracia, como o Reino Unido ou os Estados Unidos, vacilam hoje perante o respeito de regras de convivência que aceitamos como expressão superior do desenvolvimento humano, deixando-se levar em ondas de ódio e aceitando a mentira como ingrediente da vida, o que dizer de países como o nosso onde o ADN democrático tem falhas e nem sempre produziu boas memórias. Não devemos ter ilusões de que em Portugal não estamos imunes ao aparecimento de um messias. Mas convém ter bem presente qual o resultado, em democracia, de um processo de abdicação voluntária de direitos. Porque se Hitler chegou ao poder pela via eleitoral, ainda que sem maioria, isso foi só no início pois o verdadeiro poder foi conquistado quando, pelo medo, as pessoas sucumbiram à violência das suas organizações paramilitares. Um ditador pode chegar ao poder pelo voto, mas não se perpetua pelo voto, perpetua-se pela força que consegue exercer sobre as pessoas, a quem, sucessivamente, vai retirando os direitos.

Será que é isso que queremos?

Já agora, para os lusos nacionalistas que já se entusiasmam com o que se está a passar, seria útil que tivessem consciência de que personagens como Trump, Putin, Orbán, Erdogan, Bolsonaro e outras, além do fascínio que podem provocar, têm pelo menos uma coisa em comum: nada do que fazem, nem do que gostariam de fazer, tem como objectivo proteger Portugal.

Será que não sabemos?»

José Veiga Sarmento