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sábado, 8 de dezembro de 2018

A morte dos livros

  por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 08/12/2018)

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Miguel Sousa Tavares

É de bom tom começar pela usual declaração de interesses: Luiz Schwarcz é o meu editor brasileiro. Fundador, presidente, alma e coração da Companhia das Letras, que, para grande orgulho meu, é, não sei se a maior em volume de negócios, mas certamente a mais prestigiada editora brasileira — reunindo, entre os seus autores, os clássicos brasileiros, de Guimarães Rosa a Jorge Amado, e os novos, de Milton Hatoum a Chico Buarque. Há uns anos, juntou ao seu já extenso catálogo o da norte-americana Penguin Books, fazendo com que o acervo de autores sob a chancela da Companhia das Letras constitua uma biblioteca de fazer inveja a qualquer bibliógrafo. O Luiz é um editor que verdadeiramente ama os livros, assim como ama a música (foi um dos fundadores da Orquestra Sinfónica de São Paulo), os cavalos de corrida e a mesa com amigos. Foi com ele que pela primeira vez aprendi o que era “pagar a rolha” num restaurante. Foi no Figueira, em São Paulo, assim chamado porque tinha (ou ainda tem?) um imenso pátio onde se comia debaixo da mais extraordinária e frondosa figueira que alguma vez vi. Jantávamos, a convite do Luiz e, além da sua mulher, a historiadora Lilia Moritz, o já citado Milton Hatoum, autor do notável romance “Dois Irmãos” (mas não só), a Fafá de Belém e eu. O Milton, natural da Amazónia, ficou embevecido e admirado quando me viu, depois de consultar o cardápio, encomendar um filete de tucunaré, da trilogia dos peixes do rio Amazonas — tucanaré, pirarucu e tambaqui, os únicos grandes peixes do Brasil, pois que os de mar não prestam, para nós, portugueses, que desfrutamos do melhor peixe do mundo. Mas eu é que fiquei verdadeiramente espantado quando vi o Luiz sacar de um saco com duas garrafas de vinho que tinha trazido de casa, entregá-las ao empregado e dizer: “Sirva estas”. Grande conhecedor de vinhos, ele inventara, aos meus olhos pelo menos, o sistema da “rolha”, que depois vi replicado noutros lados, em que se leva o vinho de casa e só se paga uma quantia simbólica pelo serviço.

Isto para introduzir o personagem, antes da sua mensagem. Na semana passada, o Luiz Schwarcz enviou uma carta aberta a autores, editores, livreiros, leitores, amigos de livros, escrita em inglês e intitulada “Love letters to books”. O pretexto foi a simultânea entrada em processo de catástrofe das duas maiores cadeias de livrarias brasileiras, a Cultura e a Saraiva, uma fechando 40 lojas e a outra abrindo um processo de insolvência judicial, ambas deixando pendentes milhões de dívidas às editoras. Na sua carta aberta, espécie de grito de desespero de credor, mas, acima disso, de amigo dos livros, o Luiz escreve que nos últimos anos o mercado livreiro do Brasil se retraiu em 40% (o mesmo que em Portugal) e que muitas cidades brasileiras estão prestes a ficar sem uma única livraria. E acrescenta este desabafo : “Passei pelo pior momento da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive de deixar partir seis empregados que fizeram parte da Companhia e deram uma contribuição vital para o que fomos construindo dia após dia”. E termina apelando para que todos dêem ideias, sugestões, que ao menos comprem livros neste Natal, “para que mostrem algum amor por uma coisa que nos deu tanto durante tanto tempo: o livro”.

O apelo de Luiz Shwarcz não gerou só likes no Brasil. Em parte porque ele coincidiu com o anúncio de que o Luiz, embora mantendo-se presidente da Companhia das Letras, tinha acabado de vender a maioria do capital à Penguin, agora fundida com outro gigante americano da edição, a Random House. E em parte porque pequenos livreiros de pequenas cidades do interior o acusaram de se preocupar apenas com a falência das grandes cadeias de livrarias — às quais as editoras se submeteram ou foram forçadas a submeter-se. Tal como em Portugal. Mas isso é apenas parte da história da morte em curso dos livros: o estado actual da história. O livricídio começa pela oferta, antes de acabar na procura.

Anos atrás, numa Feira de Frankfurt — uma feira de vendas para editores e agentes literários, onde alguns autores são exibidos como rezes numa feira de gado — uma plateia de acabrunhados editores concordava com a iminente morte do livro, enquanto objecto, face ao aparecimento e inevitável triunfo do livro electrónico, o Kindle. Não havia nada a fazer, o inimigo era imbatível, assentiam aquelas avisadas cabeças, imaginado legiões planetárias de leitores em aeroportos, praias, jardins, autocarros, a sacar do seu Kindle e a devorar livros a 50 cêntimos cada um. Nos tempos seguintes, em cada contrato de edição que me apresentavam para assinar, inevitavelmente, lá vinha uma cláusula incluindo direitos sobre a edição online, o futuro irrecusável, juravam, e eu, inevitavelmente, recusava-a. Uma parte por intuição e talvez nostalgia: cresci com os livros como objecto físico, palpável, visível. Cada edição dos meus autores de cabeceira era como uma edição dos discos dos Beatles: tinha um cheiro próprio, a capa era olhada e apreciada mil vezes, acariciada com a mão, o papel era pesado e alisado, o seu lugar na estante era judiciosamente estudado, a sua lombada era fixada para sempre, nada era em vão. Outra parte tinha que ver com um raciocínio de ética económica: o Kindle da Amazon representava a mais devastadora e amoral destruição de uma cadeia de produção que eu já tinha visto. Começava por destruir os empregos e os investimentos ligados à indústria de papel dos livros; depois à parte da impressão, a gráfica; a seguir, à edição; depois, à distribuição; em seguida, com tudo o que tinha que ver com as feiras dos livros, visto que não haveria livros-objectos para apresentar nem para autografar; e, no fim da cadeia, sacrificaria os próprios autores, a quem pagariam uns miseráveis cêntimos por cada exemplar vendido com o falacioso argumento de que se venderiam muitos mais livros visto que seriam muito mais baratos. No final, feitas as contas, apenas o pirata do senhor Jeff Bezos, dono da Amazon, teria acrescentado a sua incontável fortuna, abrigada em paraísos e esquemas fiscais, à custa do talento e do emprego dos outros.

Mas se, contra as expectativas dos avisados crânios, o livro electrónico felizmente se revelou um fiasco, do lado da oferta a nova ameaça são as grandes superfícies de venda de livros que, de facto, matam as livrarias e impõem aos editores condições de sobrevivência insustentáveis. Se ver livros à venda em supermercados já é penoso, pior ainda é saber que é preciso comprar espaços de exposição e entrar em campanhas de promoção ao nível dos descontos em chouriços e detergentes. Mas é assim que estamos.

Mas é assim que estamos porque é assim que está a procura. Já quase ninguém lê livros. Como quase ninguém lê jornais ou revistas. Isto daria tema para todo um outro artigo, para que me falta espaço. Direi apenas, abreviadamente, que as redes sociais têm nisto, obviamente, uma trágica responsabilidade: elas são a maior fonte de leitura actual e a maior fonte de iliteracia funcional. Mas não são a única: a crítica literária que se faz em Portugal (e eu conheço outras) é também altamente responsável, porque não cumpre a sua função essencial de orientar os leitores para o encontro dos livros que lhes podem criar hábitos de leitura. O desporto favorito dos nossos críticos literários é não dizer do que trata um livro. Quanto mais confusa ou inexistente é a história de um romance, mais rebuscada e exaltante é a sua crítica, para no final se concluir que o autor é um génio, o crítico é brilhante e o leitor é um idiota se não entende a genialidade e o brilhantismo de um e de outro e se na próxima vez não voltar a comprar outro livro do mesmo autor. E, desnorteados, os editores botam as frases laudatórias dos brilhantes críticos nas cintas do próximo livro do genial autor e ficam à espera... acabrunhados com os exemplares por vender, devolvidos ao fim de uma semana, por um supermercado perto de si.

É toda uma cadeia feita de suicidárias cumplicidades na mediocridade, de arrogantes sentimentos de superioridade, de desnorte editorial, de falta de senso, de coragem e de imaginação, que aos poucos nos vai transportando, leve, levianamente, para um mundo de pesadelo, que sempre foi o sonho de todas as ditaduras: um mundo sem livros.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

O Comentador Oliveira!

  por estatuadesal

(Joaquim Vassalo Abreu, 07/12/2018)

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(Temos publicado com regularidade os textos do Daniel Oliveira. No entanto, algumas das suas mais recentes prosas, não tem feito o pleno entre aqueles que seguem este blog, o que só prova a diversidade opinativa do universo dos que nos lêem. A discordância deve originar um debate aberto e leal, o qual deve nortear sempre aqueles que querem contribuir para uma democracia sã, como é o nosso caso.

Aqui fica pois a opinião de Vassalo Abreu, que terá certamente os seus apoiantes, tal como as posições de Daniel Oliveira também terão os seus.

Comentário da Estátua, 07/12/2018)


Quem tão prolixamente fala e escreve e tantos conselhos tem para dar, querendo sempre no politicamente correcto estar, forçosamente que um dia nas suas contradições irá esbarrar…digo eu do alto da minha “sabedoria” popular!

Não o Comendador, lá chegará, mas o Daniel, ele mesmo que, ao que parece, continua solteiro. Entendamo-nos: assim a modos que sem Partido, percebem? Segundo o velho oráculo de Willy Brandt de que “Comunista na juventude, Socialista ou Social Democrata na idade madura”, já só lhe resta o PS! Mas como não é para já, é só para quando este for oposição, o Daniel vai continuar solteiro e a insinuar-se para tudo quanto é lado até ao Costa sair de cena …

Aliás não é só dele, mas comum a muitos outros pensadores que se dizem das Esquerdas, a tendência para em nome do purismo ideológico juntarem-se à Direita para atacarem a Esquerda (o PS), cometendo como que um “harakiri”. Mas convenhamos que ao fim e ao cabo eles sentem-se muito mais confortáveis na sua actividade quando a Direita está no poder. Daí, tanto eles como os próprios partidos à esquerda do PS pouco ou nada façam para o impedir…dói, mas é a verdade!

Eu, sem quaisquer receios a críticas veladas ou não dos “meus”, há algum tempo venho neste espaço chamando a atenção para o que eu considero um crescente caminho ao retorno do pré 2011, isto é, ao suicídio de uma certa esquerda por, tendo como fim único a conquista de ganhos no eleitorado à esquerda do PS, impedindo-lhe a maioria absoluta, ao entrarem no jogo da Direita através da participação conjunta em lutas contra este Governo …

Ora esta Direita, por muito que os Danieis Oliveira desta vida a subestimem, é inteligente e, mais importante ainda, não tem escrúpulos.

E este comportamento só serve, no meu entender, os interesses dessa Direita. E ao deixar que sejam os seus representantes (caso das greves dos Enfermeiros, por exemplo), através da Ordem e daquela enormidade de Sindicatos, a dirigir a greve e a decidir os modos de luta, só a sua credibilidade compromete. Mas ainda não se deram conta, ou o que interessa é mesmo fragilizar o Governo?

É que, exactamente ao invés do que eu venho escrevendo e alertando, o Daniel e outros, de um modo erróneo e diletante, vêm dissertando sobre a espuma dos dias, preferindo aterem-se a detalhes, como se os seus estados de alma fossem assim tão importantes e decisivos na manutenção deste Governo e na prossecução de uma política de esquerda. E dissecando afirmações de Costa, chamando-o até de “arrogante” no tratamento para com os seus aliados, como também “prepotente” quando Costa referiu a não entrada das esquerdas à esquerda do PS num futuro Governo, utilizando, pois, precisamente as mesmas palavras da Direita.

E o que fica depois disto tudo? É que o Daniel Oliveira e a Direita, o mesmo não pensando, mostram afinal pensar o mesmo!

E essa quase diletância, e essa ausência de fixação no que é realmente importante e decisivo para não voltarmos atrás, nota-se no “Eixo do Mal”, por exemplo onde, ao invés de um encontro de gente pensante abordando temas da actualidade, porque não, e projectos políticos, se transformou num encontro de amigos no café, numa tertúlia mesmo, com o permanente galhofar como pano de fundo da leviandade com que tratam o que devia ser sério. E o Daniel entra naquele jogo de “egos” cada um pugnando para ser o mais engraçado. Uma tristeza Daniel, uma tristeza…Já acompanhei, deixei de ver, vi os últimos dois programas e…parei novamente. Não tem jeito mesmo e não vejo quem aquilo queira mudar.

Eu estou e estarei sempre disponível para o contraditório, mas quem sou eu para que o Comentador Daniel perca um pouco do seu precioso tempo comigo? É que ele ganha à peça ou por avença nos sítios onde fala e escreve e o tempo é ouro- ganha pão-para ele! Eu já o tinha chamado à atenção por duas vezes, mesmo depois de troca de argumentos em Posts no Facebook, onde por mim interpelado manteve de modo sobranceiro a sua postura e não tive outro remédio que publicar dois duros textos ( um sobre o Centeno a quem ele chamou de “nabo” em politica e outro acerca da morte  de Fidel onde ele afirma, assim de peito cheio de ar, que Cuba tem um sistema de Saúde perfeito, um sistema de Educação exemplar e o Desporto massificado, entre outros exemplos, mas faltava-lhe o pequeno almoço, o almoço e o jantar… Levou e levou forte, como tinha que ser e podem relembrar: (Daniel, Um Noviço em Nabiças) e  ( Daniel, o Pensador)…

E chamo a Vossa especial atenção para este último texto pois aqui estão muito bem expressas as nossas diferenças e o porquê de, mais uma vez, não conseguir deixar passar… desta vez, embora de modo diferente, também tem que parar para pensar ou então a sua credibilidade perante mim ficará gravemente ferida. Eu só respondo por mim, é claro, e só eu sou responsável pelo que escrevo. Claro!

Mas ao Comentador Oliveira exige-se sempre mais rigor, exige-se continuidade e, acima de tudo, coerência. E uma marca de DIFERENÇA, que teimo em tentar encontrar, passe a sua habilidade dialética e a rapidez de pensamento. Mas, se realmente defende as Esquerdas e um Governo progressista das Esquerdas, embora o facto de continuar “solteiro” possa servir de atenuante, deve pugnar por essa mesma Esquerda, sem quaisquer tibiezas e hesitações pesem os coletes de forças onde actua dentro do politicamente correcto, para que estas forças continuem detendo o poder, não cedendo nunca à crítica fácil a esta Esquerda que nos Governa.

E nem é preciso aqui dizer que, não consigo sequer dizer se bem se mal, faz opinião! E ao dizer que “faz opinião” quero dizer que, com uma simples aparição num debate na TV, seja ela qual for, ele atinge mais gente que todos os Blogs juntos… mas a sua responsabilidade cresce exponencialmente, não tenhamos dúvidas!

Mas, e daí os motivos deste texto e desta veemente critica, uma salutar critica a quem pela sua exposição e dimensão não pode deixar nunca de fazer vincar as suas posições (coisas que dificilmente tenho notado), o Comentador Daniel no que às leitura politicas diz respeito, tem sido de um diletantismo tal que eu não me eximo a Ir ao fundo do fundo do seu pensamento e tentar vislumbrar o alcance da essência da essência do que quer dizer com estas algumas frases…:

-“Cada vez que o PS sobe nas sondagens ele afasta-se do “espirito” da Geringonça”… E conclui que o PS é simplesmente o “porteiro do Poder”! Conseguem atingir?!!!

– “Costa só pode decidir sozinho se tiver maioria absoluta (La Palice di-lo-ia também…)! Esta frase é tão profunda que nem eu, mesmo meditando, consegui alcançar o significado! Mas apenas pergunto: e se o PS for o partido mais votado, não atingir a maioria e pretender formar governo, um governo minoritário: o que farão o BE e o PCP? Viabilizam, tal como fizeram na génese da Geringonça ou voltam ao passado, esse do “quanto pior melhor”? Desde já afirmo que decididamente votarei PS. A não ser que… Percebe, Daniel?

Até eleitores Socialistas sabem como o PS é um adolescente. Quando fica sozinho em casa, as suas festas costumam provocar estragos”. Ora isto é, ipsis verbis, o que diz a Direita. Até atribuem a Milton Friedmam, o guru da descola de Chicago, a tal que dizia que o Mercado se regulava a si próprio (e viu-se à saciedade quanto isso era uma falácia) aquela frase de que se os socialistas fossem governar os desertos até as areias desapareceriam… O Daniel não tem vergonha de copiar a Direita e, ainda por cima, no mais redutor e populista que ela consegue?

E finalmente: “ É este Governo que, com as cativações, desvirtua um Orçamento aprovado, não é o Parlamento que, com alterações na especialidade, desvirtua um Orçamento por aprovar…”.

Desculpe-me Daniel mas esta frase, tendo sido por si escrita, só pode ter sido passada a papel em momento de embriaguez ou sono absoluto! Nem é preciso alongar…

Mas, o Daniel também entende ser um Orçamento uma coisa elástica? Só se for o de sua casa, uma casa onde as receitas são tais que não são precisas cativações, isto é, receitas que ficam de lado para uma posterior compra: um carro novo, uma viagem de sonho ou um casamento inesperado. Um daqueles que até nos fazem largar tudo… olaré, e se não fossem aquelas benditas cativações…É melhor pensar nisso, ó Daniel! Olhe que é melhor do que ser Comendador!

Eu ia, para finalizar, falar das “coligações negativas” mas nem o vou fazer. Só vou referir aquilo que o grande Comentador Oliveira acerca do referido proclamou:

Nunca houve coligação negativa alguma, tanto na votação do PEC 4, como na contagem do tempo de serviço dos Professores, na questão dos Enfermeiros ou nas propostas Orçamentais rectificadas onde, afirma o Daniel, o BE e o PCP se mantiveram onde sempre estiveram e que os outros (os Partidos de Direita) é que se deslocaram…

A agitação social e as suas motivações

  por estatuadesal

(Carlos Esperança, 07/12/2018)

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Não discuto o direito à greve ou a legitimidade das que estão em curso e se multiplicam, às vezes sem assegurar sequer os serviços mínimos. Faltam-me elementos para julgar cada uma delas, e ninguém melhor do que os profissionais para as avaliarem.

Há aspirações legítimas para as quais pode não haver recursos e certamente outras cuja satisfação aumentaria as desigualdades e injustiças sociais. Não tenho ideias definitivas sobre o frenesim da agitação social nos mais variados sectores de atividade da função pública, a dez meses das eleições legislativas.

Temo, isso sim, as greves que não são mediadas pelos sindicatos e as movimentações sociais alheias aos partidos políticos. O ambiente é demasiado complexo para rotular as reivindicações, mas é suficientemente claro que há um efeito tóxico que pode contaminar as mais justas e urgentes, o efeito que causam na opinião pública e cujas consequência cabe aos sindicalistas avaliar.

Quem viaja nos transportes públicos frequentados por populações suburbanas, menos contidas nas emoções e mais exuberantes na sua exteriorização, não pode deixar de se arrepiar com a raiva e violência verbal que qualquer demagogo pode transformar em votos.

Sou apoiante deste governo e, sobretudo, da fórmula que o sustenta, o que raramente me sucedeu com outros, e temo menos a queda deste do que a chegada do próximo. Nunca apoiarei um governo de que não possa ser opositor nem um outro que, embora aceitando eleições livres, não respeite os direitos humanos.

A vida está difícil para quem deseja conciliar a independência de espírito, num ambiente que encerra inúmeras contradições e demasiadas incógnitas, e não prescinde de exprimir as suas opiniões e exercer a participação cívica a que se julga obrigado.

A viagem no autocarro 16, que entra na cidade de Coimbra e sai de volta aos arredores, onde se misturam pessoas de diversas faixas económicas e sociais, revela bem o rancor que cresce nas camadas mais desfavorecidas. É o efeito tóxico das reivindicações, ainda que justas, nas camadas mais desfavorecidas e despolitizadas.

É neste húmus que pescam os demagogos e populistas. Dá que pensar.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

“Fake news”

Novo artigo em Aventar


por dariosilva

Até lá vem a foto a prová-lo: quem lê o artigo da Sábado fica a saber que companhia aérea Emirates tem um avião forrado a diamantes. A Sábado garante mesmo que a artista paquistanesa é conhecida pelas suas "criações com brilhantes". Só não diz que a artista cria imagens digitais com cristais à mistura. E, portanto, nunca revestiu nenhum avião com pedrinhas brilhantes.
O lapso jornalístico teria apenas piada se uma multidão de comentadores se manifeste, minuto a minuto, com o ultraje que é a "ostentação" de riqueza por parte da companhia aérea. 
Ah, a Emirates diz claramente que a imagem é uma criação  da artista Sara Shakeel. Uma criação, a imagem, não a porra do avião… que, claro está, não fez nenhuma viagem "brilhante" entre o Paquistão e Itália.

O povo, esse empecilho

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 06/12/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

No seu uso actual e mais corrente, “populismo” é uma palavra-maná. Dizem os dicionários e enciclopédias que “maná” é um termo com origem na Polinésia. Passou a ser usado no vocabulário da Antropologia a partir do momento em que o grande antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) a colocou no centro das suas elaborações teóricas sobre a magia e o xamanismo.

Na introdução a um livro de Mauss, Claude Lévi-Strauss, baseado na linguística, chamou “significante-flutuante” ao maná. O que é um significante-flutuante? É uma palavra desprovida de qualquer significação determinada, um significante que não encontrou um significado para formar um signo. E isto acontece porque em qualquer linguagem há sempre significantes a mais, isto é, um excesso na ordem dos significantes em relação à ordem dos significados, o que é, aliás, a condição necessária para que exista poesia, literatura. Na teoria política, tem havido nos últimos anos esse esforço de dar à palavra o rigor de um conceito, mas na linguagem do jornalismo e do discurso dos políticos continua a ser um maná.

Se Lincoln voltasse hoje à terra e proclamasse outra vez “the government of the people, by the people, for the people” seria considerado um perigoso populista. Algo profundamente negativo e perigoso existe hoje, de facto, que assombra a política e cujo nome próprio pode ser “populismo”. Mas esse nome tem um alcance tão alargado por usos indevidos que criou este paradoxo: há muitas vezes uma boa dose de demagogia na nomeação e a denúncia do populismo.

Há dias, neste jornal, São José Almeida, num trabalho sobre a fraca penetração do populismo nos partidos portugueses, citava uma investigadora do ICS, Susana Salgado, que dava este exemplo como sintoma de um populismo emergente: “Catarina Martins, na última Convenção [do Bloco] fez um grande uso técnico de se colocar do lado do povo: só nós damos resposta aos vossos anseios”. Presumo que Susana Salgado fará um trabalho sério e rigoroso sobre o populismo, no âmbito da sua investigação, mas estas declarações são demasiado simplificadoras (para responder aos “anseios” do discurso corrente sobre o populismo?): não é normal que um político se coloque do lado do povo e o invoque? Mais ainda: haverá democracia – ou mesmo política – sem esta invocação?

É verdade que existem muitos “povos”, e o de Catarina Martins não é o mesmo de Assunção Cristas, assim como o “povo soberano” da democracia não é o mesmo que o “povo trabalhador” dos partidos comunistas. No uso imoderado que hoje se faz da palavra “populismo”, revela-se uma figura que é o seu contrário ou a sua sombra, uma formação eminentemente ideológica que merece o nome de demofobia, isto é, a alergia a toda a política que faz apelo a uma figura do “povo”, por mais desfigurada que ela esteja, por mais que tenha desaparecido o medo de um “povo revolucionário”.

Na pior das hipóteses, como aconteceu agora em França, há um povo da revolta, mas a revolta não é o mesmo que revolução: a revolução implica um cálculo estratégico de longa duração e uma experiência do tempo da história que estão completamente ausentes da revolta, em que a experiência do tempo é a do quotidiano. A revolta não visa nenhuma transformação do tempo histórico, não quer instituir um novo calendário. Há uma deriva demofóbica que desafia todos os princípio da democracia e a aniquila a partir do seu interior.

A demofobia aparece à luz do dia quando as medidas dos governos, visando satisfazer reivindicações do “povo”, são imediatamente classificadas como “populistas”.

O que se tornou “natural” e altamente “responsável” é governar para exercer um castigo. Ao populismo, opõe-se uma ideia de rigor, disciplina e verdade que são profundamente ideológicos: trata-se do rigor e da verdade de uma “governamentalidade” que se apresenta como tendo uma justificação “científica”, subtraindo-se  a toda a justificação ideológica. É de demofobia que se trata, efectivamente, em muitos discursos que vêem em todo o lado emergências populistas.