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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Para João Miguel Tavares, a igualdade é ninguém ter direitos

Ladrões de Bicicletas


Posted: 10 Dec 2018 04:04 AM PST

É sempre muito instrutivo acompanhar a nossa estimada direita, sobretudo a que se toma por democrática e sofisticada. JMT, na senda dos apoios a Trump e Le Pen, resolveu atirar-se ao direito à greve dos funcionários públicos. Vejam a acutilância dos argumentos:
"Muitos funcionários públicos nem os salários perdem, porque os sindicatos quotizam-se para repor o dinheiro."
E os sindicatos quotizam-se junto de quem, caro JMT? Vendem rifas na rua?
"Pior: essas greves são feitas num sector onde o trabalhador nunca corre o risco de perder o emprego."
É, de facto, uma pena a proteção do trabalho. Se se pudesse despedir os grevistas, andava tudo mais mansinho.
"Nos Estados Unidos, estão mesmo proibidos de fazer greve na maior parte dos estados, incluindo Nova Iorque."
Um exemplo para todos nós, vindo de um país que está nos últimos lugares da OCDE em desigualdade de rendimentos, taxa de pobreza, taxa de pobreza infantil e taxa de trabalhadores pobres, nesta última batido pela Polónia, que é um dos outros dois exemplos para JMT. O terceiro é um paraíso fiscal (Luxemburgo).
"As greves no sector público não são um problema apenas entre o trabalhador e o seu empregador – como acontece, por exemplo, no caso da Autoeuropa, que é uma questão entre a Volkswagen e os seus funcionários, com a qual pouco ou nada temos a ver."
Os argumentos da direita sobre greves e Autoeuropa são de geometria muito variável. Se os estivadores fazem greve, estão a prejudicar o país porque a Autoeuropa não consegue escoar os automóveis. Se são os próprios trabalhadores da Autoeuropa que param e a discussão é outra, então já não faz mal. E se a greve for na EDP? E se for na Fertagus? Ou nos CTT? Também só afectam o patrão e o trabalhador? A verdade é que todas as greves afectam terceiros. JMT defende o direito à greve, desde que seja o de trabalhadores que podem ser despedidos no dia seguinte.
"Se o sector público tem privilégios únicos, também deveria ter obrigações exclusivas. Algo tem de mudar."
Os trabalhadores da Função Pública gozam de direitos de trabalho elementares, nos quais assentaram todas as democracias europeias e um contrato social que deu à Europa o maior período de prosperidade de sempre. Um privilegiado é alguém que ganha mais do que qualquer funcionário público para ser a voz dos donos. E que, vendo trabalhadores com direitos e trabalhadores sem direitos, não hesita: Tire-se os direitos a todos.

Entre as brumas da memória


E Macron falou

Posted: 10 Dec 2018 01:06 PM PST

Não sei se ficou claro que o aumento de 100 euros do salário mínimo anunciado por Macron será suportado pelo Estado (ou seja pelos impostos dos franceses), mesmo para o sector privado, e não pelo patrões.

Segundo os comentadores, essa e outras medidas decididas farão disparar o déficit de França para além de 3%. Acontecesse isto em Portugal, por qualquer mui nobre motivo, e o presidente do Eurogrupo estaria aos tiros contra o nosso ministro das Finanças. Assim, Centeno-Eurogrupo meterá a viola no saco porque se trata da França, Centeno-MF lutará por déficit = 0% para Portugal.

E ainda há quem duvide do poder da rua!

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Thomas Piketty e Manifesto do dia

Posted: 10 Dec 2018 10:58 AM PST

Our manifesto to save Europe from itself.
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A Declaração dos Direitos Humanos tem 70 anos

Posted: 10 Dec 2018 07:59 AM PST

Em 10 de Dezembro de 1948, os países-membros da ONU aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com 48 votos a favor e 8 abstenções (União Soviética, Bielorússia, Ucrânia, Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia, Arábia Saudita, e África do Sul). A iniciativa surgiu como uma reacção às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra.

A Declaração lida por Eleanor Roosevelt.
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Trump é uma ameaça à democracia e Xi Jinping não é?

Posted: 10 Dec 2018 02:59 AM PST

«1. Se não tivéssemos qualquer ideia da China poderíamos ser tentados a pensar que é um caso único no mundo. Um país onde só há negócios, comércio, exportações e investimentos. Um mercado importante, gigantesco na sua dimensão, com imensas oportunidades. Quanto à política — e às questões políticas — não existem, nem para os chineses, nem para quem se relaciona com estes. Esta representação, com raras excepções, feita na imprensa portuguesa, no contexto da visita do Presidente chinês, Xi Jinping, é admirável. É a mesma imprensa onde, todos os dias, vemos preocupações com as ameaças à democracia e aos direitos humanos, oriundas do populismo, dos nacionalismos, da xenofobia, do racismo, etc. Mas nada disso existe, ou parece existir, na China. Assim, nas relações com os chineses só existe a economia, só existem exportações, só existem investimentos, só existem negócios. Tudo o resto é irrelevante. O facto de Xi Jinping presidir ao maior Estado autoritário do mundo não interessa nada. Não se pode, nem deve, criticar um país que investe em massa em Portugal e dá oportunidades de mercado às empresas portuguesas. (Ver “Presidente chinês é ‘dono disto tudo’. Comentário de chefe de divisão no MNE é ‘lamentável’, diz ministro” in Público, 4/12/2018). Nem também fazer mini-manifestações de apoio ao Tibete anexado pela China: estragam a imagem boa imagem que Xi Jinping tem dos portugueses e os negócios. (Ver “Chineses tapam protesto de activistas pela libertação do Tibete” in Público, 4/12/2018).

2. Tudo na política e economia internacional tem múltiplas facetas e normalmente também um reverso. Sob uma imagem superficial de grande amizade e cooperação económica com a China, Portugal já está a ser condicionado na sua política interna e externa. É uma ilusão habilmente alimentada pelo governo chinês a existência de uma relação paritária, de benefícios mútuos simétricos. Pela importância mundial da China (que, obviamente, Portugal não tem), pelos investimentos estratégicos — na energia eléctrica, nas redes de distribuição, na banca e na própria imprensa portuguesa —, o Estado chinês tem já, nas suas mãos, instrumentos eficazes de condicionamento do Estado e da sociedade portuguesa. Tudo indica que não foi por acaso que o presidente chinês publicou um artigo no Diário de Notícias. (Ver “Presidente chinês escreve artigo no DN e fala de "uma parceria virada para o futuro" in Diário de Notícias, 2/12/2018). Esse jornal está inserido num grupo de empresas de comunicação social detidas por empresários de Macau / chineses — o que, de uma forma, ou de outra, leva também ao Estado chinês. (Ver “Chineses formalizam entrada no capital da dona do ‘DN’ e ‘JN’”? in Expresso, 9/10/2016). É verdade que, no contexto da visita de Xi Jinping, é perfeitamente normal o grande destaque dado à China na imprensa, bem como a publicação de diversos artigos analisando as ligações económicas já existentes, ou a desenvolver, entre os dois países. Ao mesmo tempo, há também uma significativa comunidade chinesa a viver entre nós, a grande maioria de gente humilde e muito trabalhadora, a qual faz um esforço notável de integração. Pelas ligações históricas e culturais do passado, é também natural que o presidente chinês tenha feito uma alusão à rota da seda, a Macau e a Camões. É uma competente estratégia diplomática de softpowerpara criar empatia. O problema é outro.

3. A China tem sido extraordinariamente bem-sucedida a ditar os termos em que se processa (e se discute publicamente) a sua relação com ela. Portugal, como “bom aluno”, aprendeu rapidamente. E os nossos governos gostam de agradar aos poderosos, seja na União Europeia (Alemanha e França), seja fora dela. Neste caso, o que chama mais à atenção foi o que não se falou durante a permanência de XI Jinping: economia, comércio e investimento sim; política, democracia e direitos humanos não. O Estado português evadiu completamente os assuntos políticos, da democracia e dos direitos humanos. A própria imprensa, em grande parte, os minimizou, seja por falta de espírito crítico analítico, seja por uma quase (auto)censura neste assunto. Tibete, uigures do Xianjiang, sistema de vigilância e controlo da Internet, repressão de críticos e dissidentes, inexistência de pluralismo político, liberdade de imprensa e de eleições livres, conflitos com os vizinhos no mar do Sul da China. Quase nada. Terra ignota. São assuntos de soberania e meras questões internas, como afirma oficialmente a diplomacia chinesa. Nada que deva preocupar o mundo exterior. Se aceitamos que seja assim, acabemos, então, com a hipocrisia europeia. Os direitos humanos só são direitos humanos se valerem (e forem aplicáveis) a toda humanidade. O resto é idealismo ou retórica vazia. Quando muito, serão direitos europeus ou ocidentais. Nada mais do que isso. Se não se aplicam à China onde vive cerca de 18% da humanidade — pois são uma ingerência interna na soberania desse Estado —, então os valores europeus, que a União Europeia afirma também ligar ao comércio, são uma abordagem hipócrita, uma ingerência externa nos Estados vulneráveis. São um instrumento de pressão sobre Estados fracos, como é o caso da maioria dos africanos, aos quais os europeus estão sempre a apontar o dedo (casos do Zimbabwe, Guiné Equatorial, etc.).

4. Pelas denúncias da Amnistia Internacional sabemos que a China está a proceder a violações em massa dos Direitos Humanos no Xinjiang (ver “China: Families of up to one million detained in mass “re-education” drive demand answers” in Amnesty International). Não sendo a situação exactamente a mesma, faz, todavia, sentido colocá-la em paralelo com o caso dos rohingyas na Birmânia / Myanmar. (Ver “Quem são os rohingyas, povo muçulmano que a ONU diz ser alvo de limpeza étnica”, in BBC, 13/09/2017). Em ambos os casos há, nesta mesma altura, denúncias de violações graves de direitos humanos. Trata-se, nas duas situações, de minorias ligadas a grupos étnicos e/ou religiosos diferentes da componente maioritária do país onde vivem — os uigures na China e os rohingyas da Birmânia/Myanmar. Em ambos os casos esses grupos minoritários queixam-se de ser objecto de discriminação e/ou perseguição pelas respectivas autoridades estaduais. Claro que, na óptica do Estado chinês e do Estado birmanês, a explicação é outra: o que está em causa são grupos separatistas que praticam actos de violência e terrorismo, pondo em causa a segurança nacional. Mas o contraste é flagrante: o caso dos rohingyas tem tido bastante atenção mediática a nível europeu e ocidental. Já o caso dos uigures do Xinjiang passa praticamente despercebido. A conclusão é cristalina: azar dos Estados pobres e fracos que estão sujeitos a escrutínio e ingerências externas. Se a Birmânia/Myanmar tivesse algo comparável ao poder da China — e os seus instrumentos económicos e comerciais — rapidamente os europeus e ocidentais deixariam de ver graves violações de direitos humanos. Tal como acontece com a China, ditaria os termos em que realizaria e discutiria publicamente a relação a esta. Só comércio e negócios.

5. Donald Trump é visto por muitos com grande apreensão, como trazendo uma ameaça séria à democracia liberal (ver “Donald Trump is a unique threat to American democracy” in Washington Post 22/07/2016). Essa preocupação é comum também fora dos EUA, especialmente na Europa. Não ocorre por acaso. Donald Trump não é presidente de um país qualquer, mas da maior potência mundial, com grandes tradições democráticas e liberais. Influencia o mundo exterior. Os sucessos de partidos e líderes populistas — como Jair Bolsonaro no Brasil —, têm sido também explicados pelo “efeito Trump”. Rodrigo Duterte (nas Filipinas), Viktor Orbán (na Hungria), Matteo Salvini (em Itália) e outros populistas / nacionalistas um pouco pelo mundo ganharam força pela proximidade com o estilo de liderança e visão do mundo de Donald Trump. Alguns receiam que até possa fazer regressar ao nacionalismo dos anos 1920/1930. Tudo isso é extraordinariamente contrastivo com a ignorância, ou benevolência acrítica, face ao impacto internacional da liderança de Xi Jinping no mundo. Como se a China — e a liderança de Xi Jinping —, que combinam capitalismo com autoritarismo e nacionalismo, suprimindo qualquer veleidade de democracia liberal, não tivessem qualquer importância, nem fossem um modelo em expansão no mundo. Não, o mundo dos anos 1920 e 1930 não vai voltar. A Europa já não é centro do mundo e quem dita o rumo dos acontecimentos são outros. Convém perceber a realidade: a China tem cada vez mais seguidores, sobretudo nas partes do mundo que os europeus ignoram (Ásia e África) nas suas narrativas eurocêntricas e obcecadas com Trump. No Ocidente, Vladimir Putin (Rússia) e Recep Tayyip Erdogan (Turquia), são criticados por serem autoritários. Mas ainda se dão ao trabalho de fazer eleições, ou um simulacro delas. Na China de Xi Jinping não se perde tempo com tais detalhes. Trump é um problema sério para a democracia liberal pela sua deriva populista, mas a democracia norte-americana tem mecanismos que o constrangem e limitam. Quanto à China de Xi Jinping, é um modelo em ascensão, um caso de sucesso de poder absoluto e irrestrito do Estado. Quando vemos a ameaça populista à democracia de Trump e ficamos míopes e calados face ao autoritarismo de Xi Jinping, estamos a descredibilizar a democracia liberal. Pior, estamos a abrir a porta ao autoritarismo entre nós.»

José Pedro Teixeira Fernandes

Fisco, um diálogo de surdos

Novo artigo em Aventar


por j. manuel cordeiro

Hoje, o Fisco teve a amabilidade de me enviar spam, num email escrito com assunto capitalizado, gritando

INQUÉRITO (PORTAL DAS FINANÇAS) 2018
bla bla bla bla bla bla e tal
Agradeço, desde já, a sua colaboração a trabalhar de borla, tal como no e-factuara, melhores cumprimentos e tal,
O Subdiretor-Geral
Manuel Gonçalves Cecílio

Não sei se o senhor Cecílio ouviu falar em RGPD. Parece que está relacionado, entre outras coisas, com o uso de dados pessoais para fins não autorizados e com o combate da praga do spam.

Educadamente, respondi que preferia não receber spam, tendo de imediato sido informado que do lado de lá não estão para se chatear a ler emails.

Este endereço não se destina a comunicação com a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Solicitamos que enderece a sua mensagem através dos contactos disponibilizados no Portal da Autoridade Tributária e Aduaneira em
http://www.portaldasfinancas.gov.pt

Pronto, era só isto. Agora vou voltar ao trabalho, que tenho impostos para pagar.

Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), agora justamente denominada dos Direitos Humanos

  por estatuadesal

(Carlos Esperança, 10/12/2018)

bolso(Em homenagem a Lula da Silva)

Proclamada há 70 anos, em Paris, subscrita por 48 países, conta hoje com mais de 180 países que a subscreveram. Assim a respeitassem todos, incluindo aqueles que tinham reservas e os que nunca honraram os 30 artigos, que carecem de caráter vinculativo, por não se tratar de um tratado ou pacto. Foi uma grande vitória para a ONU e uma enorme esperança para a Humanidade. (Ver texto da Declaração aqui).

A adesão de Portugal, a viver na ditadura que sobreviveu à derrota do nazi/fascismo, só se verificou a 14 de dezembro de 1955 e não passou de uma formalidade que o regime não tinha intenção de cumprir.

É fácil escrever sobre os Direitos Humanos, difícil é fazê-los respeitar. A DUDH é uma mera carta de intenções quando os regimes se tornam autoritários, a Justiça se politiza e os interesses económicos são postos em causa.

O aparecimento de um numeroso grupo de dirigentes políticos poderosos, que chegaram ao poder por eleições, nomeação ou herança, pôs em risco conquistas que tínhamos por adquiridas. Trump, Putin, Xi Jimping, Erdogan, Duterte, Salvini, Bolsonaro, Bin Salman e outros biltres ameaçam os direitos civilizacionais que a DUDH consagra.

Hoje, dia 10 de dezembro de 2018, 70 anos depois de tão auspiciosa Declaração que a ONU proclamou, evoco os migrantes, os milhões de pessoas condenadas à morte, por inanição, deslocados, massacrados por guerras ou envenenados por armas químicas.

Hoje, mesmo em países que chegaram à civilização e se livraram do poder do clero, há interesses que postergam os direitos humanos e exercem o poder discricionário.

No dia de hoje penso em Lula da Silva, vítima de nebuloso processo cujas provas são os testemunhos de arguidos que beneficiaram das declarações. A sua prisão, investigação e condenação devem-se a um juiz que trocou a justiça pela vingança, a investigação pela luta partidária e a sentença pela carreira política, substituindo a maior honra de um juiz – a independência –, pelo poder político ao serviço de um déspota abrutalhado, ignóbil e fascista que ele ajudou a eleger e cujo pagamento aceitou à frente do superministério que lhe reservou.

Hoje, nesta celebração cheia de incógnitas e nuvens sombrias temo pela vida de Lula da Silva, metáfora de todos os que injusta e iniquamente vêem desrespeitados os mais elementares direitos humanos. Temo pela tortura e humilhação a que um governo torpe o pode sujeitar.

A foto que publico é motivo de todas as inquietações e o mundo não tem um governante preponderante comprometido na defesa dos Direitos Humanos. Pelo contrário, os mais poderosos são coniventes com a sua violação.

O certo é o incerto

  por estatuadesal

(Ferreira Fernandes, in Diário de Notícias, 09/12/2018)

ferreira_fernandes

Em março de 1968, num editorial que se tornaria célebre, escreveu-se no jornal Le Monde: "A França aborrece-se." Poucas semanas passadas, foi o turbilhão do Maio de 68... Meio século depois, estamos exatamente na mesma, não sabemos o que vem aí. Mas, desta vez, temos uma certeza: o que quer que seja a vir é inesperado. E enorme. O certo é o incerto, que pode tornar-se esmagador.

Foi o Brexit imprevisível, pois da mais velha democracia do mundo não se esperava tiros nos próprios pés. Foi Trump na Casa Branca, quando ele nunca enganou ninguém: estando lá onde o puseram, inevitavelmente ele ontem escreveria no Twitter que nas ruas de Paris se gritava "Queremos Trump!" (não era em Paris, não foi ontem, não foi uma multidão, foi só um correligionário num vídeo, mas ficou decretada mais essa pós-verdade presidencial). Foi Bolsonaro a ganhar as presidenciais no Brasil, num continente onde os sargentos analfabetos tradicionalmente só tomavam o poder com golpe (gente, eu sei que Bolsonaro não é sargento analfabeto, é só capitão). Enfim, o mundo está demasiado previsível, acontece sempre o inesperado.

Pode faltar gasóleo barato nas cidades francesas de província, emprego nas minas de carvão dos Apalaches ou segurança nas favelas brasileiras, mas soluções e líderes estapafúrdios não faltam. Por cada reivindicação, quase todas elas legítimas, já não acontece o costumeiro: os governantes arremedam e os cidadãos, no dia do voto, confirmam ter ficado sossegados. Agora, eis a nova época (já não é só moda passageira): aparece um tipo colorido e tonitruante, e personifica a contestação (Trump, Bolsonaro...) Ou um palhaço surge e logo desaparece mas deixa a confusão instalada (Beppe Grillo em Itália, Farage na Grã-Bretanha...) Ou a multidão enche as ruas ou as urnas (França, Andaluzia...) e deixa-nos frente a um muro.

Fosse o lugar disto um palco e estávamos mais bem servidos do que nos tempos fastidiosos em que a democracia nos embalava. Mas, não, não é espetáculo, pelo menos daqueles em que o pano acabava por cair e nos devolvia ao ramerrame da vida. Por mais que eles se caricaturem (vermelhuscos de solário, palavras de tolo, mentiras de garoto indecente), eles são perigosos. Na fase inicial, que é a que vivemos, aparecem em manada votando tiros nos pés ou partindo montras e, quando em pessoa, epifenómenos exprimindo iniquidades. Mas isso é o menos, não fossem estes sucessivos inesperados (agora, certos de acontecerem) anunciar um descontrolo político em futuro próximo.

Não, não é fascismo. Nem Trump é Hitler, nem os cavaleiros andaluzes que prometem a Reconquista o são. Não, não é fascismo. Ainda não é a violência organizada, o assalto ao poder para institucionalizar o fim da democracia. Por enquanto. É sobre esta certeza - isto caminha para o descontrolo político num futuro próximo - que tem de se ponderar. Sobretudo os políticos têm de pensar nisso. Falo destes, dos nossos, de todos de esquerda e de direita para quem a democracia tem de ser. Tem? Então comecem por não cometer pecadilhos (metáfora piedosa) que nos dias de hoje podem tornar-se capitais.

Os diversos intermediários para a desgraça ainda são só isso, intermediários, antecâmara de um enorme sei lá o quê. Mas já são intermediários porque lhes abriram as portas da cidade dos cidadãos. Cada um dos conseguimentos deles tiveram cúmplices involuntários dentro da cidade. A corrupção da direita e da esquerda brasileiras trouxe para elas o desmoronamento e, para os brasileiros, Bolsonaro. O gosto pela politiquice levou Cameron, um anti-Brexit, a fazer um referendo imprudente e estúpido que criou uma crise continental. Os pactos parlamentares dos socialistas espanhóis com independentistas - mesmo com aqueles que tinham acabado de organizar uma sedição nacional - levaram muitos andaluzes a abandonar o PSOE, a maior força política da região.

Os políticos para quem a democracia tem de ser, esses, têm de saber que os tempos não estão para brincadeiras. Então, não brinquem. Uma coisa é certa, à espreita está uma multidão iludida por um perigoso agitado. E, se aquela é iludida e este é culpado, não restam dúvidas de que os brincalhões não vão inocentes para o caixote do lixo da História.