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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O fim progressivo das propinas é uma decisão sensata

  por estatuadesal

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 15/01/2019)

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Tal como muitas pessoas da minha geração, uma parte importante do tempo que passei na faculdade foi ocupado com o debate e o protesto em torno do aumento das propinas do ensino superior. Mais de um quarto de século depois surpreende-me a repetição dos termos da discussão. Grande parte deles são mais ou menos deliberadamente erróneos. Outros tendem a passar ao lado dos argumentos relevantes.

Aqueles que defendem o valor actual, senão o aumento, das propinas sustentam a sua posição em dois argumentos principais. Primeiro, grande parte dos alunos que frequenta o ensino superior não tem dificuldade em cobrir os custos financeiros dessa frequência. Segundo, a obtenção de um diploma de nível superior permite aos indivíduos obter maiores níveis de remuneração no futuro. Logo, reduzir as propinas seria não só ineficiente (já que uma parte dos recursos assim gastos não conduziria a um maior número de licenciados) mas também socialmente injusto (uma vez que constituiria uma transferência de rendimentos de toda a sociedade para indivíduos que são à partida, ou serão no futuro, membros de um grupo privilegiado).

De acordo com esta visão, a melhor forma de aumentar o número de licenciados em Portugal consiste em reforçar o montante e a abrangência das bolsas para estudantes necessitados, bem como reduzir outros custos de frequência do ensino superior (nomeadamente, os custos de alojamento). Caso se optasse pela redução das propinas, essa perda de receita teria de ser compensada de alguma forma, podendo significar uma menor disponibilidade de verbas para apoio aos estudantes carenciados (bolsas, residências, etc.).

A ideia de que os estudantes do ensino superior público constituem uma elite económica é em larga medida equivocada. Já o era em 1991/1992, quando a guerra das propinas começou, ainda o é mais agora. Há muito que a educação pós-secundária deixou de ser reservada aos filhos dos mais ricos.

Por detrás da aparente razoabilidade, este tipo de raciocínio parte de pressupostos erróneos e ignora aspectos relevantes do problema.

Desde logo, os argumentos referidos pressupõem que a justiça social deve ser feita através do pagamento de taxas de frequência do ensino público - os estudantes mais abastados devem pagar para que outros tenham acesso a bolsas e residências. Ora, no sistema fiscal português a redistribuição é feita primordialmente através do pagamento de impostos e não de taxas. No caso das propinas, a questão é ainda mais caricata: cobram-se propinas com base no argumento de que os licenciados receberão salários mais elevados, como se fizesse sentido taxar alguém com base em expectativas de rendimentos futuros. No futuro, os licenciados pagarão os impostos correspondentes ao seu nível de rendimentos - pagarão mais impostos se receberem muito, menos impostos se receberem pouco. Não é agora que se vai fazer justiça sobre um futuro que é incerto.

Para mais, a ideia de que os estudantes do ensino superior público constituem uma elite económica é em larga medida equivocada. Já o era em 1991/1992, quando a guerra das propinas começou, ainda o é mais agora. Há muito que a educação pós-secundária deixou de ser reservada aos filhos dos mais ricos. O número de estudantes neste nível de ensino duplicou desde início da década de noventa, estando hoje acima dos 370 mil. Teria sido impossível concretizar este salto quantitativo sem a chegada ao sistema de muitas dezenas de milhares de estudantes de origens sociais menos favorecidas.

Os elevados custos e a incerteza sobre os benefícios do ensino superior constituem desincentivos para quem pondera adiar a entrada no mercado de trabalho por três anos, abdicando dos rendimentos imediatos que poderia obter (os economistas chamam a isto custos de oportunidade)

Se é verdade que cerca de 1/5 dos alunos beneficia de bolsas de estudo, há porém muitos estudantes cujas famílias não são suficientemente pobres para terem direito a uma bolsa, mas que têm de fazer um esforço financeiro avultado para suportar a frequência de um filho ou filha no ensino superior (o que significa pagar propinas, alojamento, deslocações, material escolar, etc.). Portugal é mesmo um dos países europeus onde as propinas pagas pelos estudantes não bolseiros são mais elevadas (mesmo após a redução decidida no Orçamento do Estado para 2019).

Se os custos são elevados, os retornos individuais do investimento em educação superior estão longe ser garantidos. Sendo certo que algumas licenciaturas de instituições específicas têm níveis muito elevados de empregabilidade, isto não é verdade para a generalidade dos cursos. E à medida que o número de licenciados aumenta (o que é uma necessidade evidente para a economia e a sociedade portuguesas), diminui o prémio salarial para quem tem um curso superior e diminui também a certeza de um emprego de qualidade.

Os elevados custos e a incerteza sobre os benefícios do ensino superior constituem desincentivos para quem pondera adiar a entrada no mercado de trabalho por três anos, abdicando dos rendimentos imediatos que poderia obter (os economistas chamam a isto custos de oportunidade). O desincentivo é tanto maior quanto mais avessas ao risco forem as famílias - e tipicamente são as famílias menos abastadas (não apenas as mais pobres) as que têm maior aversão ao risco.

A combinação de elevados custos directos, custos de oportunidade, custos subjectivos e incerteza quanto aos retornos do investimento constituem obstáculos efectivos no acesso ao ensino superior, principalmente para indivíduos oriundos das classes médias que ficam excluídos do acesso à acção social

Mas não é tudo. A discussão sobre a bondade das propinas no ensino superior faz-se habitualmente tendo como referência os rendimentos dos pais. No entanto, estamos a falar de jovens adultos, que legitimamente aspiram à sua independência. Para estes indivíduos os custos subjectivos do prolongamento da dependência financeira da família (ou do peso que o próprio representa para terceiros) não são menos avultados do que outros. Estes custos não afectam apenas os jovens oriundos das famílias mais pobres, sendo comuns nas classes médias.

Em suma, a combinação de elevados custos directos, custos de oportunidade, custos subjectivos e incerteza quanto aos retornos do investimento constituem obstáculos efectivos no acesso ao ensino superior, principalmente para indivíduos oriundos das classes médias que ficam excluídos do acesso à acção social. Tendo isto presente, a eliminação das propinas é mesmo uma decisão sensata - que de resto tem vindo a ser seguida por um número crescente de países.

Há bons motivos para defender que a eliminação das propinas do ensino superior, sendo um objectivo estratégico a prazo, deve resultar de um processo gradual. A eliminação súbita dessa receita só poderia ser conseguida através de cortes noutras despesas ou do aumento de outras receitas. É particularmente preocupante a possibilidade de a abolição de propinas das licenciaturas ser conseguida à custa de um aumento dos valores já elevados das propinas de mestrado - o que transferiria e agravaria as injustiças para o nível de ensino seguinte. Com tempo, o crescimento económico permitirá ao Estado ir abdicando daquela receita sem ter de sacrificar outras despesas no imediato ou impor aumentos de outras taxas. Este é, parece-me, o caminho sensato a seguir.


Economista e professor do ISCTE-IUL. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Fernando Pessoa é pornográfico?

  por estatuadesal

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 16/01/2019)

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Qualquer miúdo ou miúda de 17 ou 18 anos sabe digitar a palavra "porn" no motor de busca do seu telemóvel para garantir acesso, instantâneo, a um mundo de milhões de vídeos de sexo explícito, convencionais ou bizarros, de casais ou em grupos, heterossexuais ou gays, divertidos ou violentos, de todas as variantes possíveis.

A facilidade de difusão massiva da pornografia no mundo de hoje terá certamente efeitos no comportamento sexual e afetivo de grande parte da população. Desconheço se estão apropriadamente estudados no universo académico (desconfio que não) e não me atrevo a escrever tiradas moralistas ou pseudo analíticas sobre a bondade ou a maldade dessa realidade.

Não tenho opinião formada sobre a massificação da pornografia e desconfio bastante de quem tem opiniões muito fortes sobre o tema: normalmente são cérebros com alma de censores.

Mas acho esquisito verificar ser relativamente banal haver casais que trocam mensagens com fotografias dos seus órgãos genitais: até um antigo secretário de Estado foi apanhado a fazer isso.... Usar a fotografia de um pénis como substituição de uma convencional frase de engate deveria, simplesmente, conduzir a um resultado desastroso... mas eu sei lá!

A geração dos meus pais, que lutou pela libertação sexual contra os rigores da moral católica e traficava às escondidas o Marquês de Sade, classificaria, mesmo assim, o ambiente atual de "dissoluto": afinal, quando tinha 13 anos, tentaram evitar que eu lesse uma das novelas mais insonsas da literatura portuguesa, a "Morgadinha dos Canaviais", de Júlio Dinis, com receio que o relato das paixões amorosas dos protagonistas me fizesse mal à cabeça de pré-adolescente.

É , portanto, num contexto que há 15 ou 20 anos facilmente, sem que ninguém se risse, seria classificado de "libertino" por vários líderes reverenciáveis da nossa sociedade, que surge, dissonante, a notícia do corte de três versos da Ode Triunfal de Fernando Pessoa, num manual da Porto Editora para alunos do 12º ano - ou seja, para rapazes e raparigas com 17 ou 18 anos de idade.

Os versos em causa são estes: "Ó automóveis apinhados de pândegos e putas" e, mais à frente, "E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o!/ Masturbam homens de aspecto decente nos vãos da escada".

Vejo aqui, entre muitos outros, dois fenómenos particularmente interessantes: por um lado, a desorientação de uma editora (com trabalho mais do que meritório ao longo de décadas) face ao criticismo com que a opinião publicada, provocada e amplificada pela orgia insultuosa das redes sociais, passou a apreciar, todos os anos, os conteúdos dos manuais escolares: desde a condenação dos livros diferentes para meninos e meninas até ao debate sobre o nível de exigência dos compêndios de matemática, tudo é escrutinado à lupa.

Provavelmente foi a antecipação da polémica que levou a Porto Editoria a cair na polémica.

Este é um pequeno exemplo de um efeito provocado pela desproporcionada relevância que os decisores, no Estado ou nas empresas, dão ao que se escreve sobre eles nos jornais e ao que se diz nas redes sociais: dar importância excessiva a tal pressão leva à prática recorrente de uma autocensura com critérios contraditórios e erráticos, castradora, reacionária, paralisante.

Quanto mais desbragado é o debate público, mais convencionais e ineficazes são as decisões dos responsáveis.

O outro fenómeno que queria aqui referir, a propósito deste incidente, é a perceção que me fica de uma tendência também generalizada para a infantilização dos adolescentes, a tentativa de perenizar uma superproteção física e moral que pais, encarregados de educação, pedagogos e instituições educativas procuram aplicar.

Os nossos miúdos, aos 18 anos, são legalmente considerados adultos, têm, para esta gente, maturidade para serem cidadãos autónomos, para se endividarem, para votar mas não estão preparados para enfrentar a mente atormentada de Álvaro de Campos, o heterónimo de Fernando Pessoa que escreveu os 240 versos da Ode Triunfal.

Ah! e ainda há outro ângulo: quantos professores, numa sala de aula cheia de alunos de 17 ou 18 anos, provavelmente desatentos, entretidos com o telemóvel, se sentem com arcaboiço para contextualizar, discutir, analisar e interpretar a Ode Triunfal, dizendo, em voz clara e firme, o verso "Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada"?...

Ladrões de Bicicletas


António Fonseca Ferreira

Posted: 15 Jan 2019 04:50 PM PST

Morreu António Fonseca Ferreira. Para quem nos anos noventa começasse a ter interesse pela questão da habitação em Portugal, procurando relacionar a evolução das políticas com as formas de produção e ocupação de alojamentos, as transformações económicas e sociais e o processo de acumulação capitalista, encontrava em «Por uma nova política de habitação» (1987) uma porta privilegiada de entrada para conhecer o setor. Num tempo em que era ainda escassa a produção científica sobre a questão do alojamento em Portugal (num reflexo da crónica subalternização da habitação face a políticas como as de educação e saúde), a obra mapeava pistas de pesquisa e integrava, tanto de um ponto de vista temporal como analítico, referências em regra dispersas e fragmentadas. Por tudo isto, talvez não seja exagero considerar que se trata do primeiro ensaio de economia política da habitação escrito em Portugal.
Com a criação, em meados dos anos oitenta, da revista «Sociedade e Território», de que é fundador, Fonseca Ferreira contribuiria para congregar reflexões diversas sobre as questões do alojamento, urbanismo e política de cidades ou os processos de planeamento local e regional, aliando a produção de conhecimento a um intenso ativismo social e político. Engenheiro civil de formação, António Fonseca Ferreira exerceu funções de docência (ISCTE e Universidade Atlântica) e, entre outras, de Presidente da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo (1998 a 2009), Director Municipal e Assessor do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Jorge Sampaio) e Director de Serviços no Fundo de Fomento da Habitação.
Em 1993, Fonseca Ferreira coordenou a elaboração do «Livro Branco sobre a Política de Habitação em Portugal», apresentado e debatido no Encontro Nacional de Habitação, que contribuiria - no contexto de uma das «Presidências Abertas» de Mário Soares - para obrigar o executivo de Cavaco Silva a responder às carências habitacionais persistentes nas áreas metropolitanas, descompondo assim a narrativa governamental que tentava projetar Portugal como um «oásis» situado «no pelotão da frente» europeu.

Nacionalizar

Posted: 15 Jan 2019 08:55 AM PST

Na semana passada ficámos a saber que, se depender dos CTT, 48 municípios ficarão sem estações de correio. A pergunta não desaparece mesmo: como se destrói um Estado nacional, uma comunidade política com instituições inclusivas?
É por estas e por muitas outras que, para lá do “vírus do proteccionismo”, o “vírus do nacionalismo” também se espalha: nacionalizar é preciso, afinal de contas. Se o primeiro vírus atingiu este blogue, contrário à globalização neoliberal, desde o início, o segundo vírus, na sua versão cívica e democrática, o melhor contra-fogo às outras, atingiu o que vou escrevendo por  aqui e por ali  mais ou menos a partir de 2013:
Está prometida a privatização dos CTT – Correios de Portugal, entretanto já amputados das suas “lojas” menos rentáveis. Uma das instituições públicas seculares, que deu densidade ao território nacional, que garantiu com segurança o acesso a um bem social fundamental, que em suma criou comunidade será entregue a uma empresa privada, provavelmente estrangeira, que cuidará de outros interesses que não os que estão associados a uma necessidade dos cidadãos que aqui vivem. Uma comunidade nacional não é só um produto, maleável e mutável, socialmente imaginado, ainda que este imaginar seja decisivo, bem como a luta pela sua hegemonia. Uma comunidade nacional ganha densidade material através de instituições como os correios, a escola pública, o serviço nacional de saúde ou a segurança social e é letalmente ameaçada pela destruição do que é de todos, dos serviços públicos universais que são um dos momentos em que se conjuga, com validade, uma politicamente poderosa primeira pessoa do plural, um “nós” com implicações igualitárias. O socialismo democrático sempre dependeu desta conjugação, o que de resto não passou despercebido, por exemplo, a Friedrich Hayek, um dos seus adversários e defensor de um regime pós-nacional, de tipo federal, como melhor garantia de uma democracia limitada e de fraquíssimo alcance redistributivo, até porque necessariamente desprovida da noção de “comunidade de destino”.

Entre as brumas da memória


O Brasil a ultrapassar as expectativas

Posted: 15 Jan 2019 11:20 AM PST

Ministra de Bolsonaro lamenta que a ciência seja tomada por...cientistas!

«A Igreja Evangélica perdeu espaço na História. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A Igreja Evangélica deixou a ciência para lá. "Ah, vamos deixar a ciência caminhar sozinha". E aí cientistas tomaram conta dessa área. E nós nos afastamos» – diz ela.

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Luther King faria hoje 90

Posted: 15 Jan 2019 09:18 AM PST

Não vos posso prometer que não vos batam,
Não vos posso prometer que não vos assaltem a casa,
Não vos posso prometer que não vos magoem um pouco.
Apesar disso, temos que continuar a lutar pelo que é justo.
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Quando o PPD se dizia «de esquerda»

Posted: 15 Jan 2019 06:21 AM PST

I Congresso do PPD, Novembro de 1974. Quando algum PSD não se cala com o regresso às origens, não perder esta pérola.

(Via Renato Soeiro no Facebook)
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As 50 sombras de um Portugal atrasado

Posted: 15 Jan 2019 03:08 AM PST

«O PÚBLICO deu conta da notícia do Expresso sobre a retirada de alguns versos do poema Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, de um livro escolar da Porto Editora. Estão em causa versos com notório conteúdo sexual.

O que me importa na notícia, para além de lamentar a mutilação de qualquer peça literária, em qualquer circunstância, é ainda a pequenez de espírito de algumas mentes que, por dever de ofício, deveriam revelar uma muito maior largueza de vistas.

Trata-se, contudo, de um mero sintoma de uma questão bem mais profunda e que permanece em Portugal à entrada da década de 20 do séc. XXI: o modo como se encara o sexo. E isto temporalmente próximo de uma reportagem em que se dava nota de “terapias de conversão” de homossexuais, alegadamente levadas a cabo por uma psicóloga que insistia em se afirmar católica e com o beneplácito de alguns sacerdotes. Que Freud e outros autores da sua escola de pensamento neguem a homossexualidade qua tale, é um facto científico já desmontado por quem estuda a área.

Somos, na verdade, uma nação que ainda não percebeu que a sexualidade humana é uma mera componente da nossa personalidade e que, sendo por certo de grande relevo, não nos define na totalidade, nem dita o que mais interessa na relação que estabelecemos uns com os outros. Significa isto que, numa sociedade em que o sexo se acha tão sobrevalorizado, dizer-se hetero, gay, bi, lésbica, intersexo, trans, ou qualquer outra coisa, é apenas e tão-só a assumpção, para o/a próprio/a de um rótulo que o/a ajuda a sentir-se enquadrado/a.

E o ser humano necessita, para se sentir mais seguro, de etiquetas. Sou do FCP, sou bancário, sou de esquerda, gosto de francesinhas, aprecio cinema de Hollywood. Uma espécie de cartão de cidadão que nos identifica quase sempre mais perante os outros que perante nós. E isto porque nós somos isso tudo e o seu contrário, dependendo dos dias, dos minutos e dos segundos.

Não se define o humano, por natureza indefinível, e o convite que os tempos actuais nos lançam é o de não insistirmos em definir as pessoas pelo seu sexo, orientação política, ideológica, pertença a um clube. Somos bem mais que isso. Qualquer caracterização serve apenas e tão-só para saciarmos a vontade humana de defesa do outro: ele/ela está já etiquetado/a e, por isso, dentro das minhas categoriais cognitivo-comportamentais, já sei como lidar com ele/ela.

Simplesmente, a auto e heteroetiquetagem podem provocar dores internas imensas. E dissabores profissionais. Pessoalmente, quando falo com alguém, por instinto, parto do princípio que essa pessoa é, no mínimo, dotada da mesma massa cinzenta que eu. É uma característica que me tem sido de grande utilidade, tantas são as vezes que vejo um engravatado fazer figuras tristes ante um suposto esfarrapado de cabelo desgrenhado e que lhe dá dez a zero em inteligência, argumentação e cultura.

Em Portugal, o hábito ainda faz, em grande medida, o monge. E se o hábito não corresponde à etiqueta, então não será grande coisa. Entre um advogado enfatado e um outro de jeans e t-shirt, p. ex., sem que se saiba nada sobre qualquer deles, é humano a maioria decidir-se pelo da gravata. Que pode bem ser o menos competente. Avaliamos ainda muito o conteúdo pelo recipiente, esquecendo que os melhores conteúdos se estão a marimbar para a suposta beleza onde se acham contidas.

A luta fratricida no PSD é mais um exemplo disto. Agora sabemos melhor quem são “eles” e “nós” e é caricato o coro de virgens ofendidas com a luta pelo poder de Montenegro e sua entourage. O que é um partido político senão uma forma mais ou menos organizada de chegar e conservar o poder, num sistema político que, imperfeito, é melhor que todos os demais juntos? Se é bonito, eticamente falando? Talvez não, mas também não é mais bonito ser frontal que andar diariamente a fustigar Rio pelas costas? E aí virá uma clarificação, pelo que voltamos à necessidade do preto e branco, do maniqueísmo que nos tem seguros (não é nenhuma piada ao lugar paralelo que se quer estabelecer entre a luta de galos Seguro/Costa). Tudo normal. Só fumaça. Apenas é notícia porque urge preencher o espaço.

Com o que se volta à absoluta necessidade que tantos têm de pensar por nós. “Estes versos podem chocar e é melhor tirar para não causar embaraços aos professores”. Mentes pequeninas. Nada deve ser truncado. E a reflexão que esses precisos versos provocaria em espaço de aula? E os professores não necessitam de ser provocados, certamente detendo estratégias que lhes permitissem explicar o agora truncado na economia do poema e da lírica pessoana? Mas não. Há gente que gosta de pensar por nós. E vai daí – mesmo que sem maldade –, quer-nos poupar a coisas “desagradáveis”. E o que é a vida se não um constante diálogo com sentimentos de dor e prazer, como diriam Bentham e companhia?»

André Lamas Leite

O PS suspira por Montenegro

  por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 15/01/2019)

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É intriga, é autofagia, será o que se quiser, mas é também rotina no PSD. Ora, se o enredo se repete ao longo dos tempos, conceda-se que a importância é escassa, pouco vale como telenovela, trama previsível, afinal só se contavam os dias para saber quando Montenegro “avançaria”, e pouco vale como drama, afinal tudo se encaminha para o resultado que se sabe. Tudo isto é sempre uma encenação sem adereços e sem narrativa, com uma “vaga de fundo” que são duas deputadas a ajustar contas, outros aliados a calcularem as forças para não se queimarem demasiado e só sobra Maria Luís Albuquerque, a anunciar, afoita, que sai do seu mutismo para arrasar Rio mas a ficar-se por um modesto “preferia diretas” e assunto arrumado. É tudo poucochinho, como agora se diz nestes casos de labirintos partidários. Também a coisa não merece mais: Montenegro colecionou trivialidades e apresentou-as como programa político, algum jornalista enfunou o drama pedindo respostas “já hoje” de Rio, até houve o frisson de saber o que teriam conversado Rio e Marcelo, que puseram de imediato a constar que terá sido só descentralização e um vago assunto internacional, tudo uma maçada, e o dia acabou pacato, sem efusões exageradas nem chuvas de telegramas. Qual era a pressa?

Resta o poder silencioso do primeiro-ministro. O que quer Costa de todo este espetáculo? Pois quer a vitória de Montenegro, já, implacável, suculenta. Por duas razões, cada uma mais importante do que a outra. A primeira é que um PSD mais histriónico é o único que pode voltar a colocar nos carris a ideia da maioria absoluta. A recuperar votos, o PSD não vai longe, mesmo que os passistas se entusiasmassem a deitar abaixo Rio (e ainda seria preciso que conseguissem o golpe palaciano). Há muito que o PSD está em baixo. Nas últimas eleições, em que PSD e CDS somaram os votos, por pior que estivesse o CDS o PSD não passaria de 28%, a marca que já tem desde Santana Lopes, com a exceção do momento de fulgor contra o demitido Sócrates (quando chegou a 38% e, logo depois, perdeu quase um milhão de votos). Nas autárquicas, Passos Coelho (e Montenegro, então seu ajudante) conduziu o partido a uma das suas piores derrotas, incluindo uma humilhação em Lisboa com 11%. Em resumo, os salvadores de hoje já gastaram a sua oportunidade para criar a primeira boa impressão e afundaram o partido. Por isso, o que um Montenegro mais declarativo e passadista pode fazer é simplesmente ajudar Costa a fingir uma bipolarização, de que este precisa como de pão para a boca para se dirigir ao eleitorado de esquerda e pedir a sua condescendência. Perdendo pouco à direita e tendo o patronato a pedir uma maioria absoluta do PS, um apelo ao voto de esquerda contra o “regresso da direita” seria um truque maravilhoso. Montenegro quer oferecer a Costa esse subterfúgio e o PS já o percebeu e reza por ele.

A segunda razão é que a substituição de líder do PSD nas vésperas das eleições, se Montenegro ganhasse, evidenciaria um sentimento de desespero que vulnerabiliza antes de mais o salvador, que depois vai perder todas as eleições nacionais (até a da Madeira pode perder). Então o PSD deitou o homem abaixo, ofereceu o maior que tinha e foi arrasado logo à primeira e à segunda? E vai Montenegro embora, vem outro.

Para um Governo que, se voltar a enveredar pelo caminho tradicional do PS, será mais frágil em período mais difícil, este alívio dado por um ano de descalabro do PSD e, depois, pela sua derrota e mais algum tempo de confusão, é o mais saboroso dos presentes. Se o primeiro-ministro pensa a prazo, e pensa mesmo, este cenário Montenegro é a melhor oferta que lhe podiam fazer em 2019.