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quinta-feira, 7 de março de 2019

A Venezuela e o império americano

por estatuadesal

(José Pereira da Costa, in Público, 06/03/2019)

Tão amigos que eles são...

Actualmente, mais do que nunca, depois da implosão da União Soviética, a América não esconde a sua pretensão de domínio mundial, com todos os perigos que isso traz para a humanidade no seu conjunto.

Está em curso na Venezuela a finalização de mais um golpe dos Estados Unidos contra um país da América Latina, a juntar às dezenas de outras intervenções desde que foi anunciada a doutrina Monroe, pelo Presidente americano do mesmo nome, numa mensagem ao Congresso em Dezembro de 1823. Ou seja, que no continente americano, norte e sul, mandam os Estados Unidos. Na altura, a mensagem dirigia-se às potências europeias, uma vez que algumas das colónias sul-americanas ainda não tinham acedido à independência ou acabavam de o fazer. O espírito anticolonial dos fundadores da nação americana haveria de manifestar-se mais tarde por várias vezes, a de não menos importância aquando da fundação das Nações Unidas, em 1945, ao encabeçarem, juntamente com a União Soviética, o movimento de descolonização na Ásia e em África, contra as potências coloniais europeias, que só terminaria com o desmembramento do império português a partir de 25 de Abril de 1974. Mas a grande nação anticolonial transformou-se ela própria num império, com o objectivo de dominação mundial. É o insuspeito e conservador Raymond Aron que o explica na sua Republique Impériale, de 1973. E pouco depois da sua fundação e do quase extermínio dos povos nativos, desencadeia em 1845 uma guerra contra o México, roubando-lhe metade do seu território. Seguindo-se, no final do século XIX, a conquista das últimas e mais importantes colónias espanholas, Cuba, Porto Rico, Guam e Filipinas.

Actualmente, mais do que nunca, depois da implosão da União Soviética, não esconde a sua pretensão de domínio mundial, com todos os perigos que isso traz para a humanidade no seu conjunto. A revelação, há poucos anos, de que controla as comunicações electrónicas de todo o tipo e em todo o mundo, assim o comprova. Juntamente com as perto de mil bases militares instaladas em todos os continentes. Que mais falta ainda para se considerar o governo deste país como a maior ameaça à paz mundial desde o tempo do nazismo? Como o fazem amiúde intelectuais americanos e de outros países, tais como Noam Chomsky, Immanuel Wallerstein, John Mearsheimer, Stephen Walt, Perry Anderson, Samir Amin, Giovanni Arrighi, e muitos mais. Na nossa língua, a obra do brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, Formação do Império Americano, de 2006, faz um inventário da maior parte das suas intervenções militares, ou conspirativas, desde a sua fundação.

Depois de, na primeira década deste século, ter procedido à segunda invasão do Iraque e após um curto período de contenção com a presidência Obama, aí está novamente o complexo militar-industrial americano, em todo o seu esplendor, a ameaçar os seus mais directos rivais Rússia e China com uma intervenção na Venezuela. Como o primeiro Presidente Bush, em finais de 1990, havia feito ao invadir o Iraque para marcar terreno perante uma União Soviética prestes a implodir. (A esse propósito, é útil consultar o excelente estudo de Seymour Hersh, saído recentemente no London Review of Books n.º 41, de 24 de Janeiro passado, sobre a actividade secreta de uma equipa de antigos colaboradores do vice-presidente George H.W. Bush, quando foi director da CIA, e que pôs ao seu serviço numa guerra de espiões contra a URSS, desconhecida do Presidente Reagan e dos seus mais próximos colaboradores que conduziam a política externa).

Sobre a intervenção em curso na Venezuela é confrangedor constatar o que tem sido escrito e dito nos media portugueses por comentadores e académicos sobre uma pretensa Venezuela rica e desenvolvida no passado, com um “forte modelo de crescimento económico e estabilidade política”, que o chavismo teria arruinado. Quando a realidade mostra que o subcontinente latino-americano é das regiões mais subdesenvolvidas do mundo, onde mais de metade da população vive na maior das misérias, e a outra metade, a burguesia, está completamente alheada dessa situação e sempre pronta a contra-atacar os governos que historicamente tentaram fazer algo para reduzir as desigualdades gritantes. Foi o que aconteceu mais uma vez com o chavismo, de que Maduro é um subproduto, mas não o interveniente principal. Isso está bem visível. Tentar fazer passar que o golpe começou agora é um embuste. Quase há 20 anos, em 2002, deu-se a primeira tentativa para derrubar Chávez, tendo sido proclamado Presidente durante 48 horas um tal Carmona, apoiado pelos mesmos que estão actualmente por detrás de Juan Guaidó, o auto proclamado Presidente, num acto risível e sem qualquer legitimidade. Que o agente da CIA, Mike Pompeo, presentemente no governo americano, reconheceu poucos minutos depois, logo secundado pelo Grupo de Lima, onde estão os países enfeudados aos Estados Unidos. Primeiro golpe esse, numa altura em que o programa socialista ainda não tinha sido posto em prática, mas o seu simples anúncio já era motivo para o império americano intervir.

Aparentemente, enquanto os Estados Unidos se afundavam no pântano do Médio Oriente durante a primeira década do novo século, singravam alguns governos latino-americanos tentando minorar as imensas desigualdades, só comparáveis às do subcontinente indiano, a chamada “maior democracia do mundo”, onde metade da população vive na miséria, sem ter sequer acesso a instalações sanitárias, como reconhece o Prémio Nobel indiano Amartya Sen. Mas o império não dorme e na sua determinação de não permitir exemplos que possam despertar os povos oprimidos pelas burguesias latino-americanas ao seu serviço, conseguiu deitar abaixo os principais leaders que tiraram da miséria muitos milhões de cidadãos, no Brasil, na Venezuela, no Equador, na Argentina. A insuspeita revista brasileira Visão, muito activa na campanha contra o PT de Lula e Dilma, publicava em 28 de Dezembro de 2011 um artigo onde estranhava que cinco leaders progressistas tivessem sido atingidos por cancro. São eles, além de Lula e Dilma Rousseff, o malogrado Hugo Chávez, o paraguaio Fernando Lugo e a Presidente argentina Cristina Kirchner, cujo marido Nestor tinha falecido algum tempo antes.

As medidas recentíssimas dos Estados Unidos de bloqueio dos fundos da empresa venezuelana de petróleos PDVSA, e da sua filial que opera no território americano, são mais uma das decisões que não têm qualquer fundamento nem legitimidade, só comparáveis ao comportamento de George W. Bush, aquando da invasão do Iraque, em 2003, condenada pela maior parte dos países. E ao arrepio das Nações Unidas, onde à época imperava John Bolton como seu representante, o mesmo que faz parte actualmente da administração, e pretendia acabar com essa fundamental instituição, apresentando, em 2005, mais de 700 emendas ao projecto de reorganização de Kofi Annan.

Ao contrário de Henry Kissinger, que publicou em 2011 o seu On China, onde destaca a importância histórica daquele país ao longo dos séculos, e um artigo no mesmo ano no Washington Post defendendo a necessidade absoluta de evitar uma nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China, John Bolton, quase ao mesmo tempo, em 18 de Janeiro de 2011, dava uma entrevista ao Financial Times em que afirmava que a América, com outro Presidente depois de Obama, deveria encetar uma política musculada em relação à China. Os resultados estão à vista: guerra comercial, com graves prejuízos para ambas as partes e para a economia mundial, acusações não fundamentadas de espionagem contra a empresa Huawei, com a detenção no Canadá da sua principal responsável, a Sra. Meng Wanzhou. Para quem anda a espiar, declaradamente, há décadas, toda a gente no planeta Terra, é no mínimo uma grande falta de senso!

Investigador em Relações Internacionais; antigo funcionário da Comissão Europeia

quarta-feira, 6 de março de 2019

Ignorância e ódio velho

por estatuadesal

(Por Alfredo Barroso, in Jornal i, 04/03/2019)

1. EFEMÉRIDE – Espanta-me como criaturas completamente imbecis da direita mais reaccionária, intelectualmente desonestas e hipócritas, ignoram tão facilmente uma enorme porção de escândalos – como os do BCP, do BPN, do BPP, do BES, do BANIF, da Tecnoforma, do ‘canudo universitário’ do falso doutor Miguel Relvas, da herdade dos sobreiros, da compra dos submarinos, dos ‘Vistos Gold’, dos pequenos depósitos bancários feitos por um tal Jacinto Leite Capelo Rego que somaram um milhão de euros, e tantos outros pequenos, médios e grandes escândalos de corrupção em que estiveram mergulhados até ao pescoço vários políticos ‘graúdos’ do PPD-PSD e do CDS-PP – e como hoje em dia tais imbecis se atrevem a dizer que “estes agora são bem piores, escândalos atrás de escândalo, o ps no seu melhor” (sic), sem todavia nos dizerem que escândalos são esses. A hipocrisia, o fanatismo e o facciosismo são, de facto, características dominantes desses e dessas imbecis irresponsáveis da direita que surgem no ‘facebook’ a odiar, a insultar e a acusar sem provas.

O ódio vigilante dos medíocres não dá tréguas. Ainda há poucos dias, a evocação de um facto político ocorrido há mais de 30 anos – ilustrado por uma foto da varanda da sede, na praça do Saldanha, da primeira candidatura vitoriosa de Mário Soares a Presidente da República, na noite de 16 de Fevereiro de 1986 – foi para mim uma grata recordação, mas também foi, para alguns imbecis ignaros, mais um pretexto para manifestarem a sua ignorância e o seu ódio sempre vigilante.

Comentei essa foto, publicada no dia 16 de Fevereiro por uma ‘amiga de facebook’, explicando que, nesse momento, preferi resguardar-me atrás da janela e não quis chegar-me à frente, sobretudo quando vi alguns ‘paraquedistas’ e ‘apoiantes de última hora’ disputarem como doidos um lugar à frente na varanda. Mas foi, de facto, uma noite memorável. Lembro-me de ter estado, horas antes, com o meu primo-irmão Mário Barroso em casa do ainda candidato – com ele e a nossa tia Maria Barroso – à espera que chegasse a confirmação da vitória, por uma ‘unha negra’ – ainda mais saborosa por isso mesmo – ao cabo duma inesquecível eleição presidencial a duas voltas. Eu tinha 41 anos e o novo Presidente 61.

Dias depois, quando ferviam notícias nos jornais sobre quem é que Mário Soares iria escolher para Chefe da sua Casa Civil – e choviam nomes de gente famosa, todos eles sem acertarem no alvo – o Presidente eleito chamou-me ao seu gabinete, na sede de campanha, que era ao lado do meu gabinete, e perguntou-me se eu aceitava ser o Chefe da sua Casa Civil. Ninguém acreditará mas é mesmo verdade que não estava à espera, e nem sequer essa possibilidade me passara pela cabeça. Mas aceitei, com muita honra. E lá fomos os dois para o Palácio de Belém, e lá ficámos durante dez anos. Saí de lá com 51 anos e Mário Soares com 71. Mas, depois desses dez anos deveras interessantes, e não só do ponto de vista político, decidi dar por terminada a minha vida política activa, não regressando sequer à militância partidária. Ainda fiz uma ‘perninha’, de que muito me arrependi, como administrador da Fundação de São Carlos, convidado pelo ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho…

2. ÓDIO VELHO – Eis senão quando, de volta ao ‘facebook’, leio o comentário duma Fulana, de rara singeleza: “Lembro-me bem de essas eleições, foi nessas eleições que Cunhal mandou os comunistas fecharem os olhos e votarem Soares” (sic). Depois leio com perplexidade o que escreveu Beltrano: “Quanto mais teria sido feito se Freitas do Amaral tivesse sido eleito? Provavelmente muito” (sic). E logo a seguir leio o que escreveu um Sicrano afogado em ignorância: “E assim se prosseguiu no descontrolo das contas públicas, e a dívida a crescer” (sic). “Sancta simplicitas”!

Note-se que omiti os nomes verdadeiros, para não os humilhar. Mas não lhes vou poupar os factos reveladores de tamanha ignorância. O erro de Fulana nem é grave: o que Álvaro Cunhal disse aos comunistas foi que tapassem a foto de Mário Soares no boletim de voto mas não se enganassem e pusessem a ‘cruzinha’ à frente dela. Se fechassem os olhos, não conseguiriam votar. Quanto à fantasia de Beltrano, deu-lhe, coitado, para sonhar com o seu pequeno ‘paraíso perdido’, já habitado por Cavaco e ainda à espera de Freitas. Havia de ser lindo! Já se sabe que, se não tivesse havido o ‘25 de Abril’, também não teria havido liberdade e democracia! E Beltrano e amigos reaccionários, em vez de Freitas e Cavaco, teriam tido Tomás e Caetano…

Já Sicrano, perfeito imbecil que representa uma irritante e ignara estupidez, merece que exponha a sua ignorância. De facto, à luz da Constituição, só o Governo detém o poder executivo – e legislativo, administrativo, económico e financeiro – sendo dele a responsabilidade de gerir bem as contas públicas e, obviamente, a possibilidade de as ‘descontrolar’. Mais: quando Soares foi eleito, em Fevereiro de 1986, o Presidente da República nem sequer tinha ‘autonomia financeira’ relativamente ao seu próprio orçamento, que era estabelecido, exclusivamente, pelo Governo. E esta verdadeira aberração jurídica e constitucional só seria corrigida dez anos depois, já durante o primeiro mandato do Presidente Jorge Sampaio. Falo por experiência própria: fui o Chefe da Casa Civil do PR Mário Soares, durante os seus dois mandatos.

3. IGNORÂNCIA – Ao ler a crítica que lhe fiz, Sicrano, caso perdido, escreveu este mimo: “O ‘socialismo’, sr. Alfredo, essa marca que 4 décadas passadas tanto tem contribuído para uns tantos. E qual é o nosso lugar, como país, cada vez mais na cauda da Europa? Endividados como nunca…” (sic). Sicrano é ‘poucochinho’, nocivo e ignaro. Convirá, por isso, lembrar factos históricos indesmentíveis.

Desde logo, deverá ser recordado que um dos grandes ‘descontrolos’ das finanças públicas se ficou a dever aos três Governos da Aliança Democrática (AD), entre 1979 e 1983, designadamente: a perda de competitividade da economia; o agravamento brutal do défice externo; enorme endividamento em dólares das empresas públicas; e recusa de financiamento por parte do sistema financeiro internacional, face a um défice externo recorde. Pois bem, foi ao Governo do ‘Bloco Central’ (PS-PPD/PSD), chefiado por Mário Soares, entre 13 de Junho de 1983 e 6 de Novembro de 1985 (já que Cavaco rompeu a coligação mal foi eleito presidente do PPD-PSD), que o país ficou a dever: a recuperação da competitividade da economia; o controlo das contas públicas; o excedente da balança de transacções correntes; a eliminação do défice externo; a restauração da credibilidade de país face às instituições internacionais; a abertura do processo de reprivatização de importantes sectores da economia que tinham sido erradamente nacionalizados; a integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE, hoje União Europeia); a abertura ao mercado espanhol e as transferências de fundos de Bruxelas, graças à integração europeia.

Convirá, enfim, salientar os graves erros dos Governos de Cavaco. Como escreveu, em 2005, Teodora Cardoso: “Ao contrário da moda recente de criticar a opção pelas infraestruturas, não me parece que esta tenha sido um erro. Erros sim – e graves – foram a incapacidade: de usar eficazmente os fundos de formação profissional; de levar a cabo uma reforma do sistema de ensino que privilegiasse as necessidades da sociedade e da economia; de proceder a um correcto reordenamento do território e a uma reforma do processo orçamental que permitisse a descentralização racional da gestão pública; de criar uma administração pública e parceiros sociais preparados para encaminhar Portugal no sentido que a integração europeia e mundial lhe impunham. Ao contrário do que por vezes se diz, o facto de se construir estradas não impedia que se melhorasse a qualificação dos portugueses. Pelo contrário, face à abundância dos fundos estruturais e ao crescimento rápido da economia e da sua capacidade de financiamento, ambas as opções eram não só possíveis como, até, indispensáveis”. Foram, aliás, as consequências de tais erros – défices excessivos do sector público administrativo; aumento da despesa pública superior a 12 % entre 1990 e 1995; taxa de crescimento muito baixa (0,8 % em vez de 2, 8 %, como ele tinha prometido, entre 1991 e 1994); taxa de desemprego a crescer (superior a 7 % em 1994) – que levaram Cavaco, após o célebre ‘tabu’, a decidir afastar-se, não só da chefia do Governo mas também da liderança do PPD-PSD, passando, pois, a ‘batata quente’ para as mãos de Fernando Nogueira, que lhe sucederia na presidência do PPD-PSD e que viria a ser derrotado pelo PS de António Guterres nas eleições legislativas de 1995. Esta é a verdade dos factos, que nada tem a ver com a colossal ignorância que alimenta o ódio velho de tantos imbecis nas redes sociais!

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Tio Celito

António José Gouveia

Ontem às 00:01

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Se perguntar a um português quem é o tio Celito, responderão que talvez seja um artista do circo Cardinali. Se perguntar a um angolano, dirá que é Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente da República inicia hoje uma visita oficial àquele país que o batizou carinhosamente como tio Celito, quando, em setembro de 2017, se deslocou a Angola para a tomada de posse de João Lourenço. Como vem sendo normal, o presidente dos afetos conquistou o coração dos angolanos, mesmo numa altura em que as relações entre os dois países estavam bastante turvas por causa do "irritante" caso de Manuel Vicente e os tribunais portugueses. De lá para cá, em setembro do ano passado, António Costa esteve em Luanda a pisar o solo angolano em mocassins e calças de ganga, o presidente daquele país africano passou por Portugal em novembro para anunciar que está a "construir uma nova Angola". A base do novo país é, para João Lourenço, um verdadeiro combate à corrupção e a tentativa de fazer crescer uma economia fragilizada assente no sabor das cotações internacionais do petróleo. E claro, diminuir ao máximo o poder do seu antecessor José Eduardo dos Santos e da sua família. O seu grande desafio é fazer atrair investimento, e não necessariamente português. Por isso, iniciou desde a sua tomada de posse vários périplos a países que têm mais poder de fogo nesse aspeto, como a França ou a China. O primeiro com fortes investimentos na área do petróleo e o segundo como principal financiador daquele país. E qual é o papel de Portugal no meio dos titãs? E que, no mundo dos negócios, a língua em comum é importante mas não fundamental. Os portugueses têm de deixar de exportar para passar a produzir em Angola. Esse é o passo a sério que tem de ser dado. Mas para isso, João Lourenço terá de dar mais confiança a quem investe. É que a corrupção não termina de um dia para o outro. E o tio Celito pode ajudar.

Editor-executivo

Neto de Moura pensa como um agressor

Mariana Mortágua

Ontem às 00:00

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503 mortes em 15 anos que carregam o peso da realidade de milhares de mulheres, agredidas diariamente dentro das suas casas, em silêncio e terror.

São as nossas vizinhas, as nossas amigas, as nossas familiares. As mulheres que nos aparecem de noite à porta, com um nariz partido e um filho pela mão, para no dia seguinte voltarem a casa porque o que lhes sobra em medo falta em segurança e recursos. Tantas a quem foi dito que a culpa era delas, por não se comportarem, por não obedecerem, por serem putas.

Em 2010 uma mulher e a sua filha foram agredidas pelo marido. Um juiz atenuou a pena: "não podem ser ignoradas as referências a uma relação extraconjugal da ofendida".

Em 2013 uma mulher foi insultada e agredida com o filho bebé ao colo. Um juiz atenuou: "uma simples ofensa à integridade física, que está longe de poder considerar-se uma conduta maltratante suscetível de configurar violência doméstica".

Em 2016 uma mulher foi espancada com uma moca com pregos pelo marido e pelo amante. Um juiz atenuou: "o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher".

Em 2016 um homem furou o tímpano da mulher ao soco. Ameaçou matá-la e ao filho. Um juiz atenuou: "este caso de maus-tratos está longe de ser o mais grave que vimos nos tribunais".

Este juiz, que é Neto de Moura, entende que adultério é causa atendível para espancar uma mulher, que um murro no nariz é uma "simples ofensa", que dar "simples estalos" é atenuante, que pontapear a filha pode ser considerado um exercício de correção.

Este juiz não pode julgar agressores de violência doméstica porque pensa como eles: acredita que as mulheres merecem apanhar e que os homens têm justificações para as agredir.

Este juiz ameaça a segurança das mulheres que confiaram na justiça para as proteger.

Este juiz dá mau nome à magistratura.

Sei que, se escreve estas bestialidades, é porque tem a complacência do machismo que ainda habita em parte significativa da nossa justiça. É neste contexto que o Conselho Superior da Magistratura deve atuar. Tem poderes para o fazer. E o Parlamento tem também essa responsabilidade na discussão do Estatuto do Magistrado que está a fazer.

Nós, mulheres, vamos sair à rua do dia 8. Não queremos flores, queremos justiça, e queremos Neto de Moura fora dela. Que nos processe a todas. Talvez aí fique claro que isto não é sobre liberdade de expressão, é sobre as mulheres assassinadas e agredidas e sobre o seu direito à segurança.

Deputada do BE

Quem tem medo de Rui Pinto?

Pedro Ivo Carvalho

Hoje às 00:02

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A extradição para Portugal de Rui Pinto, o hacker suspeito de roubar emails a clubes de futebol e de extorsão ao fundo de investimentos Doyen Sports, torna ainda mais pertinente o debate sobre a importância da mensagem e do mensageiro.

Porque, ao olharmos para a forma como esta história evoluiu, não restam dúvidas de que no princípio era tudo sobre a mensagem e o conteúdo das revelações e agora, de uma forma retorcida mas nada surpreendente, tudo parece girar em torno do mensageiro. Transformar o caso Rui Pinto num costumeiro Porto-Benfica é o pior que pode acontecer a um processo que, tendo por base motivações não totalmente decifráveis, encerra um assinalável propósito de serviço e interesse públicos. Basta atentarmos no que aconteceu em Espanha, em Inglaterra e na Holanda. Basta percebermos a extensão das revelações do Football Leaks, que atingiram, entre outros, Ronaldo, Mourinho e Messi. E do que entretanto já foi recuperado em impostos. Fora de Portugal, entenda-se.

Ainda assim, há quem queira agitar o papão do "ele está a soldo de vocês sabem quem" para esvaziar a força da tempestade. A vantagem é que já percebemos de onde sopra e para onde sopra essa ventania. Não é a personalidade de Rui Pinto que vai estar em observação na lupa da Justiça portuguesa, nem tão-pouco as suas preferências clubísticas. É a qualidade da informação de que ele dispõe e o peso que a forma pode ter sobre o conteúdo. No fundo - e caso o recurso apresentado pelo pirata informático não tenha provimento -, como é que a nossa máquina de investigação, tão militante e seletiva sempre que há bolas de futebol a saltitar na sua esfera de influência, vai ser capaz de gerir o "conflito de interesses" entre o justiceiro e o criminoso? Resta-nos esperar que os "crimes" que ele possa ter cometido não sejam usados para abafar os "crimes" que ele ajudou a descobrir. Afinal, quem tem medo de Rui Pinto?

*Diretor-adjunto