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sábado, 20 de abril de 2019

As novas classes e a nova luta

por estatuadesal

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 20/04/2019)

Pedro Marques Lopes

Não é preciso um grande esforço de memória para lembrar quem se indignava contra aqueles que chamavam a atenção para os ataques ao interesse público que algumas greves punham em causa. O discurso, no essencial verdadeiro, salientava que elas eram tão mais efetivas quanto mais afetavam a comunidade em geral.

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O discurso, de há uns tempos a esta parte, mudou. A nova realidade de organizações de trabalhadores que não estão enquadradas nas grandes centrais sindicais ou sequer seguem o modelo dos sindicatos tradicionais - o STOP, o sindicato dos enfermeiros e agora o dos motoristas de substâncias perigosas - fez que estejamos a assistir a uma mudança na narrativa política acerca das organizações de defesa dos direitos dos trabalhadores. A multiplicação destes sindicatos é, sobretudo, a ponta do icebergue de uma mudança política bem mais profunda.

Tradicionalmente, as nossas organizações sindicais estão ligadas a uma visão da comunidade em que a defesa dos direitos dos trabalhadores, de todos os trabalhadores, é feita por ramificações de partidos que, em tese, colocam o valor do trabalho acima de todos os outros fatores de produção - e, tirando opções partidárias, fica a minha visão: é esse o valor certo.
As centrais sindicais ou apenas os sindicatos setoriais enquadravam a luta dos trabalhadores em geral, ou seja, alinhados com os valores políticos e doutrinários dos partidos e movimentos sociais de onde eram, no fundo, originários. Mas tinham outra função: obstar a que desequilíbrios normais não se acentuassem e não tivessem repercussões em diferenças salariais significativas: uma linha de autocarro não pode funcionar sem motoristas, mas pode por muito tempo operar sem os administrativos que lhes dão apoio.

O estertor do movimento sindical tradicional é evidente. A incapacidade de representar os trabalhadores fora do mercado, o abandono dos precários, a secundarização de quem trabalha no setor privado, a desregulação provocada pela globalização, são apenas algumas das razões. Sejam elas quais forem, a história não vai andar para trás e não parece que seja possível recuperar o movimento sindical como o conhecíamos e que funcionou bem durante um longo período de tempo.

Não é em vão que vamos assistindo a várias personalidades de esquerda a apelar ao bom senso e a ter um discurso que é de facto contrário a greves como a dos camionistas de substâncias perigosas. Não julgo se a preocupação é a de o colapso dos sindicatos tradicionais perturbarem os seus objetivos políticos ou se é por pensarem que os trabalhadores defenderão pior os seus direitos. Do que não tenho dúvidas é de que não estão a conseguir lidar com uma nova realidade que parece imparável. E essa é de alguns trabalhadores pensarem que conseguem atingir os seus objetivos de uma forma mais efetiva com outras maneiras de se organizarem e lutarem. E o facto é que este tipo de organizações está a crescer dia a dia e apresenta melhores resultados. São egoístas? Esquecem a "luta" global? Não se importam de parar um país em função dos interesses de pouquíssimas pessoas? Talvez seja tudo verdade, mas tem resultado e quando assim é o crescimento destes fenómenos é imparável.

O desespero e a incompreensão destas novas realidades geram acusações esdrúxulas em que se diz que estas novas realidades organizativas têm origem nos partidos de direita ou que estão ao serviço de movimentos de extrema-direita e que apenas querem semear o caos. Não há pior cego do que aquele que não quer ver.

A tal mudança política mais profunda parece ser a de que a luta de classes foi substituída pela luta de classes profissionais desenquadradas dos partidos e forças políticas.

No fundo, os sindicatos, os patrões e o Estado aceitavam um modelo em que todos acreditavam que cada um dos outros estava interessado na prossecução do bem comum. Ou seja, era uma tensão que gerava um equilíbrio. As greves eram só mais um instrumento.

Com a aparente falência deste modelo muitas coisas terão de mudar. Nesta semana, um pequeno grupo de trabalhadores bloqueou o país. A CGTP também bloqueava dirão uns; mas era para a defesa de muitos, dirão outros. É uma discussão que pode valer academicamente alguma coisa, mas já não tem que ver com a realidade. Repito, há uma lógica que mudou. E sim, não podemos estar expostos a que meia dúzia de pessoas, por muito justas que sejam as suas reivindicações, ponham em causa o bem-estar mínimo da comunidade. O tipo de instrumentos de luta, de negociação, terá de mudar, a acomodação dos interesses dos vários membros da comunidade será feita de outra maneira e, claro, sem nunca esquecer que na relação laboral há uma parte que é sempre mais fraca e que tem de ser protegida - e em Portugal, sobretudo no setor privado, tem de ser feita de uma forma bem melhor.

E não vale a pena agitar fantasmas do tipo "é tudo um esquema para limitar o direito à greve". Nada disso. O que não podemos é tentar manter realidades que pura e simplesmente já não funcionam. Talvez fossem melhores para todos e durante muito tempo resultaram, mas tentar mantê-las artificialmente ainda causará mais problemas e não só porque adiam a resolução de problemas fundamentais.

O que aí vem será melhor para a comunidade? Talvez não. Mas a evolução não é, demasiadas vezes, uma linha em direção a um mundo melhor.

Sim, houve colaboração com os russos. Sim, houve obstrução à Justiça

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 20/04/2019)

Pacheco Pereira

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Já me queixei disto e vou-me queixar outra vez: eu sou vítima do Trump. Sou vítima do Trump, porque a política americana desde 2016 é a mais interessante do mundo, a mais importante de seguir, a mais perigosa do mundo. Aquela em que melhor se pode perceber o que é o carisma, o que é a política pós-pós-moderna, a criatividade perversa, a degeneração interior da democracia, os mecanismos científicos de manipulação das massas na época das “redes sociais”, a autodestruição de um grande partido nacional pelo medo e pela gula, a tentativa de governar em autocracia, sem respeito pela separação de poderes, sem limites do “executivo”, a hipocrisia religiosa dos zelotas face ao poder, o ódio e o ridículo como instrumentos para rebaixar o adversário, o papel da violência sugerida e incentivada para destruir os laços sociais de vida em comum, a arregimentação dos “nossos” contra os “deles”, a relativização absoluta da verdade, a mentira e o abandono dos factos numa linguagem ficcional de slogans e propaganda. George Orwell deveria conhecer Trump para escrever um segundo 1984.

Eis o catálogo. Como é que se pode esperar que eu encontre qualquer forma de interesse nas vicissitudes políticas caseiras, feitas de palha e nada, este disse, aquele não disse, este fez um inuendo, aquele fez um contra-inuendo, esta fez um ataque a coisa nenhuma, aquele defendeu-se com uma mão-cheia de nada e por aí adiante? Não devia, mas não consigo. Chega Trump e o seu reino do mal e, com a diferença de horas, lá se vai a noite e a madrugada.

Agora, é esse documento fabuloso que é o relatório Mueller, pelo menos na parte que foi divulgada, com páginas cheias de linhas grossas a negro. Por detrás dessas linhas podem ter a certeza que há muito mais e mais importantes coisas que virão a ser conhecidas. Estamos mais no princípio do que no fim. Mas vale a pena ler tudo, é mesmo daqueles documentos que prendem a atenção e a leitura sem parar, muito melhor do que qualquer ficção política.

Com a mesma pressa e ligeireza analítica com que nos primeiros dias se desvalorizou a vitória democrática no Congresso, antes de se perceber que tudo mudara, agora ficamos umas semanas com a síntese mentirosa do procurador Barr a desvalorizar o relatório e as salvas de vitória com o mantra de Trump do “no collusion, no obstruction”, nenhuma das coisas confirmadas pelo relatório nestes termos propagandísticos. Pelo contrário, houve extensa colaboração com os russos, aquilo a que hoje se chama “sinergias”, mas não houve provas suficientes para a acusação de um crime. No entanto, vários colaboradores próximos de Trump vão para a cadeia exactamente por terem mentido sobre os seus contactos com os russos. Coincidências. É só esperar que um dia se abra o arquivo do GRU e do FSB, para então as partes encaixarem entre si. E se Trump lhes escapar, os russos são meninos para fazer “fugas” selectivamente. Nós sabemos e Trump também sabe.

E houve obstrução, que Mueller atira para cima do Congresso, sabendo muito bem que já será o novo Congresso democrático a decidir. O elo fraco da resistência a Trump é o Partido Democrático, e não é certo o que vai acontecer. Mas basta ler o relatório para se perceber a continuada tentativa de Trump de impedir as investigações, e Mueller escreve, preto no branco, que não pode exonerar o Presidente dessa acusação.

Depois, há os detalhes, imensos detalhes. Os detalhes são onde habita o Diabo, e aqui é uma confraria de diabos inteira que fica à solta. O relatório Mueller será sempre, por isso, um documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias intitulado “Como Se Destrói Uma Democracia por Dentro”. Claro que há muito precedentes, havia inconsistências legais, definições do poder executivo ambíguas, contradições, patologias da democracia americana, que são todas anteriores a Trump. Mas Trump usou-as todas em seu proveito para instituir uma presidência autocrática, acolitada por uma espécie de grand guignol, uma administração de gnomos maldosos, dirigida, moldada, dominada, por uma personagem carismática completamente amoral, capaz de fazer tudo o que acha que pode fazer sem pensar duas vezes.

É um erro considerar que Trump é um epifenómeno que passará depressa, uma anomalia que o “sistema” engolirá nas próximas eleições. A palavra carisma é muito mal usada por cá, mas é mesmo isso que Trump é, carismático, um tipo intuitivo, criador, poiético, que revelou mais do que ninguém as fragilidades da democracia no século XXI.

Mas o relatório Mueller faz-lhe muita mossa. Não era preciso ser um génio da análise para se perceber que vinha aí uma gigantesca pedra feita de detalhes e contexto que caía em cima de Trump, de Barr, de Pence, de Jared, de Ivanka, dos “trumpinhos”, de Sarah Sanders, de Kellyanne, e dos propagandistas da Fox News, Hannity, Tucker, e do partido da vergonha, os republicanos. Eles vivem na lama, e se calhar gostam dos salpicos, mas a pedra vem a caminho e é grande.

E a pedra vai-se dissolver aos poucos, com cada detalhe fazendo o seu caminho “revelador”, viral, moldando a cabeça das pessoas, umas (talvez poucas) mudando-lhes a opinião, outras mobilizando-as para a necessidade da “resistência”, e outras, talvez a maioria, dando-lhes consciência do perigo por que o país está a passar com este homem à frente. Por isso mesmo, Trump tinha razão quando disse sobre esta investigação: “I’m fucked.

“Já lhe parti o focinho!”

Novo artigo em Aventar


por Bruno Santos

Santana Castilho*

“Um aluno de 12 anos agrediu a pontapé e a soco um professor de 63, depois de este o admoestar por estar a brincar com uma bola dentro da sala de aula”, podia ler-se numa peça recente deste jornal. No desenvolvimento do texto, ficava-se a saber que o pequeno marginal tinha proferido a bazófia que “puxei” para título desta crónica. O tema foi objecto de múltiplas referências em jornais e televisões mas, 12 dias passados, está arquivado no limbo do esquecimento, para onde são remetidos os sucessivos episódios que documentam o mais grave problema da escola pública: a indisciplina. Com efeito, entre tantos outros, quem se lembra do caso de um aluno de 11 anos, violado por um colega no interior de uma escola de Montemor-o-Novo, do Leandro, 12 anos de vida, que se suicidou nas águas do Tua para fugir ao bullying dos colegas, ou do Luís, professor de música, que se atirou da Ponte 25 de Abril, “empurrado” por pequenos marginais que não o deixavam dar as suas aulas?

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Entre as brumas da memória


Assim vamos…

Posted: 19 Apr 2019 09:56 AM PDT

Este ser é o responsável geral do Partido Cidadania e Democracia Cristã e dizem-me que integra a lista de candidatos às Europeias pela coligação «Basta» (que queria ser «Chega»).

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Desculpem lá, mas hoje é o dia

Posted: 19 Apr 2019 06:05 AM PDT

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Afinal, onde estava esta extrema-direita de hoje?

Posted: 19 Apr 2019 03:17 AM PDT

«Ainda há poucos anos, sobre o avanço visível da extrema-direita por toda a Europa e as Américas (e Israel, claro), dizia-se que era coisa passageira de que era melhor não falar para não lhes dar importância. Achava-se que eram movimentos muito minoritários, raramente elegiam deputados e, quando o faziam, eram perfeitamente prescindíveis na constituição de maiorias de governo apesar de, já então, irem contaminando o discurso das direitas clássicas e marcando a agenda dos media. Depois de terem aproveitado a onda anticomunista do final do século XX para ocupar um espaço enorme no mapa político da Europa centro-oriental, transformaram o fim dos regimes que se reivindicavam comunistas numa oportunidade histórica para fazer uma crítica demolidora da democracia mais ou menos redistributiva para a qual o Ocidente capitalista fora obrigado a evoluir com o triunfo do antifascismo em 1945 e do movimento descolonizador ao longo dos vinte anos seguintes, ambos abrindo caminho à emancipação (sempre incompleta e ameaçada) das mulheres e das minorias étnicas e de orientação sexual. Os neofascistas do final do séc. XX e os racistas disfarçados de culturalistas (como se o problema para eles não estivesse na “raça” mas na “incompatibilidade cultural”) nunca estiveram sozinhos: a onda neoconservadora de Thatcher, Reagan e Kohl partilhava com eles a mesma leitura horrorizada do avanço das ideias socialistas na universalização da educação, da saúde e da segurança social pública que faziam social o chamado Estado de Bem Estar. Como a extrema-direita, também Thatcher achava que a desigualdade de classes, ou o próprio conceito de sociedade, eram puras mistificações marxistas; para ela, para Reagan e para a extrema-direita, o que havia era a Nação e os seus inimigos internos (nome que Thatcher deu aos mineiros da longa greve de 1984-85), era o Ocidente com o dever histórico de recuperar a sua supremacia. Sobre a Grã-Bretanha desses anos fazia-se a mesma pergunta que recentemente se fazia sobre Portugal e Espanha: porque razão não tinha ela uma forte Frente Nacional como a França? A resposta era simples (e é a mesma que deve ser dada sobre os casos ibéricos): porque ela estava dentro da direita tradicional, era thatcherista. Enquanto a enésima crise financeira do capitalismo internacional não desvertebrou os sistemas de representação do Ocidente, a extrema-direita não achou ser útil autonomizar-se. Quando o fez, de onde saíram todos os seus dirigentes? Dos partidos da direita tradicional – deixando lá dentro, como se vê bem, muitos aliados potenciais com os quais partilham ideias e políticas.

Salvo raras exceções, esta é a origem das direitas radicais dos últimos 25 anos: verificando que o estado de crise e guerra permanente em que o Ocidente passou a viver propicia um regresso a uma cosmovisão de medo do outro e de medo da perda, elas, que se haviam mantido ativas contra todas as mudanças do pós-1945 (direitos cívicos e sociais, descolonização, feminismo), acolhidas sempre no interior dos partidos das direitas de governo em todo o Ocidente, preferiram autonomizar-se e, a partir de fora, marcar o passo dos seus antigos correligionários. Desde Berlusconi, em 1994, até Trump e Bolsonaro, as direitas clássicas não hesitaram nos últimos 25 anos em se coligar com elas. E sempre que disseram que o não queriam fazer, roubaram-lhes o discurso – isto é, radicalizaram-se. Nos anos 30, a isto chamou-se outra coisa: fascizaram-se.

É o que está a suceder em Espanha: perdido na miríade de movimentos neofranquistas que sempre existiram desde a morte de Franco, o Vox, criado por dissidentes do PP, com forte presença de militares e de polícias (modelo que o Chega quer imitar em Portugal), passou de coisa pateticamente minúscula (0,2% nas eleições de 2016) a aliado de governo do PP e dos Ciudadanos na maior região de Espanha, a Andaluzia. Com as sondagens a darem-lhe agora mais de 10% dos votos, a direita clássica só com ele regressará ao poder. Para facilitar, fala como eles. Se o Vox quer acabar com as políticas de luta contra a violência de género “porque são discriminatórias”, o PP quer revogar o aborto. Para regressar a 1936 e ouvir a retórica nauseabunda da “Espanha partida” ou da equiparação dos presos políticos catalães a “terroristas”, não é preciso ouvir um neofascista do Vox: basta ouvir o PP ou os Ciudadanos.

A pergunta ingénua de porque não havia uma extrema-direita organizada em Portugal e em Espanha passou a ter a resposta óbvia. E sinistra.»

Manuel Loff

(Sem link, recebido por mail.)

Construir uma catedral

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 19/04/2019)

Notre-Dame

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Em 1985, na Kunsthalle de Basileia, enquanto este santuário da arte contemporânea expunha as obras do artista italiano Enzo Cucchi, teve lugar um encontro entre quatro figuras importantes da história da arte na segunda metade do século XX: Joseph Beuys, Anselm Kiefer, Enzo Cucchi e Jannis Kounellis. A discussão, conduzida pelo director do Kunsthalle, Jean-Christophe Ammann, resultou num livro em edição alemã e italiana (Ein Gespräch/ Una discussione).

A certa altura da discussão, Beuys incita à acção artística contra um inimigo, o materialismo (tanto sob a forma do capitalismo ocidental como sob a forma do capitalismo de Estado e do centralismo comunista do Leste europeu), que “reduziu o tamanho do ser humano em relação às suas possibilidades”.

A sua ideia é que a arte pode “recriar o ser humano na sua totalidade”. E, logo a seguir, prosseguindo a sua ideia da arte como grandioso empreendimento (mesmo quando é feita por todos), capaz de contrariar a redução do mundo e resgatar a consciência humana a essa redução, faz uma intempestiva injunção: “Devemos construir uma catedral”.

A catedral de Colónia tinha sido evocada pouco antes por Kounellis, que tinha dito que ela “remete para uma centralidade, engloba uma cultura e indica o futuro”. Mas não é uma catedral como a de Colónia que Beuys quer construir. Essa, diz ele, “é uma má escultura, daria uma boa estação de comboios. A de Chartres é melhor”.

E mais à frente, depois de ouvir as palavras mais prudentes de Kounellis (“Para construir uma catedral, é necessário um método e um conhecimento do passado”), reafirma a sua disposição: “Nós não estamos aqui reunidos para melhorar as nossa relações. Estamos aqui para construir uma catedral”, isto é, para retirar a arte da periferia e da não existência para onde ela foi empurrada “pelo sistema económico dominante”.

Podemos comentar estas afirmações, lembrando que muitos poetas modernos e romancistas, assim como artistas, embora conscientes, tal como Joseph Beuys, de que a cultura actual não pode ser marcada pelas catedrais góticas, recorreram ao símbolo da catedral e investiram nele uma enorme significação. Generalizando com algum cuidado, digamos que a catedral simboliza as aspirações culturais colectivas da Europa pré-moderna, mas também consagra a esperança de recuperar através da arte uma cultura perdida.

Muito em especial, foi esta a mensagem de Victor Hugo quando, na sua megalomania (Baudelaire disse uma vez que Victor Hugo era aquele que tinha a presunção de se tomar por Victor Hugo), afirmou que a sua obra, Notre Dame de Paris, esse colosso, tinha um poder destrutivo: “O livro vai matar o edifício”. Isto é: a catedral gótica seria reduzida à insignificância pelo monumento literário.

Balzac, por sua vez, comparou o trabalho de sua vida, a Comédie humaine, à catedral de Bruges. E Julia Kristeva, escrevendo sobre Proust, disse que o autor da Recherche perseguiu incessantemente o mesmo objectivo, de acordo com um programa que pode ser resumido nestes termos: “Se eu estiver à altura de penetrar nas memórias do tempo perdido, irei erigir uma nova catedral “

Voltemos à discussão no Kunsthalle de Basileia, para verificar que há uma diferença entre o projecto artístico de construir uma catedral, tal como Beuys e Kounellis o reivindicam, e o projecto literário de Proust. Afirma Kounellis quase no final de sua discussão com Beuys, Kiefer e Cucchi: “A construção da catedral é a construção de uma linguagem visível”. Nestas palavras, é o mundo “visível” que surge sublinhado.

Quanto a Victor Hugo e Balzac, ambos sentiram que a missão de criar uma comunidade cultural, literária, tinha-se deslocado da função ritual do culto para a leitura do romance de grande circulação. E enquanto Proust acreditava que o poder da memória individual era a base para construir o seu monumento literário, Kounellis pensa — e di-lo explicitamente — que “a construção de uma catedral é a construção da linguagem visível”.