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domingo, 21 de abril de 2019

A desfaçatez de certa direita

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 18/04/2019)

Certa direita não se satisfaz com o seu poder económico, o quase monopólio dos media, a devoção dos serventuários e as intrigas dos acólitos nas redes sociais.

A direita democrática está a ser devorada pela que nunca aceitou a democracia. Os netos do 28 de maio odeiam Abril, considerando excessiva a alternância democrática, e a alternativa de esquerda uma insuportável heresia.

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Se a família dos interesses deixa de ocupar os lugares políticos e os empregos do Estado chama endogamia aos laços familiares de cargos governativos, de natureza precária.
Esta direita que vai desde o primata que Passos Coelho escolheu para autarca de Loures, um defensor da pena de morte e da erradicação de imigrantes e ciganos, até à D. Cristas, Nuno Melo e Cavaco, é a que deteve o poder 48 anos e reivindica a herança.

Esta é a direita que, com a sensibilidade de um batráquio, condena a deslocação de sete enfermeiros, ao serviço da Cruz Vermelha, para ajudar Moçambique, após a tragédia do Ciclone Idai, alegando carência nos hospitais portugueses, sem noção da insensibilidade e do ridículo de censurar o Governo pela falta de 7 enfermeiros num universo de 45 mil.
Esta é a direita que queria impor ao PS os governantes e as alianças, uma direita que não conseguiu eleger Santana Lopes presidente do PSD e quis que o PS indicasse Francisco Assis para o Parlamento europeu. Logrou colocar no Montepio Luís Amado, próximo do PSD, ex-MNE de um governo do PS.

No fundo, os ataques soezes a todos os que são da confiança política de António Costa são reflexo da síndrome de privação do poder absoluto, que esta direita almeja. Quando se sente rejeitada pelo eleitorado, cria sindicatos através de Ordens ou instala um patrão e um advogado na direção de um sindicato de motoristas de matérias perigosas, adrede criado, para dar aos trabalhadores o que há muito devia, depois de assustar o eleitorado e provar que, em democracia, pode criar o caos.

A estratégia para derrubar Salvador Allende e levar Pinochet ao poder foi usada noutras ditaduras de extrema-direita. Hoje, Steve Bannon, ex- Goldamn Sachs e conselheiro do Trump, anda pela Europa cheio de dólares, obcecado em ressuscitar o nazi-fascismo, a promover o populismo e a ensinar como divulgar falsidades, calúnias e intrigas.

Não admira que esta direita veja em Rui Rio desvios de esquerda e em Marcelo, demo-cristão, com tiques peronistas, sem Evita, um obstáculo à radicalização mimetizada da Hungria, Polónia e Ucrânia.

Esta direita, à direita de Rui Rio, é o VOX vindo da Andaluzia por Vila Real de Santo António, cheio de testosterona fascista, para inseminar o CDS, Aliança e Chega.

Há quem esqueça a História da década de 30 do século passado.

O lumpesinato no poder: os 100 dias de Bolsonaro

por estatuadesal

(Por Gilberto Maringoni e Artur Araújo, in Resistir, 10/04/2019)

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O governo de Jair Messias Bolsonaro representa um feito inédito em termos mundiais. Trata-se da primeira vez em que o lumpesinato, de forma organizada, chega ao poder de Estado. Não existe experiência semelhante em países da dimensão do Brasil.

O lumpesinato (ou lumpemproletariado) não é exatamente uma classe. O conceito inicial referia-se a uma fração de classe constituída por trabalhadores muito pobres sem qualquer lugar ou vínculo com a produção ou com o mercado de trabalho formal. Sobrevivem à custa de pequenos expedientes e atividades intermitentes. Por sua própria fragmentação, é uma camada que tende a realizar ações individuais em detrimento de iniciativas coletivas. Raramente atua de forma organizada.

Karl Marx e Friedrich Engels o descrevem no Manifesto Comunista(1848): "O lumpemproletariado, esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação".

Marx voltaria a se referir ao lumpemproletariado no Dezoito de Brumário Luís Bonaparte (1852). Trata-se de uma análise profunda sobre o processo social compreendido entre a Revolução de 1848 e o golpe de Estado de 1851, na França. O autor amplia o conceito, ao descrever os apoiantes de Luís Bonaparte: "Esse Bonaparte se constitui como chefe do lumpemproletariado, porque é nele que identifica maciçamente os interesses que persegue pessoalmente, reconhecendo, nessa escória, nesse dejeto, nesse refugo de todas as classes, a única classe na qual pode se apoiar incondicionalmente".

Mais adiante, Marx mostra que o conceito não se referia apenas às camadas mais baixas da sociedade, ao se referir ao sobrinho de Napoleão como "lumpemproletário principesco". N' As lutas de classes na França (1850), Marx estenderia ainda mais a classificação: "A aristocracia financeira, tanto no modo de obter seus ganhos quanto no modo de desfrutar deles, nada mais é que o renascimento do lumpemproletariado nas camadas mais altas da sociedade burguesa".

Quase um século mais tarde, no final dos anos 1950, o belga Ernest Mandel cria a definição de lumpemburguesia. Em 1973, o alemão André Gunder Frank lança Lumpemburguesia: lumpemdesenvolvimento – Dependência, classe e política na América Latina. Sua argumentação mostra que: "A partir da conquista, a dinâmica colonial do sistema capitalista forma na América Latina a estrutura de classes e a estrutura econômica, de modo que quanto mais estreitas são as relações econômicas e coloniais entre a metrópole e sua lumpemburguesia satélite (…), tanto mais as políticas econômicas intensificam um lumpendesenvolvimento".

A partir de tais definições, vale a pena tentar entender que classes e frações de classe compõem o primeiro escalão da administração eleita em 2018.

Grupos de interesse

O governo Bolsonaro resulta de uma confluência de interesses solidamente enraizados na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, a representação institucional – ou expressão política – dessa coalizão parece materializar profundas alterações ocorridas desde o final da ditadura (1964-1985) na composição social do país.

O período é marcado por um processo de desindustrialização, privatização e desnacionalização de empresas que se soma à desregulamentação e fragmentação do mundo do trabalho. Ramos inteiros da produção deixaram de existir, a indústria de transformação reduziu sua participação na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e o país assistiu sua burguesia industrial vender empresas e tornar-se mera montadora, maquiadora, empacotadora e, principalmente, especuladora no mercado financeiro, beneficiando-se de uma das mais altas taxas de juros do planeta. A burguesia associada do capital externo vai se tornando uma burguesia compradora e rentista. Podem-se vislumbrar pelo menos quatro grandes grupos de interesse contemplados no primeiro escalão do atual governo.

Em primeiro lugar está o círculo próximo a Jair Bolsonaro. Forma a vertente mais ideológica do poder, com nomes indicados por igrejas fundamentalistas e pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Entram nessa conta os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Ricardo Vélez Rodríguez [NR] (Educação), Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo). Agregam-se a essa equipe os três filhos do capitão, que teriam ligações com milícias armadas do Rio de Janeiro e com representantes da extrema direita dos Estados Unidos, como o ex-ideólogo de Donald Trump, Steve Bannon. É o grupo que dirige politicamente o governo.

A segunda equipe em importância é representada por oito altos oficiais militares de direita, além do vice-presidente Hamilton Mourão. São eles: Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Carlos Alberto Santos Cruz (Secretaria de Governo), Floriano Peixoto Vieira Neto (Secretaria Geral da Presidência), Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Bento Costa Lima de Albuquerque (Minas e Energia), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), e Wagner Campos Rosário (Transparência e Controladoria Geral da União).

O plantel dos militares tem duas vozes principais, Mourão e Augusto Heleno, e forma o polo organizativo central da gestão. O ex-comandante da missão da ONU no Haiti é o militar mais próximo de Bolsonaro.

Um terceiro campo compõe o que poderia ser denominado de "Ministério da Intimidação e Punitivismo". Aqui brilha a constelação do ex-juiz Sergio Moro, ligado à extrema-direita do Judiciário.

Há, por fim, a grande pasta dos negócios, firmemente alicerçada no capital financeiro. Sua estrela é o economista e especulador Paulo Guedes, ministro da Economia. Seguem-se a ele o executivo do grupo Santander, Roberto Campos Neto, que pilota o Banco Central, e o ex-diretor do Bradesco, Joaquim Levy.

Os dois primeiros grupos – ideológicos e militares – disputam publicamente espaços e diretrizes na máquina pública.

A força da farda

A presença das Forças Armadas no governo revela um sério problema político: Bolsonaro não tem um partido que lhe dê sustentação. Sarney valia-se do PMDB, FHC contava com o PSDB e Lula com o PT. Não se tratavam de meras legendas parlamentares para encaminhar e votar projetos no Congresso. As agremiações eram vetores orgânicos com presença na política institucional e real inserção na sociedade.

O PMDB dos anos 1980 contava com alguns dos mais relevantes intelectuais brasileiros, mantinha intervenção no movimento sindical e no empresariado. O mesmo pode ser dito dos dois outros casos. PMDB, PSDB e PT, além disso, expressam demandas de determinadas classes sociais e as representam no embate político e no conflito distributivo.

No caso de Bolsonaro, qual é o vetor que sintetiza demandas de classe que o sustentam na disputa institucional? Não é o PSL, evidentemente! Esta é uma legenda artificial e um agregado de aventureiros, sem expressão social clara. Expressão social é diferente de ter votos. O PSL tem votos, mas é incapaz de organizar minimamente uma administração.

Estamos em uma situação semelhante às dos governos da ditadura militar. Eles tinham um partido (a Arena) que não formava um corpo de ideias muito definido, a não ser dar voz às oligarquias regionais. O vetor organizador dos governos ditatoriais eram as Forças Armadas, com destaque para o Exército, de onde saíram seus cinco presidentes. É o que ocorre hoje.

O Exército, a força mais numerosa e mais capilarizada social e geograficamente, vocaliza uma reivindicação difusa da classe média e de parcela dos pobres por ordem, segurança e moralidade. Seria o que o cientista político e jornalista Oliveiros Ferreira denominou de partido fardado, entre os anos 1970-80. Vale uma ressalva: os setores militares que ascendem com Bolsonaro são caudatários dos porões (Garrastazu Médici e Silvio Frota, ligados à repressão) e não aos ideólogos da ditadura (Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel).

Assim, Bolsonaro não tem saída. Ou apela para as Forças Armadas ou não existe governo que pare em pé. Não há escapatória a não ser ele colocar cerca de cem militares em cargos de primeiro e segundo escalão.

O terceiro (Justiça) e o quarto (Economia) grupo materializam o grande consenso interno do governo. A facção ideológica e a militar têm até aqui pleno acordo com o projeto punitivista de Sergio Moro e com a opção ultraliberal de Paulo Guedes. São também os fiadores da sustentação do governo entre o capital financeiro, os especuladores internacionais, a grande mídia e um setor da classe média que, desde 2013, bradava por intervenção militar.

Mas a existência desses consensos não tira de cena a renhida disputa de rumos. Voltemos ao início deste texto: o sentido principal do jogo de forças intramuros é o embate entre um corpo profissional do Estado e a inédita chegada do lumpesinato ao palácio. Detalhemos.

O lumpesinato com a caneta na mão

O principal representante do lumpesinato nas esferas do poder é o próprio presidente da República. Expulso do Exército por indisciplina, Jair Bolsonaro buscou a carreira parlamentar como meio de vida. Em 28 anos de Congresso, teve atuação apagada e agregou-se ao chamado baixo clero da instituição.

Bolsonaro nunca representou um setor social específico, mas surfou em ondas de insatisfação difusas do eleitorado pobre do Rio de Janeiro e no corporativismo da massa militar. Seu mentor, Olavo de Carvalho, sujeito sem ocupação definida, é um lúmpen da intelectualidade, misto de astrólogo e guru de vasta legião conservadora. Damares fez sua carreira nas igrejas pentecostais e não se sabe de seus vínculos claros com o mundo formal do trabalho. O mesmo se dá com outro ativista pentecostal, Marcelo Álvaro Antônio, chefe da pasta do Turismo. Vélez Rodríguez, por sua vez, é um obscuro professor universitário, sem publicações relevantes e desconhecido em seu meio. Araújo expressa uma ínfima minoria no Itamaraty.

O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, é um economista marginal, tanto na academia quanto no mercado. Pérsio Arida, um dos criadores do plano Cruzado (1986) e ex-presidente do BNDES e do Banco Central no governo FHC, tem opiniões arrasadoras sobre ele. Em setembro de 2018, Arida declarou ao jornal O Estado de S. Paulo que "Paulo Guedes é um mitômano (…). Nunca escreveu um artigo acadêmico de relevo e tornou-se um pregador liberal. (…) Ele nunca dedicou um minuto à vida pública, não tem noção das dificuldades. Partiu para uma campanha de difamação que é de um grau de incivilidade que não se vê em outro assessor econômico". Envolvido em acusações de fraudes em fundos de pensão, Guedes pode ser classificado sem erro como um lumpenfinancista.

Entre os militares, o astronauta Marcos Pontes foi para a reserva após seu voo orbital em 2006. Tornou-se palestrante de autoajuda, vendedor de travesseiros e guia turístico na Flórida. Ou seja, passou a viver de expedientes que não deram muito certo até ser recolhido por Bolsonaro.

O PSL, partido do presidente, por sua vez, é quase todo composto por aquilo que Marx classificou como lumpesinato no Dezoito brumário: "Rufiões decadentes, com meios de subsistência duvidosos (…), rebentos arruinados e aventurescos da burguesia (…) vagabundos, soldados exonerados (…), trapaceiros, (…) donos de bordel, (…) em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia]".

Qual o problema de um governo ser dirigido pelo lumpesinato de diversas classes?

O lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer projeto coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo, não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um contra todos.

Pode-se afirmar que o lumpesinato vive no Estado de Natureza conceituado por Thomas Hobbes, em Leviatã (1651). Trata-se de uma situação anterior à criação do Estado, sem regras ou normas, em que "todo homem é inimigo de todo homem".

Nas palavras de Hobbes: "Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".

Não há descrição mais apropriada para um mundo traçado por Jair Bolsonaro em discurso proferido para uma plateia de extrema direita em Washington, em março último: "O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa".

Não se trata de deslize de um improviso mal feito. Hamilton Mourão já havia declarado ao jornal Valor Econômico em fins de 2018 que o governo faria "um desmanche do Estado".

São frases-síntese de um governo lúmpen que se move por pequenos e grandes negócios de ocasião. Em geral, eles se dão por fora da política institucional e de suas regras e, não raro, apelando para situações de força. Uma administração de todos contra todos.
10/Abril/2019[NR] Foi demitido em 08/Abril/2019 e substituído por Abraham Bragança Weintraub.


[NR] Foi demitido em 08/Abril/2019 e substituído por Abraham Bragança Weintraub.

sábado, 20 de abril de 2019

As novas classes e a nova luta

por estatuadesal

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 20/04/2019)

Pedro Marques Lopes

Não é preciso um grande esforço de memória para lembrar quem se indignava contra aqueles que chamavam a atenção para os ataques ao interesse público que algumas greves punham em causa. O discurso, no essencial verdadeiro, salientava que elas eram tão mais efetivas quanto mais afetavam a comunidade em geral.

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O discurso, de há uns tempos a esta parte, mudou. A nova realidade de organizações de trabalhadores que não estão enquadradas nas grandes centrais sindicais ou sequer seguem o modelo dos sindicatos tradicionais - o STOP, o sindicato dos enfermeiros e agora o dos motoristas de substâncias perigosas - fez que estejamos a assistir a uma mudança na narrativa política acerca das organizações de defesa dos direitos dos trabalhadores. A multiplicação destes sindicatos é, sobretudo, a ponta do icebergue de uma mudança política bem mais profunda.

Tradicionalmente, as nossas organizações sindicais estão ligadas a uma visão da comunidade em que a defesa dos direitos dos trabalhadores, de todos os trabalhadores, é feita por ramificações de partidos que, em tese, colocam o valor do trabalho acima de todos os outros fatores de produção - e, tirando opções partidárias, fica a minha visão: é esse o valor certo.
As centrais sindicais ou apenas os sindicatos setoriais enquadravam a luta dos trabalhadores em geral, ou seja, alinhados com os valores políticos e doutrinários dos partidos e movimentos sociais de onde eram, no fundo, originários. Mas tinham outra função: obstar a que desequilíbrios normais não se acentuassem e não tivessem repercussões em diferenças salariais significativas: uma linha de autocarro não pode funcionar sem motoristas, mas pode por muito tempo operar sem os administrativos que lhes dão apoio.

O estertor do movimento sindical tradicional é evidente. A incapacidade de representar os trabalhadores fora do mercado, o abandono dos precários, a secundarização de quem trabalha no setor privado, a desregulação provocada pela globalização, são apenas algumas das razões. Sejam elas quais forem, a história não vai andar para trás e não parece que seja possível recuperar o movimento sindical como o conhecíamos e que funcionou bem durante um longo período de tempo.

Não é em vão que vamos assistindo a várias personalidades de esquerda a apelar ao bom senso e a ter um discurso que é de facto contrário a greves como a dos camionistas de substâncias perigosas. Não julgo se a preocupação é a de o colapso dos sindicatos tradicionais perturbarem os seus objetivos políticos ou se é por pensarem que os trabalhadores defenderão pior os seus direitos. Do que não tenho dúvidas é de que não estão a conseguir lidar com uma nova realidade que parece imparável. E essa é de alguns trabalhadores pensarem que conseguem atingir os seus objetivos de uma forma mais efetiva com outras maneiras de se organizarem e lutarem. E o facto é que este tipo de organizações está a crescer dia a dia e apresenta melhores resultados. São egoístas? Esquecem a "luta" global? Não se importam de parar um país em função dos interesses de pouquíssimas pessoas? Talvez seja tudo verdade, mas tem resultado e quando assim é o crescimento destes fenómenos é imparável.

O desespero e a incompreensão destas novas realidades geram acusações esdrúxulas em que se diz que estas novas realidades organizativas têm origem nos partidos de direita ou que estão ao serviço de movimentos de extrema-direita e que apenas querem semear o caos. Não há pior cego do que aquele que não quer ver.

A tal mudança política mais profunda parece ser a de que a luta de classes foi substituída pela luta de classes profissionais desenquadradas dos partidos e forças políticas.

No fundo, os sindicatos, os patrões e o Estado aceitavam um modelo em que todos acreditavam que cada um dos outros estava interessado na prossecução do bem comum. Ou seja, era uma tensão que gerava um equilíbrio. As greves eram só mais um instrumento.

Com a aparente falência deste modelo muitas coisas terão de mudar. Nesta semana, um pequeno grupo de trabalhadores bloqueou o país. A CGTP também bloqueava dirão uns; mas era para a defesa de muitos, dirão outros. É uma discussão que pode valer academicamente alguma coisa, mas já não tem que ver com a realidade. Repito, há uma lógica que mudou. E sim, não podemos estar expostos a que meia dúzia de pessoas, por muito justas que sejam as suas reivindicações, ponham em causa o bem-estar mínimo da comunidade. O tipo de instrumentos de luta, de negociação, terá de mudar, a acomodação dos interesses dos vários membros da comunidade será feita de outra maneira e, claro, sem nunca esquecer que na relação laboral há uma parte que é sempre mais fraca e que tem de ser protegida - e em Portugal, sobretudo no setor privado, tem de ser feita de uma forma bem melhor.

E não vale a pena agitar fantasmas do tipo "é tudo um esquema para limitar o direito à greve". Nada disso. O que não podemos é tentar manter realidades que pura e simplesmente já não funcionam. Talvez fossem melhores para todos e durante muito tempo resultaram, mas tentar mantê-las artificialmente ainda causará mais problemas e não só porque adiam a resolução de problemas fundamentais.

O que aí vem será melhor para a comunidade? Talvez não. Mas a evolução não é, demasiadas vezes, uma linha em direção a um mundo melhor.

Sim, houve colaboração com os russos. Sim, houve obstrução à Justiça

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 20/04/2019)

Pacheco Pereira

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Já me queixei disto e vou-me queixar outra vez: eu sou vítima do Trump. Sou vítima do Trump, porque a política americana desde 2016 é a mais interessante do mundo, a mais importante de seguir, a mais perigosa do mundo. Aquela em que melhor se pode perceber o que é o carisma, o que é a política pós-pós-moderna, a criatividade perversa, a degeneração interior da democracia, os mecanismos científicos de manipulação das massas na época das “redes sociais”, a autodestruição de um grande partido nacional pelo medo e pela gula, a tentativa de governar em autocracia, sem respeito pela separação de poderes, sem limites do “executivo”, a hipocrisia religiosa dos zelotas face ao poder, o ódio e o ridículo como instrumentos para rebaixar o adversário, o papel da violência sugerida e incentivada para destruir os laços sociais de vida em comum, a arregimentação dos “nossos” contra os “deles”, a relativização absoluta da verdade, a mentira e o abandono dos factos numa linguagem ficcional de slogans e propaganda. George Orwell deveria conhecer Trump para escrever um segundo 1984.

Eis o catálogo. Como é que se pode esperar que eu encontre qualquer forma de interesse nas vicissitudes políticas caseiras, feitas de palha e nada, este disse, aquele não disse, este fez um inuendo, aquele fez um contra-inuendo, esta fez um ataque a coisa nenhuma, aquele defendeu-se com uma mão-cheia de nada e por aí adiante? Não devia, mas não consigo. Chega Trump e o seu reino do mal e, com a diferença de horas, lá se vai a noite e a madrugada.

Agora, é esse documento fabuloso que é o relatório Mueller, pelo menos na parte que foi divulgada, com páginas cheias de linhas grossas a negro. Por detrás dessas linhas podem ter a certeza que há muito mais e mais importantes coisas que virão a ser conhecidas. Estamos mais no princípio do que no fim. Mas vale a pena ler tudo, é mesmo daqueles documentos que prendem a atenção e a leitura sem parar, muito melhor do que qualquer ficção política.

Com a mesma pressa e ligeireza analítica com que nos primeiros dias se desvalorizou a vitória democrática no Congresso, antes de se perceber que tudo mudara, agora ficamos umas semanas com a síntese mentirosa do procurador Barr a desvalorizar o relatório e as salvas de vitória com o mantra de Trump do “no collusion, no obstruction”, nenhuma das coisas confirmadas pelo relatório nestes termos propagandísticos. Pelo contrário, houve extensa colaboração com os russos, aquilo a que hoje se chama “sinergias”, mas não houve provas suficientes para a acusação de um crime. No entanto, vários colaboradores próximos de Trump vão para a cadeia exactamente por terem mentido sobre os seus contactos com os russos. Coincidências. É só esperar que um dia se abra o arquivo do GRU e do FSB, para então as partes encaixarem entre si. E se Trump lhes escapar, os russos são meninos para fazer “fugas” selectivamente. Nós sabemos e Trump também sabe.

E houve obstrução, que Mueller atira para cima do Congresso, sabendo muito bem que já será o novo Congresso democrático a decidir. O elo fraco da resistência a Trump é o Partido Democrático, e não é certo o que vai acontecer. Mas basta ler o relatório para se perceber a continuada tentativa de Trump de impedir as investigações, e Mueller escreve, preto no branco, que não pode exonerar o Presidente dessa acusação.

Depois, há os detalhes, imensos detalhes. Os detalhes são onde habita o Diabo, e aqui é uma confraria de diabos inteira que fica à solta. O relatório Mueller será sempre, por isso, um documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias intitulado “Como Se Destrói Uma Democracia por Dentro”. Claro que há muito precedentes, havia inconsistências legais, definições do poder executivo ambíguas, contradições, patologias da democracia americana, que são todas anteriores a Trump. Mas Trump usou-as todas em seu proveito para instituir uma presidência autocrática, acolitada por uma espécie de grand guignol, uma administração de gnomos maldosos, dirigida, moldada, dominada, por uma personagem carismática completamente amoral, capaz de fazer tudo o que acha que pode fazer sem pensar duas vezes.

É um erro considerar que Trump é um epifenómeno que passará depressa, uma anomalia que o “sistema” engolirá nas próximas eleições. A palavra carisma é muito mal usada por cá, mas é mesmo isso que Trump é, carismático, um tipo intuitivo, criador, poiético, que revelou mais do que ninguém as fragilidades da democracia no século XXI.

Mas o relatório Mueller faz-lhe muita mossa. Não era preciso ser um génio da análise para se perceber que vinha aí uma gigantesca pedra feita de detalhes e contexto que caía em cima de Trump, de Barr, de Pence, de Jared, de Ivanka, dos “trumpinhos”, de Sarah Sanders, de Kellyanne, e dos propagandistas da Fox News, Hannity, Tucker, e do partido da vergonha, os republicanos. Eles vivem na lama, e se calhar gostam dos salpicos, mas a pedra vem a caminho e é grande.

E a pedra vai-se dissolver aos poucos, com cada detalhe fazendo o seu caminho “revelador”, viral, moldando a cabeça das pessoas, umas (talvez poucas) mudando-lhes a opinião, outras mobilizando-as para a necessidade da “resistência”, e outras, talvez a maioria, dando-lhes consciência do perigo por que o país está a passar com este homem à frente. Por isso mesmo, Trump tinha razão quando disse sobre esta investigação: “I’m fucked.

“Já lhe parti o focinho!”

Novo artigo em Aventar


por Bruno Santos

Santana Castilho*

“Um aluno de 12 anos agrediu a pontapé e a soco um professor de 63, depois de este o admoestar por estar a brincar com uma bola dentro da sala de aula”, podia ler-se numa peça recente deste jornal. No desenvolvimento do texto, ficava-se a saber que o pequeno marginal tinha proferido a bazófia que “puxei” para título desta crónica. O tema foi objecto de múltiplas referências em jornais e televisões mas, 12 dias passados, está arquivado no limbo do esquecimento, para onde são remetidos os sucessivos episódios que documentam o mais grave problema da escola pública: a indisciplina. Com efeito, entre tantos outros, quem se lembra do caso de um aluno de 11 anos, violado por um colega no interior de uma escola de Montemor-o-Novo, do Leandro, 12 anos de vida, que se suicidou nas águas do Tua para fugir ao bullying dos colegas, ou do Luís, professor de música, que se atirou da Ponte 25 de Abril, “empurrado” por pequenos marginais que não o deixavam dar as suas aulas?

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