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quarta-feira, 12 de junho de 2019

A Lava Jato nua e crua

Com as revelações do site The Intercept, vem à tona a relação ilegal do ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro com os procuradores da Lava Jato, chefiados por Deltan Dallagnol.

A Operação Lava Jato, ao longo dos seus cinco anos de atuação, foi criticada por iminentes juristas e personalidades do próprio Poder Judiciário — além de integrantes dos poderes Legislativo e Executivo — por suas práticas marcadas pelo desrespeito ao Estado Democrático de Direito, sempre ressalvando a necessidade do combate rigoroso à corrupção ou a qualquer outra ilicitude. As forças democráticas em geral criticaram as afrontas ao devido processo legal e aos princípios basilares da Constituição e demais regulamentos da legalidade democrática.

Agora, com as revelações do site The Intercept, vem à tona a relação ilegal do ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro com os procuradores da Lava Jato, chefiados por Deltan Dallagnol. De pronto, eles emitiram notas em que admitem o conteúdo das mensagens, se dizendo vítimas de vazamentos. Os filhos do presidente Jair Bolsonaro também se manifestaram, argumentando que a Lava Jato está sendo alvo de um crime. Mas, convenhamos, eles não são pessoas em condições de falar em combate ao que alegam ser crime.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes também se manifestaram. O primeiro afirmou que “ninguém pode ter dúvida de que os processos estão corrompidos. “Apenas coloca em dúvida, principalmente ao olhar do leigo, a equidistância do órgão julgador, que tem de ser absoluta. Agora, as consequências, eu não sei. Temos que aguardar”, afirmou o magistrado. Para Gilmar Mendes, as denúncias precisam ser apuradas. “O fato é muito grave. Aguardemos os desdobramentos”, disse o ministro.

Muitos juristas e advogados também já se pronunciaram, exigindo rigorosa apuração dos fatos, considerados infrações gravíssimas. Em nota, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Colégio de Presidentes de Seccionais manifestaram “perplexidade e preocupação” pelo fato de autoridades públicas supostamente terem sido “hackeadas”, mas enfatizaram que o caso demanda “investigação plena, imparcial e isenta, na medida em que estes envolvem membros do Ministério Público Federal, ex-membro do Poder Judiciário e a possível relação de promiscuidade na condução de ações penais”. “Este quadro recomenda que os envolvidos peçam afastamento dos cargos públicos que ocupam, especialmente para que as investigações corram sem qualquer suspeita”, afirma a nota.

O material divulgado indica três questões essenciais e serem consideradas. A primeira é que Sérgio Moro, quando atuou como juiz, agiu de forma ilícita, em total cumplicidade com os promotores. Ele orientava as denúncias, ditava procedimentos e até ordenava a sequência das operações. Tratava os procuradores como subordinados. A segunda questão é que tanto Moro quanto os procuradores afrontaram o princípio da imparcialidade. E a terceira é que Dallagnol e sua equipe não agiram como membros do Ministério Público, mas como integrantes de um comitê político, eleitoral e partidário.

Moro também se manifestou nesse sentido, conforme as revelações do The Intercept. Quando atuava como juiz, o agora ministro disse que o objetivo da Lava Jato seria “limpar o Congresso”. Sem falar nas revelações de manobras que traduzem uma verdadeira obsessão da Lava Jato para impedir a vitória de algum candidato a presidente da República do campo da esquerda nas eleições de 2018.

Esses fatos demandam uma imperativa tomada de posição no Congresso Nacional a favor de uma apuração rigorosa. Da mesma forma, os órgãos de controle do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal devem ser cobrados para que as infrações sejam punidas. Às organizações da sociedade civil, cada uma com suas prerrogativas, cabe o dever de exigir a restauração do Estado Democrático de Direito e a anulação dos atos praticados contra a Constituição e à revelia do arcabouço jurídico do país, como o processo de condenação e prisão do ex-presidente Lula. E que todos os infratores sejam investigados e, rigorosamente dentro da lei, punidos.

Vazajato: nauseante mas não surpreendente

A ascensão do regime político sem nome, com seu obscurantismo e vulgaridade, combinada com demandas pessoais, tirou-me a vontade de escrever e comentar as patifarias do dia-a-dia da política.

As revelações do Intercept Brasil sobre as maquinações Moro-Dallagnol acendem alguma esperança de que a verdade, como disse Francisco a Lula, prevaleça sobre a mentira.

Aqueles diálogos e conluios não surpreendem.

Não, pelo menos, aos que tiveram clareza, desde o início, sobre os propósitos políticos da Lava Jato, aos que não fecharam os olhos para as ilegalidades, os abusos, as gambiarras e toda as maquinações urdidas para se chegar ao objetivo primordial, o de dar cabo do ciclo de governos petistas e garantir o triunfo do conservantismo, ainda que se valendo da figura primitiva de Bolsonaro, que devia envergonhar as elites nativas que lhe abriram caminho.

Afora este, existiram outros dois grupos de brasileiros.

O dos que sabiam das lavajatices praticadas mas as aplaudia por antipetismo, e o dos que acreditaram sinceramente em Moro e seus procuradores como salvadores da pátria e cruzados da corrupção.

Aos que sempre enxergaram a natureza política da Lava Jato, e por criticá-la foram chamados de coniventes com a corrupção e vassalos do PT, perderam amigos e até empregos, as revelações do conluio não surpreendem.

Trazem a náusea que vem diante da podridão, mas trazem também ar e luz, reavivam a crença na verdade e no jornalismo.

Jornalismo alternativo, por sinal, capitaneado por um jornalista estrangeiro, o que devia fazer corar a grande mídia nacional.

Tudo estava aí, à espera do empenho em conseguir as evidências de que Sergio Moro e os procuradores cruzaram a linha que deve separar quem investiga, quem instrui o processo e quem julga.

Ali, o que havia era uma organização jogando o vale tudo para alcançar objetivos políticos: primeiro, apear Dilma do poder, inclusive vazando áudios ilegalmente obtidos e divulgados, que foram decisivos para o impeachment.

Depois, forçando a mão na investigação de Lula no caso do triplex, acelerando o julgamento na primeira e na segunda instâncias, de modo a torná-lo inelegível antes do início da campanha de 2018, cassando-lhe a candidatura que seria vitoriosa.

E, ainda, cassando-lhe ao direito à livre expressão, impedindo que concesse entrevista antes do pleito, para evitar o risco de uma vitória de Haddad.

Lula sempre foi o alvo, não viu quem não quis ver e os que, por desinformação e manipulação, não têm olhos para ver.

Hoje o Conselho Nacional do Ministério Público finalmente abriu processo investigativo contra Dallagnol e os procuradores da Lava Jato. Mas falta muito mais para que seja restabelecida a crença na Justiça.

Ainda que Moro, tendo renunciado ao posto de juiz para se tornar ministro de quem ajudou a eleger, não possa mais responder ao CNJ, espera-se do STF uma reação que resgate sua autoridade como instância suprema do Judiciário.

E pode começar a fazer isso hoje, concedendo Habeas Corpus ex-Oficio ao ex-presidente Lula, condenado num processo que, agora se vê – com náusea mas não com surpresa – transgrediu o devido processo legal em mais de um ponto.

Juiz não pode trocar figurinha com procurador, juiz não pode instruir e dar pistas a investigador, juiz não pode antecipar sentença, juiz não pode dar bronca em procurador, juiz julga, não comanda todo o processo, guiando-o segundo seus propósitos.

Assim deve ser, assim manda o CPP.

O que virá agora, não se sabe.

Sozinha, a esquerda não terá força no Congresso para instalar CPI ou criar o quadro político que leve à restauração da normalidade jurídica conspurcada pela Lava Jato.

Para os partidos de centro e centro-direita que prezam o Estado Democrático de Direito estão desafiados a também reagirem exigindo o mínimo, para começar: afastamento de Moro do MJ e dos procuradores da Lava Jato, libertação de Lula e revisão dos processos decorrentes da operação.

Isso não quer dizer perdão aos corruptos de fato mas garantia de justiça nas condenações, pois agora sobre tudo paira a sombra.

Entre as brumas da memória


Numa rua de Lisboa, perto de si

Posted: 11 Jun 2019 10:30 AM PDT

(Via Leonaldo de Almeida no Facebook)
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11.06.1982 – ET Phone Home

Posted: 11 Jun 2019 06:10 AM PDT

E.T. foi lançado em 11 de Junho de 1982, há 37 anos. Alguns meses depois, antes do Natal do mesmo ano, essa belíssima história de amor teve estreia em Portugal e foi, para muitas crianças, a primeira oportunidade de verem um grande filme numa sala de cinema – e de chorarem, como outros o tinham feito décadas antes, quando apareceu o Bambi.

Logo no ano seguinte recebeu Óscares para melhor banda sonora, melhores efeitos especiais, melhores efeitos sonoros e melhor som. Foi um extraordinário sucesso em termos de bilheteira, até ser batido por mais um filme também de Spielberg – Jurassic Park –, lançado num outro 11 de Junho (de 1993).

Quem não se lembra do desfecho do E.T.?

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Uma solução para o impasse da Lei de Bases da Saúde

Posted: 11 Jun 2019 02:44 AM PDT

«Quando o Bloco de Esquerda decidiu transformar em projeto de lei a proposta de Luís Arnaut e João Semedo para uma nova Lei de Bases da Saúde, não o fez apenas para marcar uma posição.

Fizemo-lo à procura de uma maioria parlamentar que se unisse em torno de uma solução de longo prazo para o SNS. Uma solução que recuperasse o seu caráter público e universal, afastando de vez a predação dos privados imposta por Cavaco Silva, autor da atual Lei de Bases.

Foi em nome dessa convergência que aceitámos depois trabalhar a partir de um texto proposto pelo PS, que não correspondia à nossa redação original. Desde o início que colocámos, no entanto, três condições para uma negociação: o fim das PPP, a eliminação das taxas moderadoras, e o caráter supletivo do privado (ou seja, que o SNS só contrate com o privado quando ainda não tem capacidade). O Governo aceitou todas estas condições, para depois recuar numa delas, o fim das PPP.

Não é este o momento de discutir esta mudança de posição. O facto é que ela criou um impasse nas negociações. O PS não quer colocar na lei a garantia da gestão pública dos hospitais públicos, mas não pode impor ao Bloco a aceitação das PPP como condição para uma nova Lei de Bases. O Bloco não votará uma lei que abre as portas à gestão privada de hospitais públicos. Essa era, desde início, uma das três condições que muito claramente colocámos em cima da mesa.

O impasse tem, pois, que ser resolvido, pois seria triste que a Lei de Bases inspirada por Semedo e Arnaut ficasse pelo caminho pela insistência do PS em manter a possibilidade de futuros hospitais PPP.

Para procurar um consenso que salve o trabalho que já foi feito, o Bloco propôs ao PS uma solução. A nova Lei de Bases não se pronunciará sobre as PPP, que ficarão remetidas para lei própria, a aprovar na próxima legislatura. Em contrapartida, o atual regime jurídico das PPP, aprovado pelo Governo de Durão Barroso, deve ser revogado, garantido que as atuais PPP não poderão ser renovadas.

Se não existe neste momento uma maioria parlamentar que garanta que a gestão do SNS no futuro será pública, então essa decisão deverá ser tomada pela maioria que se formar na próxima legislatura. É por isso importante que todos os partidos assumam com transparência as suas posições sobre esta matéria. Até lá, o país terá ganho uma nova Lei de Bases da Saúde, aprovada à Esquerda, que afaste de vez o fantasma do Governo de Cavaco Silva do SNS.»

Mariana Mortágua

O problema mal resolvido da habitação em Portugal

por estatuadesal

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 11/06/2019)

Paes Mamede

Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, a habitação, saúde e educação, cantava Sérgio Godinho nos tempos da revolução. A paz chegou logo. O pão, a saúde e a educação para todos foram sendo construídos, com bastante sucesso. A habitação foi e é a parente pobre do Estado Social em Portugal.

Sem vontade ou condições políticas para pôr em causa o regime de propriedade urbana herdada do Estado Novo, o regime democrático resignou-se com a enorme desigualdade na distribuição da riqueza imobiliária. O congelamento das rendas foi a solução encontrada para diminuir a carga sobre os inquilinos, mas teve efeitos devastadores na degradação dos imóveis, desincentivando durante anos o investimento na construção para arrendamento.

Os governos acrescentaram ao congelamento das rendas a bonificação do crédito para compra de casa. Começou em 1983, com o governo do Bloco Central, e assim continuou durante décadas. A redução abrupta das taxas de juro e a concorrência desenfreada entre bancos na década de noventa deram o impulso que faltava para a explosão do crédito à habitação.

Em poucos anos Portugal tornou-se um dos países da Europa onde uma maior parcela de famílias é proprietária da casa onde reside. Isto transformou a estrutura social portuguesa, com implicações diversas - políticas e económicas.

O incentivo do Estado à compra de casa própria foi um dos principais determinantes do endividamento das famílias portuguesas. Entre 1995 e 2008 Portugal foi o país da UE onde mais aumentou a dívida das famílias em percentagem do PIB e cerca de 4/5 desse aumento são explicados pelos empréstimos à habitação. Por outras palavras, tentou-se resolver o problema da habitação convidando as famílias a endividarem-se para níveis pouco frequentes noutros países europeus.

O endividamento excessivo das famílias tornou-se um problema logo que a economia começou a abrandar, na viragem do século. Em alguns casos, as pessoas que perderam o emprego, ou cujos rendimentos caíram por qualquer outro motivo, deixaram de conseguir pagar o empréstimo e perderam as suas casas (continuando ainda assim a ter de pagar a dívida ao banco). Em Portugal estes casos foram menos frequentes do que noutros lados, mas houve outras consequências.

Pessoas muito endividadas têm menos rendimento disponível, pelo que consomem e investem menos. Quando isto acontece em larga escala, há menos procura agregada no país, o que se traduz em menos actividade económica e menos emprego. Passa por aqui uma parte da história do mau desempenho da economia portuguesa após 2000.

Além disso, o sistema bancário ficou refém do mercado imobiliário. Quando grande parte do negócio bancário depende do crédito à habitação, qualquer redução do preço das casas pode tornar-se um problema. Para os bancos, as casas cuja compra financiam constituem uma garantia, um activo que permite realizar outros negócios. Se o valor das casas cai - como aconteceu após 2008 - os bancos ficam em dificuldade. Num sistema como aquele que vivemos, isto significa menos financiamento a custos mais elevados para o conjunto da economia - senão mesmo a necessidade de injectar o dinheiro que é de todos em bancos insolventes.

A dependência da banca face ao crédito para habitação, há muito estimulada pelos poderes públicos, é hoje outra vez um risco e um problema. O Banco de Portugal tem alertado para os efeitos negativos de uma possível interrupção da dinâmica dos preços do imobiliário. Mas também esta é apenas uma parte da questão.

Há hoje muita gente com poder que está pouco interessada em que os preços das casas desçam. Os bancos, porque veriam o seu balanço deteriorar-se outra vez. Os fundos de investimento imobiliário, cujos lucros dependem do aumento do preço das casas. Os grandes escritórios de advogados, que representam os interesses dos fundos estrangeiros no nosso país, que têm na assessoria às operações imobiliárias uma parte importante do seu negócio. O governo, que não quer ficar com uma crise nas mãos para gerir.

A grande aposta do governo anterior e da troika para o problema da habitação - a liberalização das rendas e dos despejos - baseava-se num pressuposto simples: aumentando o retorno e reduzindo o risco para os senhorios, haveria mais oferta de casas para arrendamento. Se isto aconteceria ou não num mundo ideal, não sabemos. No contexto actual, marcado pela explosão do turismo e pela enorme liquidez dos fundos imobiliários internacionais, o resultado é conhecido: o negócio da compra e venda de casas aumentou muito, mas a vida de quem necessita de casa para viver tornou-se ainda mais difícil. Uma parte crescente da população portuguesa está a ser empurrada para fora dos centros urbanos - exactamente o contrário do que prometeram.

A solução a prazo para os problemas de habitação não precisam de ser inventados: foram postos em prática há décadas por algumas das principais cidades europeias. É necessário que uma parte importante do mercado de habitação seja protegida das lógicas especulativas. Para isso é necessário pôr nas mãos do sector público e/ou do sector cooperativo boa parte da oferta de casas para quem cá vive todos os dias.

Portugal é um dos países europeus onde a habitação pública e/ou cooperativa é mais reduzida. Vai demorar muitos anos a corrigir este atraso. Mas é preciso começar a fazê-lo. Mais vale tarde do que nunca.

Economista e Professor do ISCTE-IUL

terça-feira, 11 de junho de 2019

Dançar na corda bamba com as PPP

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 11/06/2019)

Francisco Louçã

O incêndio nacional sobre as PPP da saúde é revelador de duas tensões que nos vão acompanhar por muito tempo: a mais prosaica, a devoção partidária, que não tem nada de novo se não a subida da temperatura com a aproximação de eleições, e a mais consequente, a disputa sobre o programa neoliberal para Portugal.

É uma fatia pequena do orçamento do SNS, garante o primeiro-ministro. Não, são dois mil milhões de euros por legislatura. Mais do que isso, dão aos hospitais privados a gestão de grandes hospitais públicos e esta é a primeira grande porta aberta na concessão de serviços essenciais aos privados. As PPP são por isso uma vitória estratégica do programa neoliberal e todas as escaramuças a que assistimos se medem por essa bitola: nem a direita, nem os grupos económicos aceitarão um recuo depois de terem estabelecido este poder. Com as PPP, os grupos empresariais promovem a ideologia da eficiência do privado (mas os gestores são em vários casos os mesmos, veja-se um secretário de Estado da saúde do PS transferido para presidente da Associação dos Hospitais Privados), dirigem vastas equipas de pessoal da saúde que também mobilizam para os seus próprios hospitais e ainda procuram tornar hegemónica a ideia de que os contribuintes devem pagar uma renda à finança para nos prestarem cuidados vitais.

Na saúde está a disputar-se a batalha mais importante do programa neoliberal. Vai ser feroz e não ficará por aqui

Esta trincheira é essencial porque é até hoje a única. Em Portugal os governos conseguiram a privatização dos CTT e concessões de transportes públicos, mas sabem que é muito mais impopular prosseguir esse vendaval nos serviços essenciais para a vida.

Não há uma alma que se atreva a clamar pela entrega das universidades públicas à gestão pelas privadas. Houve tentativas para entregar parte do bolo da segurança social à gestão por fundos de pensões, mas ficaram pelos ensaios. Não se atreveram ainda a propor a gestão privada das prisões ou dos cemitérios, virá o dia.

No fim das contas, só têm as PPP da saúde e querem manter esse portal, nada os impede de ansiar por uma nova oportunidade em que cresça o número dos hospitais presos em tal labirinto. Na saúde está a disputar-se a batalha mais importante do programa neoliberal. Vai ser feroz e não ficará por aqui.

As posições partidárias são, por isso, coerentes – na maior parte dos casos. Percebo bem a posição da direita, que representa o interesse desses grupos financeiros. Faz o seu papel e com brio. Não vai desistir, mobilizará todos os meios institucionais em nome dos Mello, da Fosun e de quem vier. Percebo também a contradição do PS, em que tanta gente, seguindo Arnaut, acha que há hoje condições para que o Estado proteja o seu SNS separado dos privados, que fazem o seu negócio nos seus estabelecimentos, mas cujo governo decidiu manter a avenida para os grupos financeiros. Fá-lo no momento mais difícil e de maior suspeita sobre todas as PPP, quando a Polícia Judiciária vai ao hospital de Cascais, se sabe que doentes foram internados em casas de banho e refeitórios em Vila Franca de Xira e há indicações de manipulação das listas de consultas em Loures.

Em todo o caso, se o PS se deu sempre bem com a anterior Lei de Bases de Cavaco Silva (teve maioria absoluta entre 2005 e 2009 e não lhe tocou), agora a sua escolha estratégica é manter as PPP. Percebo a posição do Bloco, que apresentou a lei escrita por Arnaut e Semedo e que insiste na requalificação da estrutura do SNS, na promoção das carreiras profissionais, no fim das PPP e na universalização dos cuidados. Percebo também que abra caminho a uma solução que simultaneamente faça aprovar uma Lei de Bases com um novo quadro, conseguindo retirar dele as parcerias e revogar a sua legislação, e que leve para as eleições de outubro a escolha sobre o futuro dessa gestão privada da coisa pública.

Só vejo vantagem em que, em vez do impasse atual, se caminhe para a obrigação de todos os partidos inscreverem nos seus programas eleitorais a resposta a estas duas questões: querem ou não que os hospitais privados continuem a gerir os públicos, e que aliança vão estabelecer para concretizar a sua escolha.

Tenho em contrapartida dificuldade em perceber a posição do PCP, pois sempre admiti que se oporia à gestão pelos grupos privados, mas o certo é que permitiu que durante semanas o governo anunciasse que tinha o seu voto garantido para a continuidade das PPP, sem que houvesse uma palavra de desmentido. Jerónimo de Sousa alimentou esta charada ao afirmar que “as PPP não são o alfa e ómega” da Lei, a imprensa e as televisões deram por certo esse voto vezes sem conta e um editorial de um jornal, defendendo a posição do governo, chegou mesmo a apresentar esse compromisso como o exemplo a seguir. Presumo apesar disso que o voto final esclarecerá a sua posição.

Outros preferiram a conveniência, o que consigo compreender quando a devoção política se impõe. Um médico, Mário Jorge, subscreveu numa semana uma carta “ao secretário-geral do PS no sentido de se opor a esta formulação (da lei proposta pelo governo), propondo que a gestão dos estabelecimentos do SNS seja pública. É que as PPP configuram um inequívoco conflito de interesses entre quem opera no mercado dos cuidados de saúde e gere simultaneamente estabelecimentos do sector público”, e, na semana seguinte, sabendo que o PS quer mesmo manter o “inequívoco conflito de interesses”, apelou à esquerda para o aceitar, dado que “hipervalorizar as PPP desvalorizando o que já foi conseguido” é “uma atitude irrealista pouco consentânea com a defesa do SNS”.

Em qualquer caso, se há uma lição destas semanas, é não se dança na corda bamba em matéria de PPP. Ou Portugal as enterra ou dá vencimento ao programa neoliberal que as promove. Afinal, há mesmo uma diferença entre a esquerda e a direita.

PS - Conheci António Arnaut e privei com ele, sobretudo nos seus últimos anos de vida. Sei porque quis escrever uma Lei de Bases com João Semedo. Conheci o João, passei anos ao lado dele, vivemos muita vida juntos, fomos deputados ao mesmo tempo, partilhámos responsabilidades, conversámos sobre a sua experiência como diretor de hospital e como doente. Sei porque quis escrever uma Lei de Bases com Arnaut. E sabemos todos, concordemos ou não, porque propuseram nessa lei acabar com as PPP. Sabemos todos porque é que, na sessão de Coimbra em que a Lei foi apresentada, Semedo disse que “as PPP transformaram o SNS na banca de investimento do negócio privado da saúde. Não há uma só boa razão para que continue a ser assim”. Por isso, quando leio um editorial de um jornal a apelar à consagração das PPP na Lei de Bases em nome da memória de Arnaut e Semedo, aprendo com tristeza que a ignomínia não tem limites.