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domingo, 16 de junho de 2019

Lava Jato é maior que Moro, Dallagnol e Lula, dizem professores de Harvard e Oxford

Ezequiel González Ocantos, de Oxford, diz que a grande pergunta é se operação é forte suficiente para resistir ao escândalo; Matthew Stephenson afirma que força-tarefa é oportunidade de mudar as instituições no Brasil.

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Pesquisador diz que força da marca Lava Jato vai ser testada com as gravações das conversas de Moro e procuradores

Pesquisador diz que força da marca Lava Jato vai ser testada com as gravações das conversas de Moro e procuradores

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Professor do Departamento de Política e Relações Internacionais de Oxford, Ezequiel Ocantos, em sua mais recente pesquisa, colocou pessoas sentadas lado a lado para falar sobre operação Lava Jato no Recife (PE).

No estudo, que ainda está em fase de análise dos dados, o pesquisador também ouviu participantes defenderem que a operação dure "para sempre" e que cada Estado brasileiro tenha uma Lava Jato para chamar de sua.

Ocantos, que em sua pesquisa busca entender a qual a percepção brasileira a respeito da maior operação anticorrupção do Brasil em parceria com Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco, diz que a marca Lava Jato já é hoje maior que o Judiciário. Ou seja, vai além do ex-juiz e atual ministro Sérgio Moro ou que o Ministério Público Federal.

"Com certeza, a Lava Jato é maior que Moro. Já é percebida como uma instituição, quase um poder separado", diz o professor, que nasceu na Argentina, fez graduação e mestrado na Universidade de Cambridge e é doutor em Ciência Política pela Universidade Notre Dame (EUA).

O americano Matthew Stephenson, professor de Direito de Harvard e ex-assessor de um juiz da Suprema Corte americana, concorda que a percepção do público a respeito da operação transcende Moro e vai além da atuação da força-tarefa comandada pelo procurador Deltan Dallagnol. Stephenson diz ainda que a Lava Jato também é "maior que Lula".

"Entendo que Lula é um político muito influente e uma figura muito carismática no Brasil, mas essa operação é muito maior. É compreensível que na narrativa anticorrupção as pessoas se concentrem em indivíduos porque nós procuramos por heróis e vilões. Mas a Lava Jato é tão grande que tem o potencial para mudar as instituições", diz Stephenson, que tem se dedicado a pesquisar corrupção e separação dos Poderes.

Efeito dos vazamentos na Lava Jato

No entanto, nem Stephenson nem Ocantos dizem saber dimensionar que efeito os vazamentos das conversas entre Moro e Dellagnol terão sobre a "marca" da operação. Divulgadas pelo site The Intercept Brasil, do jornalista Glenn Greenwald, trechos das mensagens trocadas entre o então juiz e o procurador sugerem que Moro orientou ações e cobrou novas operações dos procuradores por meio de Dallagnol, o que, segundo o Intercept, daria um viés partidário às ações contra o ex-presidente Lula.

Nesta sexta (14), o The Intercept Brasil divulgou nova conversa de Moro, de maio de 2017, em que o então juiz sugeriria a procuradores do MPF (Ministério Público Federal) uma ação para rebater a defesa do ex-presidente Lula após depoimento do petista à Lava Jato.

Ocantos admite que a imagem de Moro, que no final de 2018 abandonou a carreira de juiz para fazer parte do primeiro escalão do presidente Jair Bolsonaro, ainda está muito associada à operação. "A operação [...] ainda está muito associada à figura de Moro, que incorporou a marca. Por isso, a grande pergunta é se é uma marca forte suficiente para resistir a esse escândalo". Para o pesquisador, é possível, por exemplo, que os acontecimentos recentes só reforcem as imagens contra e a favor que as pessoas têm da operação.

"Eu acho que é uma pergunta aberta, não sei a resposta. Não está claro o que vai acontecer", diz Ocantos. "Os que são a favor podem pensar: claro que eles (Moro e procuradores) tinham que fazer isso para combater a corrupção. E os que já viam problemas na Lava Jato podem dizer: claro que tem viés", completa o argentino.

Ezequiel González Ocantos diz que diálogos mostram juiz e procurador 'fora do personagem'

Ezequiel González Ocantos diz que diálogos mostram juiz e procurador 'fora do personagem'

BBC NEWS BRASIL/Reuters

Já Stephenson diz ser importante saber quantos são os que apoiam a operação mas não têm uma postura passional em relação à Lava Jato.

"Se eu fosse brasileiro e não tivesse analisado as conversas (vazadas) de forma cuidadosa como eu tentei fazer, eu seria o tipo de pessoa que teria mudado minha postura porque eu sou simpático à campanha anticorrupção e as evidências do vazamento indicam que é tudo política. Mas não sei como as pessoas estão vendo isso", diz o professor de Harvard.

Stephenson, que inicialmente interpretou os diálogos como "uma chocante e imperdoável quebra de ética do então juiz Moro" e um "erro de avaliação" do procurador num texto publicado no blog criado por ele, recuou e afirma ter usado "palavras fortes demais". Para o jurista, nem todos os diálogos "são tão graves quanto o Intercept parece mostrar".

O professor prepara um novo post para o blog Global Anti-Corruption, uma referência para quem estuda o tema da corrupção, no qual faz uma reflexão sobre a possibilidade de parte das conversas entre Moro e Dallagnol terem sido travadas na fase investigativa e não durante o julgamento – e por que, segundo ele, isso pode não ser interpretado como uma contundente evidência de que Moro agiu de forma completamente irregular.

Apesar de baixar o tom das críticas, o professor diz ainda ficar incomodado com a troca regular de mensagens entre um juiz e um procurador e também com o tom de algumas das conversas que, segundo ele, sugerem um teor "excessivamente colaborativo".

'Fora do personagem'

Para Ezequiel Ocantos, as gravações divulgadas são como "uma mosca na sala", que nos permitiu ver os procuradores e o juiz "fora do personagem".

"Acho que essa é a importância do evento (das gravações). Mais do que estarem agindo ou não de forma justa, eles estão agindo fora do personagem, de uma forma que a gente não espera que se comportem", avalia o professor, dizendo que a revelação das conversas escancarou uma relação que até se podia imaginar que existia, mas que não era aberta.

Ele pondera, contudo, que personagens como Moro e Dallagnol dificilmente vão gerar consenso porque miram figuras públicas que dividem opiniões.

"Aqueles que gostam das pessoas vão achar que a decisão é errada e as que não gostam vão achar que as decisões são as corretas, mesmo que tomada pelo mesmo juiz. É muito difícil serem percebidos como imparciais", avalia.

Ezequiel González Ocantos questiona se episódio só vai reforçar as imagens que defensores e críticos já construíram em relação à Lava Jato

Ezequiel González Ocantos questiona se episódio só vai reforçar as imagens que defensores e críticos já construíram em relação à Lava Jato

BBC NEWS BRASIL /OXFORD

Leituras distintas

Ocantos cita ainda que a própria dinâmica do trabalho em um caso como a Lava Jato pode ter leituras completamente distintas.

O professor diz que é esse o caso dos diálogos dos procuradores sobre a entrevista do ex-presidente Lula antes das eleições.

Segundo as conversas divulgadas pelo The Intercept Brasil, procuradores da força-tarefa em Curitiba, liderados por Deltan Dallagnol, discutiram formas de inviabilizar uma entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizada à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em setembro do ano passado.

Os diálogos sugerem que, para os procuradores, a entrevista, que havia sido autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, poderia "eleger o (Fernando) Haddad" ou permitir a "volta do PT" ao poder.

Diálogos dos procuradores sobre entrevista de Lula às vésperas de eleição tem duas leituras possíveis e tende a reforçar opinião prévia sobre operação, diz professor

Diálogos dos procuradores sobre entrevista de Lula às vésperas de eleição tem duas leituras possíveis e tende a reforçar opinião prévia sobre operação, diz professor

BBC NEWS BRASIL / AFP

Nas conversas no grupo divulgadas pela publicação, eles discutiram a possibilidade de impedir a entrevista ou qual formato traria menos benefícios políticos para Lula.

"Você pode ler os chats sobre a entrevista do Lula de dois jeitos. Pode pensar que eles odeiam Lula, que são completamente enviesados, e contra ele. Mas pode achar que, se (os procuradores) querem que a investigação sobreviva, pensam na melhor chance para isso: um governo que vai querer parar a investigação ou outro que não", avalia. "Talvez seja uma mistura dos dois", opina.

Já Stephenson diz ter ficado "desapontado" em ver procuradores que respeita "fazendo pouco caso dos valores de uma imprensa livre", ao defenderem que Lula não falasse ao jornal Folha de S.Paulo antes das eleições.

"Por um lado, fiquei preocupado com vários aspectos das mensagens, porque discordo das conclusões políticas e legais da equipe da Lava Jato, e, o mais importante, porque me incomodei com procuradores falando tão abertamente sobre sua esperança de que um lado, em vez de outro, vença uma eleição", escreveu o professor de Harvard no blog.

Para Stephenson, contudo, "a hostilidade ao PT pode ter resultado dos ataques implacáveis ​​do PT à operação Lava Jato, incluindo ameaças de fechamento e denúncias pessoais dos promotores."

Já Patrício Navia, professor no Centro para Estudos Globais da Universidade de Nova York (NYU), afirma que a credibilidade da Lava Jato fica comprometida diante dos vazamentos

Já Patrício Navia, professor no Centro para Estudos Globais da Universidade de Nova York (NYU), afirma que a credibilidade da Lava Jato fica comprometida diante dos vazamentos

BBC NEWS BRASIL

Razões para questionamento

Diferente de Ocantos e de Stephenson, o professor no Centro para Estudos Globais da Universidade de Nova York (NYU), Patrício Navia, afirma que a credibilidade da Lava Jato fica comprometida diante dos vazamentos. "Há motivos suficientes para questionar os resultados da operação, diz.

"Se uma pessoa é julgada e condenada por acusações de homicídio e, em seguida, há evidências de que os promotores adulteraram as evidências, a decisão provavelmente será anulada. Este não é o resultado da pessoa não ser culpada, mas a violação do devido processo é suficiente para anular a decisão", afirma Navia.

"Pelo menos, no que diz respeito ao impacto político, a credibilidade de todo o processo está em dúvida. Isso será amplamente usado pelos defensores de Lula que afirmaram que todo o processo foi politicamente motivado", completa o professor da NYU.

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Entre as brumas da memória


Nem com uma flor

Posted: 15 Jun 2019 01:31 PM PDT

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Se é para falar de beatas...

Posted: 15 Jun 2019 11:40 AM PDT

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Admirável Mundo Novo

Posted: 15 Jun 2019 09:30 AM PDT

Expresso, 15.06.2019
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SNS: Obrigação de toda a esquerda

Posted: 15 Jun 2019 05:56 AM PDT

«Respeitando a existência do sector privado e o princípio da complementaridade ditada pela necessidade, é imperioso que os partidos de esquerda encontrem uma fórmula capaz de concretizar um princípio simples e claro: os estabelecimentos do SNS devem ter uma gestão pública.»


Manuel Alegre
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Renovar a Europa

Posted: 15 Jun 2019 02:46 AM PDT

«Esta Europa diz querer-se autónoma e unida. Depois de ter falhado a união por via de políticas que servissem efetivamente as suas populações, as lideranças europeias passaram a buscá-la noutras miragens. Trump foi eleito presidente nos Estados Unidos e não foi preciso muito tempo para se "encontrar" esse desígnio: o melhor remédio para unir-nos seria o de reforçar uma alternativa à NATO. Como? Trabalhando para um exército comum. Foi com determinação que, no plenário de Estrasburgo, a chanceler Angela Merkel o pronunciou com todas as letras. Foi também com pompa e circunstância que Emmanuel Macron se fez ouvir defendendo a ideia de um exército europeu como forma de redução da dependência dos Estados Unidos na defesa.

Apesar de várias críticas e dúvidas substanciais, lá se foram alinhando uns e outros, juntando-se países e, mesmo que não fosse na forma de exército, foi-se construindo o que se quis transformar numa ideia feita: "Com Trump de um lado e um Brexit aqui, será mesmo a política de defesa que nos vai unir." Nunca o antimilitarismo ou a solidariedade internacional foram postos na equação, já que isso não é coisa que alimente negócio.

Esta narrativa assim contada não deixa, contudo, tapar muitas das falhas que ajudam a que esta ideia seja mesmo e cada vez mais só o espelho da falta de um projeto para a União. Desde logo, não se pode apagar que a França tenha regressado ao comando militar da NATO há cerca de dez anos e, com isso, procurado reafirmar a sua posição de potência nuclear. Em segundo lugar, quando os Estados Unidos procuraram destruir o acordo feito com o Irão, que seria uma forte peça no caminho necessário para um verdadeiro mecanismo de desnuclearização internacional, a União Europeia ficou no meio da ponte e não jogou o que poderia ter sido o seu papel fundamental para o nosso futuro comum, ao lado da paz. E terceiro lugar, assistimos nesta semana ao primeiro episódio para pôr fim à veleidade de autonomia militar europeia no acordo firmado entre a Polónia e os Estados Unidos. Donald Trump encontrou nos polacos a plataforma que precisava para voltar a pôr a NATO no centro da política europeia de onde nunca saiu efetivamente. Uma base militar a sério, um negócio para a compra de armamento norte-americano e o contentamento de Stoltenberg fazem o resto da fotografia. O eixo franco-alemão vive cada vez mais de rótulos que dizem pouco a muitos, e para os quais a Polónia se está a borrifar, e a União Europeia da incapacidade de escolher o lado certo: nem NATO nem exército comum.

Enquanto isto se passa, negoceiam-se no Parlamento Europeu as novas configurações políticas. A extrema-direita unida para as eleições manteve a divisão de poder no Parlamento. Macron lá criou o seu grupo parlamentar Renovar a Europa, não se sabe ainda bem para que propósito. Socialistas e verdes aguardam os termos da grande coligação para supostamente afrontar a extrema-direita. E de política? Zero. A paz pode esperar.»

Marisa Matias

sábado, 15 de junho de 2019

A nostalgia das causas

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 15/06/2019)

Pacheco Pereira

Há uma doença que, de vez em quando, assalta a nossa democracia: a nostalgia das causas. Em particular, quando essa nostalgia é enunciada como desejo político, e quando essas causas representam uma distorção democrática. Num país que teve uma ditadura de 48 anos e um PREC de dois ou três, em que existiu uma censura total durante mais do que uma geração, as causas tendem a ser um remake, ou do pensamento orgânico ou da ditadura ou do PREC. Elas associam-se também ao discurso sobre a identidade nacional, quer visto negativamente, quer na ideia expressa na pergunta “que país queremos”? Se passarmos dos truísmos, - na verdade toda a gente sabe que país queremos, - entramos num terreno muito pantanoso e profundamente iliberal.

Cito dois exemplos, porque percebemos melhor do que estou a falar juntando nostalgias à esquerda e à direita que são espelhares. A nostalgia do PREC ou, se se quiser, do “25 de Abril” como programa político é fácil de enunciar: “ainda não se cumpriu Abril”. A ideia de que havia um programa implícito no 25 de Abril para além da democracia, da descolonização, e do desenvolvimento (o elemento mais ambíguo) traduz-se não só em várias formas de minimização da democracia representativa a favor de formas descritas como “participativas”, de que um exemplo eram as ideias de Maria de Lurdes Pintasilgo, como também num programa político muito próximo dos partidos como o BE e o PCP. As causas enunciadas de “Abril por cumprir” não são de Portugal, mas de parte dos portugueses.

Podem ser enunciadas com as melhores intenções do mundo, o combate à exploração, a defesa da igualdade, a condenação da ganância e do lucro, a dignidade a que todos têm direito e que a pobreza sonega, tudo isto. A democracia contém essas causas, mas o livre jogo do voto escolhe como elas são traduzidas em política, ou em ideologia, deixando para os mecanismos democráticos a escolha das soluções e prioridades. Por isso, elas não são universais, e quando se anda com saudades dessas causas como sendo de todos, é para um mundo não-democrático que vamos.

Num mecanismo muito espelhar, a esquerda do “cumprir Abril” encontra-se com a direita dos “desígnios nacionais”. Nos dias de hoje, e nos discursos do 10 de Junho, - o feriado péssimo da hipocrisia num país que não respeita a sua soberania, nem as suas Forças Armadas, nem os seus emigrantes, e muito menos lê Camões, - assistiu-se ao retorno ideológico da orfandade das causas. O pressuposto é o de que faltam causas, como havia no passado, em particular entre os jovens. Já não têm que lutar pela democracia, nem pela liberdade, nem pela Europa e, como encontram o mundo “ocupado” pelos mais velhos, que usurpam a riqueza em nome dos direitos adquiridos (uma das heranças ideológicas do período da troika), e como as elites os abandonam, ficam sem “futuro”. Tudo isto são tretas, mas ficam para outra altura.

Voltemos à democracia. As democracias não tem causas teleológicas, nem “desígnios”, nem “políticas de espírito”, nem “objectivos consensuais”, porque a essência da democracia é a diferença: pessoas que pensam diferente, que se organizam em partes, com visões do mundo distintas, expressando interesses diferentes. Não partilham “desígnios”, nem “sentidos comuns”, nem mesmo, citando Cavaco e Silva, tendo a mesma informação chegam a conclusões comuns. As democracias não são regimes científicos, nem naturais, são artificiais e culturais.

As democracias só têm duas regras, a soberania popular expressa pelo voto, e o primado da lei. O seu programa único é o bem comum, o bem de todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, negros e brancos, católicos e budistas, desde o primeiro dia até aos cem anos. As democracias não são providenciais nem religiosas, não acham que os homens na terra estão a fazer uma prova para serem julgados e enviados ou para o Paraíso ou para o Inferno. São regimes laicos e do presente, o bem comum é para os que estão vivos e para quando estão vivos.

Sobre o que é esse bem comum, cada “parte” tem um entendimento diferente, muitas vezes conflitual, quanto ao que isso significa e como lá se chega. Por isso os “consensos”, para além das diferenças, dos partidos, das políticas e das ideologias, são uma anomalia ambígua, por muito que também haja uma “consensomania”, que vem de 48 anos de anátema sobre a política, que os considera momentos altos da vida cívica. Seria tão bom entendermo-nos todos? Não em democracia.

Quem é que cria obstáculos às causas do “país que queremos”? No passado era o clericalismo, a monarquia, depois no Estado novo a “balbúrdia” da política, e hoje, no discurso populista, as elites. Quem são essas elites? Os políticos, os sindicalistas, os jornalistas, alguns artistas, por coincidência as únicas entidades que a democracia e a liberdade criou e permite, a começar por aqueles que respondem perante o povo e o voto. Na lista das elites, raras vezes entram os empresários, os tecnocratas “não políticos”, os poderes fácticos da Igreja e do futebol, e tenho quase a certeza que se fizesse uma lista nominal estariam lá os deputados, os dirigentes partidários, os sindicalistas, os comentadores, embora não estivessem todos. Mas já alguma vez aqueles que hoje falam das elites incluíram a Associação Industrial, ou a Confederação da Indústria, os Amorins e os Pereira Coutinho, ou os Soares dos Santos, ou os Melos, etc.? Mas certamente que incluiriam a FENPROF e a CGTP. E no entanto a maioria das decisões que condicionam a vida do país e o “futuro” dos jovens, condenados a salários baixos e ao trabalho precário, têm muito mais a ver com esta elite, a começar na sua relação discreta com o poder político.

Poupem-nos, pois, ao retorno aos “desígnios” e às causas, ao unanimismo orgânico de Portugal, e a um discurso envenenado mais pela impotência política do que pela razão. Para lutar contra a pobreza e a exclusão não é preciso nenhuma causa, nem “desígnio”, nem bandeira, é preciso lutar contra aquilo que a permite. E aqui, como é natural em democracia, divergimos.

Sérgio Moro ou a caricatura de um juiz

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 15/06/2019)

Miguel Sousa Tavares

1 Não é lícito afirmar que a revelação de que Sérgio Moro andou a combinar com a acusação a melhor forma de condenar o ex-Presidente Lula da Silva serve, por si só, para arrasar toda a acusação e pôr em causa a condenação. É preciso não esquecer que esta foi confirmada em recursos por dois tribunais superiores, embora com o ambiente político devidamente montado para tal e com alguns pormenores que dão que pensar (um juiz pronunciou-se a favor da culpabilidade de Lula antes de ter lido o processo, a assistente de outro celebrou previamente nas redes sociais o desfecho do recurso que ainda não fora julgado). Mas também não é possível sustentar que nada de essencial muda depois de conhecidas as indecentes conversas mantidas entre Moro e dois procuradores, as suas tentativas para impedir, com sucesso, que Lula desse uma entrevista que poderia, segundo eles, pôr em causa a vitória eleitoral de Bolsonaro ou os indícios de que Moro terá manobrado de forma a que o processo Lava Jato fosse parar a Curitiba e às suas mãos. Haja ou não matéria legal para exigir uma revisão de todo o processo de Lula — sobretudo, após conhecido o mais que o “Interceptor Brasil” irá revelar — uma coisa tornou-se evidente e não pode ser negada de boa-fé: Sérgio Moro tinha uma motivação política pessoal contra Lula da Silva. Estava pessoalmente empenhado em que Lula fosse afastado das presidenciais, para as quais partia como favorito, e que Bolsonaro fosse eleito Presidente.

O mínimo de decoro teria recomendado que o juiz se remetesse ao seu trabalho em Curitiba, coberto de glória para metade dos brasileiros, após ter conseguido enfiar na prisão por 13 anos o homem que foi o mais popular Presidente do Brasil. Mas a agenda política de Moro não se esgotava aí e ele nem hesitou em dar o passo fatal, com o qual arrancou a máscara: aceitar ser ministro da Justiça no Governo do Presidente que ajudara a eleger a partir da sua posição como juiz. Nem mesmo na equipa de Trump se desceu tão baixo, em termos de confusão entre a Justiça e a política.

Mas só se admirou quem quis: Sérgio Moro já tinha mostrado a sua verdadeira face quando, igualmente por motivação política, resolver “vazar” uma escuta telefónica ilegal entre a Presidente Dilma Rousseff e Lula. Quando um banal juiz de 1ª instância não só ordena ilegalmente uma escuta ao próprio Presidente da República, como depois ainda se permite divulgá-la na imprensa, é óbvio que estamos perante um homem perigoso demais para exercer a magistratura. Moro mostrou que se achava acima da lei, pior ainda: que podia usar os poderes que a lei lhe dava como muito bem entendesse, inclusive para o combate político, em que não devia participar, por estatuto. E muito embora depois se tenha declarado arrependido do seu acto, só realmente uma grande envolvência política de suporte ao “herói” Sérgio Moro justifica que a magistratura brasileira não lhe tivesse imediatamente indicado a porta da rua.

Sérgio Moro, que é vedeta convidada e reconvidada em Portugal, tem escrito na cara aquilo que é: um justiceiro e não um juiz. E pior do que um mau juiz é um juiz-justiceiro, aquele que acredita na sua superioridade moral sobre o comum dos homens e que julga que o direito está ao serviço da sua moral, nem que para isso tenha que fazer tábua-rasa dos direitos alheios. É eloquente que até um dos procuradores escutados a conspirar com ele, Delton Dellagnol, tenha manifestado dúvidas sobre o êxito de uma acusação que não assentava em nenhuma prova directa, mas só nessa figura tropical do “delator premiado”. Moro condenou um homem de setenta anos a 13 de cadeia, condenou um ex-Presidente da República pelo pior dos crimes que lhe poderiam ser imputados — o de corrupção — sem ter contra ele uma só prova directa da acusação feita: uma escuta, uma escritura, um contrato, um papel, um testemunho independente que confirmassem que Lula era, de facto, o dono ou, pelo menos, o usufrutuário do célebre triplex na praia que parece ter recebido como corrupção. Eu, pessoalmente, gostaria muito de perguntar ao ex-juiz Sérgio Moro como é que ele sabe, quando está perante um delator premiado, que este está a dizer a verdade ou apenas a verdade que interessa à acusação e ao próprio delator, que assim será “premiado”. Porque a tal delação premiada — que muitos dos nossos magistrados do Ministério Público bem gostariam de ver introduzida no nosso Código de Processo Penal — não é outra coisa que não um testemunho comprado. E se é crime a defesa comprar testemunhas, por que razão poderá a acusação fazê-lo ao abrigo da lei?

Ciao, Sérgio Moro. Começou como juiz impoluto, idolatrado por muitos; desacreditou-se como juiz independente e imparcial quando saltou para a política nos braços do homem que ajudara a eleger contra aquele que mandara prender; e agora jaz soterrado sob um mar de lama que nenhum Lava Jato poderá limpar. Mesmo na prisão, culpado ou inocente, Lula da Silva é muito mais livre do que ele.

2 Mais três autarcas constituídos arguidos sob suspeita de corrupção — mais os inevitáveis crimes associados de branqueamento de capitais e evasão fiscal. Sem pôr de forma alguma em causa a presunção de inocência, direi, em abstracto, que não me espanta que metade dos casos de corrupção investigados ou julgados diga respeito a autarcas. Porque, ao contrário, do que é politicamente correcto dizer, o governo de proximidade é uma forma de tentação acrescida e não de transparência acrescida. É aquilo a que chamo “o poder fatal” — o lugar onde, longe dos olhos de quase todos, o poder aí existente é o maior empregador, o maior contratador, o maior distribuidor de dinheiros públicos. Contra as malfeitorias de um ministro, temos um Parlamento, um Tribunal de Contas, uma imprensa nacional para nos defender: contra as de um presidente de Câmara de pequena ou média dimensão, temos o silêncio dos dependentes. E todos sabemos que, infelizmente, desde que haja ladrão, a ocasião vai sempre ter com ele. É uma das razões pelas quais a regionalização, tão ansiada por alguns, me deixa logo de cabelos em pé.

Não obstante, estas mega-operações de justiça mediática deixam-me sempre um sentimento ambíguo. Às vezes até parece que é pela anunciada grandiosidade da operação — dezenas de magistrados, centenas de investigadores, dúzias de buscas, milhares de páginas de documentos apreendidos, tudo devidamente publicitado aos quatro ventos — que se pretende fazer prova prévia da culpabilidade dos suspeitos. Suspeitos que as autoridades logo transformam em arguidos e a opinião pública em corruptos, sem mais. E por vezes sucede que, desencadeada a mega-operação, nada mais acontece durante meses ou anos. Demasiados processos ficam parados ou jamais chegam a julgamento e demasiadas pessoas, que tanto podem ser culpadas como inocentes, carregam sobre os seus ombros uma sentença popular de corrupção inapagável. Que ela existe e é também demasiada, não tenho dúvidas. Que ela precisa de todos os meios para ser investigada, também não. Mas não haverá forma melhor de o fazer mais depressa e com menos danos colaterais?

3 Eis outra coisa que se repete de ano para ano: a falta de parte dos meios aéreos previstos para o combate aos incêndios, porque o desfecho de concursos está suspenso em tribunal, após reclamação dos vencidos. Este ano são 17 os meios aéreos cuja entrada ao serviço está pendente de uma decisão da Justiça sobre o resultado de dois concursos. Mas os incêndios não esperam pela Justiça e por isso pergunto: não será possível que os concursos imponham a obrigatoriedade do vencido prescindir de reclamar o resultado do concurso? Ou, ao menos, prever uma tão grande penalização em caso de indeferimento judicial, que os concorrentes pensem duas vezes antes de reclamarem sistematicamente, de cada vez que perdem o concurso?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

O turista exasperado

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 14/06/2019)

António Guerreiro

Sabemos que o turismo chegou à fase última da sua condição de paródia da mobilização total e, exasperado, tenta escapar ao círculo vicioso que é a lei da sua existência, quando lemos a notícia de que as expedições para subir o Evereste estão a saturar a montanha de filas de gente aventureira e de que Chernobyl, onde ocorreu uma catástrofe nuclear em 1986, é um novo lugar de atracção turística.

Se já quase não existem as terras virgens, abertas à exploração e à descoberta, então é preciso recorrer aos redutos que já nem são um território de aventura, mas de alto risco. A analogia militar que o turismo evoca encontra aqui a sua legitimação sem reservas. A aventura, que foi outrora uma motivação fundamental do turista, consistia em sair para um lugar exterior à vida comum e procurar momentos de vida excêntrica ou extravagante. Agora, já não se trata de aventura, mas de desafio radical. Aventura era o que procuravam os jovens dos anos 50 e 60 do século passado, que renunciavam ao conforto e, hostis aos meios turísticos em fase de grande desenvolvimento, punham-se em viagem com um saco às costas e chegavam mesmo a criar artificialmente as duras condições para uma experiência singular. Sobretudo, uma experiência que lhes proporcionava a evasão do mundo dos pais, dos adultos.

Um cruzeiro gigante que atravessa, descontrolado, a Laguna e choca com Veneza, corpo contra corpo (e isto não é um modo de dizer metafórico, esta cidade está exposta a estes choques, literalmente entendidos), como aconteceu há duas semanas, não tem nada de extraordinário, faz parte do curso normal da indústria do turismo. É verdade que o acontecimento fornece imagens fotográficas que mostram ao mundo inteiro a Serenissima cidade tão vulnerável como um urso polar na nova era do Antropoceno. Mas, aí, estamos perante um desastre ocasional que muitos farão os possíveis para subtrair à lógica desastrosa que o originou, enquanto que as viagens turísticas à zona de radioactividade de Chernobyl são a fruição de um desastre ainda a ocorrer, silencioso. Quanto ao aventureiro que sobe ao Evereste, ele vê o mundo aos seus pés, mas para lá chegar passa por provações e perigos do mais elevado teor. Em todos os casos, o mundo parece completamente domesticado, atravessado de lado a lado e de baixo para cima. Este mundo completamente profano e fanérico é como que rebaixado à condição de parque de diversões. As consequências, como sabemos, é que já não há nada para ver, há apenas umas últimas coisas, perigosas, para experimentar. A Europa invadida pela “sight-seeing people” é uma coisa que, vista de fora, vista por aqueles que vêem os outros a ver, tem um lado cómico (bem sei: pode ter também um lado irritante e, quanto aos seus efeitos, pode mesmo tornar-se um mal maior), exactamente porque parece que entramos num mundo às avessas, mas todos sabemos que “a coisa a ver”, que era de uma importância decisiva para os turistas, já não existe. Existiu, de facto, para quem lia o “red book” para viajantes, que o inglês John Murray, um profeta do turismo, publicou em 1836, fazendo nele o inventário das curiosidades da Holanda, da Bélgica e da Alemanha, recomendando ao mesmo tempo os trajectos mais pitorescos.

O movimento que fez do turismo o mais importante fenómeno mundial do nosso tempo é tão poderoso que não pode admitir que o seu destino é o falhanço e que, por isso, só pode lançar-se em esforços cada vez maiores para não parar, em renovar incessantemente as suas promessas para não desacelerar.

Até onde pode chegar nas suas promessas e realizações insensatas, às vezes estapafúrdias, não se sabe. Temível seria vê-lo a regredir, porque o que ele deixa geralmente, quando desaparece, são cidades vazias e devastadas. Quem não gosta do que ele vai fazendo a tudo o que está à sua frente, também não se pode sentir feliz com o que ele deixa atrás de si. Por isso é que o melhor, ainda, é vê-lo exasperado, como ele está hoje condenado a ser, quase sempre, enquanto o resultado de todos os esforços para não desacelerar. Quem ousa hoje imaginar a situação anterior ao nascimento do turismo, quando as viagens tinham um carácter essencialmente prático?