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terça-feira, 16 de julho de 2019

A Universidade que (não) temos

por estatuadesal

(Joseph Praetorius, 15/07/2019)

Em Portugal - isto é evidentemente uma heresia, mas é assim - a feminilização da frequência dos cursos superiores costuma coincidir com a perda da sua relevância social. Ou seja, a Universidade é procurada não como lugar de conhecimento, mas como fonte de habilitação profissional e legitimação do estatuto social. Os homens procuram habilitações universitárias com as quais possam sustentar-se e sustentar uma família.

A quase nula vitalidade intelectual da sociedade portuguesa - à beira da indigência, neste plano como noutros - determinou, por exemplo, a desfocagem de quase todas as áreas das Humanidades, há décadas menosprezadas pela incapacidade de, nesta desgraçada terra, se conseguir aí gerar e manter qualquer sustento familiar pelo trabalho. O teatro é uma desgraça, o cinema também, a vida editorial é uma anedota, as artes plásticas dependem quase exclusivamentye das encomendas ministeriais ou municipais, o ensino um disparate, o jornalismo é uma rasquice pegada (as páginas culturais desapareceram como lugar de notícia e divulgação) e, portanto, só um louco procuraria aí uma habilitação profissional que haveria de o ser para a indigência.

O Direito, seguiu-se a estes domínios, depois de um interesse marcante da baixa classe média que queria dominar "as regras do jogo" e hoje se afasta da área porque é "para os que já lá estão". As frequências dos cursos feminilizam-se em coincidência. Porque uma boa parte das mulheres jovens ainda procura casar e a habilitação universitária é uma afirmação de paridade e um bom amparo no divórcio, que continua a ser o destino mais frequente dos casamentos.

A femililização das ciências depois da chacina dos programas de investigação ciêntífica feita pelo semi-alfabetizado Coelho - hoje catedrático na Ajuda - e o seu governo de ressaibiados, opistas e imbecis, deixou multidões de investigadores em posição insustentável, gerou um fluxo migratório de portugueses qualificados em fuga, e, evidentemente, tocou na viabilidade dos diplomas respectivos do ponto de vista de um jovem de classe média - baixa, ou alta - que não tenha o negócio de família para o acolher no fim da formação universitária.

Olho, portanto, com preocupação para estes números.

Porque podem ser fado, justamente. E o fado não é a nossa música mas a nossa tara, como dizia o velho Ivo Cruz. O redactor do El País é que não conhece suficientemente bem a sociedade local (conhecimento aliás dispensável a quem possa viver e trabalhar noutro sítio, evidentemente).

Quanto ao menosprezo surpreendido que o texto revela pelo "país do fado" está perfeitamente justificado.

Ver o artigo do El País, referido acima, aqui

A ingratidão da direita portuguesa

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 15/07/2019)

Depois de uma década a ocupar o Palácio de S. Bento e mais outra o Palácio de Belém, o homem que hoje comemora oito décadas de vida é ignorado pela comunicação social.

A criança que veio ao mundo no Poço de Boliqueime, há 80 anos, passa incógnito, sem fotos dos netos nas marquises da Travessa do Possolo ou na missa de ação de graças que o devoto casal, com 56 anos de ininterrupto matrimónio, não deixaria de mandar celebrar pelo que recebeu, sem precisar de dar vivas à democracia.

Os devotos do homem que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, do salazarista de maior destaque da democracia, enviam-lhe flores na clandestinidade e desejam-lhe felicidades em privado, enquanto em público dizem o que ele disse de Ricardo Salgado, «nunca fui amigo dele».

Nem Passos Coelho e Paulo Portas cuja permanência no governo, sem apoio da AR, se esforçou por impor, nem essa dupla sombria publicitou a sua gratidão a quem tinha pela Constituição e pelos adversários o mesmo acendrado respeito que nutria por Saramago.

Há pessoas assim, capazes de serem tão dedicadas à família e aos negócios como aos correligionários e, uma vez desacreditados, são abandonados pelos que mais lhe devem.

Dos Açores não vieram sorrisos de vaquinhas que o enlevavam, ou das Ilhas Selvagens o ruído festivo das cagarras a cantarem os “Parabéns a Você”. Talvez, algures, na praia da Coelha, o genro agradecido lhe faça um discurso e os netos dirigidos pela D. Maria se esforcem a cantar-lhe os parabéns, depois de lida a mensagem vinda de Londres, do banco Goldman Sachs, onde um seu discípulo da ética, imensamente mais culto, não se esquece de quem o lançou na carreira internacional.

Hoje, talvez na Vivenda Gaivota Azul, numa pausa dos Roteiros, combata a azia com uma fatia de bolo-rei, mas há de sentir o silêncio dos cúmplices que o consideram um ativo tóxico, como uma flecha que o dilacera.

Esta direita é ingrata. Nem os dois mais importantes comentadores televisivos deram a cara numa manifestação de júbilo pelo 80.º aniversário do conselheiro de Estado mais absentista do órgão a que pertence e a que deve a imunidade vitalícia.

Por tamanha ingratidão, desejo-lhe longa vida e saúde, certo de que as suas poupanças estão resguardadas. Feliz aniversário, Professor Cavaco!

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Porque é que Pedro Nuno Santos vai mesmo ser líder do PS

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/07/2019)

Daniel Oliveira

Aconselho a entrevista que Vítor Gonçalves fez a Pedro Nuno Santos. Não por encontrarem por lá uma cacha ou grande novidade. Nem sequer por o ministro ter desenvolvido um discurso especialmente denso ou sofisticado sobre o futuro do país ou da esquerda, o que se passou nos últimos quatro anos ou o que se passará nos próximos quatro. Apenas porque fica claro porque é que, mais tarde ou mais cedo, Pedro Nuno Santos será líder do PS.

O que causa impacto naquela entrevista é a clareza nas intenções, pouco habitual em dirigentes do PS. Clareza em assumir os aliados como aliados, os adversários como adversários, o campo político da esquerda como lugar de morada, a identidade socialista sem qualquer complexo e a convicção de que é da existência de campos que se apresentam como alternativa que depende a saúde da democracia. A isso, Pedro Nuno Santos juntou a assunção dos bloqueios europeus, contra os quais pouco mais consegue propor do que uma gestão de forças e expectativas. É a sua fragilidade. Para não se confrontar com esses bloqueios em todas as suas consequências, exagerou na capacidade que este Governo mostrou nos embates com Bruxelas e ignorou o papel de Centeno como controleiro do Eurogrupo em Lisboa.

Pedro Nuno Santos acredita que a única forma de salvar a democracia é garantir que ela tem, dentro do seu próprio campo, alternativas políticas. Não estamos a falar de alternância no poder, em que o pessoal político muda para aplicar receitas semelhantes. Isso é o que tem matado a democracia como exercício de escolha entre caminhos divergentes, única forma de a manter aberta. Isto não quer dizer que a democracia não consiga reproduzir nas instituições os consensos que existem na sociedade. Consegue e deve fazê-lo. Quer dizer que a democracia não pode deixar de ter, no campo dos que a defendem, um plano B. Porque se desistirmos disso é fora do campo democrático que esse plano alternativo se construirá.

Em Portugal, os dois blocos terão de ser liderados pelo PS e pelo PSD, não devendo isso corresponder a um bloco central alternante, em que os pequenos se anulam. Isso seria ainda pior do que o passado, porque faria desaparecer a representação política de um quarto dos eleitores, que acabariam por migrar para margens antidemocráticas. Estes blocos têm de corresponder às sínteses dos que os compõem, dependendo essas sínteses do peso eleitoral relativo de cada um.

Teoricamente, António Costa também tem esta posição. Tanto, que foi obreiro da geringonça. Mas, neste tempo de fortíssima hegemonia neoliberal, há uma grande diferença entre considerar que os aliados naturais e estratégicos do PS são o BE e o PCP e apenas defender que BE e PCP devem ser incluídos no leque de alianças que podem construir maiorias, dando aos socialistas mais capacidade de escolha e derrubando um tabu de meio século. A segunda posição foi a de Costa e isso explica porque tem dedicado os últimos meses a tentar abrir o leque de escolhas. Porque há uma diferença entre uma aliança estratégica e uma aliança tática. Uma aliança estratégica não é um compromisso para a eternidade.

Assumindo que não há qualquer área em que não seja possível trabalhar com o Bloco e o PCP, Pedro Nuno Santos explicou a razão programática para a aliança estratégica que advoga: “Defender o Serviço Nacional de Saúde universal, público e tendencialmente gratuito só se faz com o PCP e com o Bloco, não se faz com o PSD e com o CDS. Investir na Escola Pública universal e gratuita só se faz com o PCP e com o Bloco de Esquerda. Travar qualquer tentação de entrega das nossas reformas aos mercados financeiros e até a reforma das fontes de financiamento só se faz com o PCP e com o Bloco de Esquerda, não se faz com o PSD e com o CDS. As reformas mais importantes para proteger o Estado social, que é a melhor e mais importante construção política que o povo português conseguiu em conjunto através do Estado, só se fazem com o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda, não se fazem com o PSD e com o CDS.” Como tem sido óbvio, António Costa não tirou esta consequência estratégica da sua opção tática.

À clareza estratégica tem de corresponder clareza retórica. Na entrevista, o ministro dedicou bastante tempo a contestar a ideia instalada de que as reformas só o são quando doem aos mais fracos – trabalhadores, desempregados, reformados. Quando há privatização, liberalização e cortes. Só assim são “decisões difíceis”. E disse uma frase que parece ser bastante arrogante: “A direita faz reformas erradas”. Na realidade, a frase é muito menos arrogante do que o discurso que conhecemos de sentido oposto: de que as reformas propostas pela esquerda nem reformas são, porque a realidade as esmaga. A falsa tecnocracia imposta pela direita conseguiu despolitizar a política, transformando os seus dogmas ideológicos, tão estrondosamente desmentidos na crise de 2008, em verdades incontestáveis. Isso sim, é arrogância. Espera-se que alguém ache que o que propõe está certo e, por isso, que as propostas de sentido inverso estão erradas. O que choca em Pedro Nuno Santos é não ter o habitual discurso autojustificativo nem colocar-se como charneira entre o “realismo” da direita e a “utopia” da esquerda. Porque quer liderar um bloco, não quer estar entre os que supostamente representam o possível, e os radicais, que o negam.

Já houve muitos dirigentes da ala esquerda do PS. Mas contentaram-se sempre com o papel de consciência crítica, quase sempre meramente retórica, do PS. Como prémio, tinham direito a uma quota de representação que iam gerindo com burocrático zelo. Nunca se importaram de ser usados para os confrontos com os partidos mais à esquerda, que sempre olharam como concorrência e não como potenciais aliados. Nunca tiveram uma estratégia de poder. Talvez seja uma questão geracional. Pedro Nuno Santos formou-se politicamente num período de derrota dos partidos socialistas à escala europeia. Terá aprendido com isso. E tem mais autonomia, poder interno e ambição do que muitos dos seus jovens turcos.

A passagem pelo Governo garantiu-lhe o tirocínio que lhe faltava: o do poder executivo. Na Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, que nunca foi tão importante como neste Governo, foi o pivô da geringonça. Conquistou a confiança dos parceiros e desatou muitos nós. Usando muitas vezes a autonomia política que tem do primeiro-ministro. A sua falta ficou evidente no momento em que saiu, com sucessão de desencontros. Aliás, atribuo a sua saída a uma vontade do primeiro-ministro em começar a encerrar este período. No Ministério das Infraestruturas e da Habitação ainda só teve vitórias semelhantes, provando as suas capacidades negociais. Falta-lhe tudo o resto. Se for reconduzido, e tudo indica que é essa a sua vontade, terá três desafios fundamentais: erguer uma política pública de habitação, vencer a crise dos transportes que o aumento da procura provocado pela redução dos preços dos passes sociais agravou e reerguer a CP, para dar ao transporte ferroviário o papel que deve ter no país. Tudo depende de dinheiro e não é ele quem tem as chaves do cofre.

Pedro Nuno Santos será líder do PS porque a escolha estratégica que propõe é a que sobra a um socialismo em brutal recuo por toda a Europa a que, apesar da ilusão cíclica que vivemos num oásis, não escaparemos. Tem do seu lado o papel que teve na geringonça, assim como as provas que deu de capacidade negocial.

Tem do seu lado a correspondência da tática com a estratégia, da estratégia com o programa e do programa com os aliados que deseja, o que lhe dá uma plataforma política mais sólida do que o PS tem hoje e um discurso muito mais claro. Tem do seu lado o facto de ser o primeiro dirigente da ala esquerda do PS que não se propõe ser a consciência crítica e domada do partido. Tem do seu lado o destino trágico dos partidos socialistas que quiserem permanecer no cómodo lugar de charneira política. E tem do seu lado a ausência de rostos mobilizadores que levem a cabo o programa político de reabilitação da terceira via, proposta por Augusto Santos Silva. Até tem do seu lado a idade e a sua autonomia política. Terá contra si muitos dos poderes que contam neste país e no seu partido e um percurso executivo que depende do dinheiro de Centeno e Costa.

Colonialismo e crueldade

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 14/07/2019)

Clara Ferreira Alves

De 1922 a 1927, George Orwell serviu o império britânico no norte da Birmânia, como oficial da polícia. Dele é a frase: “O passado pertence aos que controlam o presente.”

Eric Blair, nascido em 1903, vinha da baixa classe média, ou de uma classe média sem dinheiro, mas entrou em Eton, a mais elitista das escola, a escola dos príncipes. Foi vítima de bullying, e sobreviveu às sevícias e humilhações, mas não tentou frequentar Oxford ou Cambridge. Os cinco anos de snobismo e complexo de casta chegaram. Aos 19 anos, estava na Birmânia. Logo se apercebeu da situação colonial, uma exploração cruel dos nativos pela supremacia branca. Dessa experiência birmanesa resultou um livro, um romance, “Dias da Birmânia”, e dois ensaios de génio, “Shooting an Elephant” (Matar um Elefante) e “A Hanging” (Um Enforcamento). São textos que retratam, com a empatia e compaixão que caracterizavam a escrita seca e precisa de Orwell, a tragédia da exploração capitalista colonial e do racismo. O romance, “Dias da Birmânia”, está escrito num estilo soberbo, enfeitado, que Orwell depois renegou (era o primeiro romance e tinha os vícios habituais) e descreve exemplarmente os tipos coloniais. Não é tanto a crueldade mas a suprema indiferença pelos nativos, os asiáticos, a sua invisibilidade, a prestação esclavagista vista de cima para baixo como um direito do funcionário, do comerciante ou do proprietário colonial. Os nativos, escreveu Orwell, eram para os colonialistas, nativos. Interessantes mas, finalmente, inferiores.

O império estava no estertor, em breve a Índia escaparia das algemas e com ela o Paquistão, e, claro, a Birmânia. A tragédia dos rohingya não é compreensível sem conhecer estes capítulos do colonialismo britânico, que sempre se reclamou, em relação ao português, mais avançado e mais culto, menos brutal e troglodita. Basta ler os guias da Índia para ver como os portugueses são acusados, na sua missão cristianizadora, de terem destruído os belos templos das cavernas da ilha de Elephanta, a que demos o nome, em frente a Bombaim, transformando-os em campos de tiro. As estátuas das divindades hindus estão desfiguradas pelas balas dos portugueses, numa selvajaria profana contra os profanos. Sagrado era o que os cristãos diziam que era sagrado. Quem não fosse cristão, ou se convertia ou era destruído. Este foi o modelo da cristandade portuguesa durante séculos. O padrão e a cruz. Deixámos, por esse mundo fora, um império construtor de fortalezas e igrejas, e legiões de cristãos de pele diferente da nossa. Cristãos católicos da Ásia a África, fomos os responsáveis primeiros.

O colonialismo português, com a sua dose maciça de coragem, aventura, crueldade e exploração, de esclavagismo e ignorância, de indiferença e desconsideração, nem sequer achava os nativos interessante. Achava-os fungíveis e sub-humanos. Carne para criadagem, cozinha, cama.

Este colonialismo, com as tropelias e guerras da fase do estertor, nunca produziu um escritor que, como Orwell, tivesse a empatia e a lucidez de o descrever. Nem sequer um Kipling. Ou um Forster. Não produziu nada de extraordinário depois das epopeias, tragédias e relatos do século XVI e XVII. Certamente, nada de extraordinário nos séculos XIX e XX. Exceto o poema de Jorge de Sena, ‘Camões na Ilha de Moçambique’, “pequena aldeia citadina de brancos, negros, indianos e cristãos, e muçulmanos, brâmanes e ateus”.

O colonialismo foi depois amalgamado numa teoria de lusotropicalismo recheado de imbecilidades como as que ouvi dizer a alguns diplomatas e académicos de antanho. Os ingleses fizeram a guerra e nós fizemos amor, make love not war, e assim mestiçámos. Uma orgia de violação, uso e abuso das mulheres nativas e das escravas mascarada de humanismo sexualizado. A nossa sociedade colonial descambou no modelo ainda em vigor na sociedade brasileira, onde os negros são vistos como servos naturais dos brancos.

Luanda era descrita como a grande cidade branca de África, a mais evoluída, a mais arquitetada, a mais pensada, e como um símbolo da glória do império português. A Cidade do Cabo também era gloriosa, mas não tínhamos apartheid, éramos mais “humanos” porque mais mestiçados. Na verdade, a mestiçagem dava jeito e o apartheid, compondo a rigorosa separação das raças e condenando a mestiçagem como um crime, impossibilitava o abuso sexual das mulheres e dos homens que serviam o capitalismo colonial.

O salazarismo, nunca tendo Salazar arredado a manta e o fogareiro e posto um pé nas terras dos selvagens onde mandou combater os ‘turras’ dos movimentos de libertação, sacrificando os mancebos portugueses a uma guerra que não entendiam e da qual nada sabiam, tinha a convicção de que aquilo era nosso por direito próprio e que a posse da terra tinha dentro dela o direito a dispor de uma raça inferior. A Índia nunca lhe interessou tanto, por remota e exótica, ou os longínquos Timor e Macau, como África, Angola e Moçambique. Menos, Cabo Verde, e talvez tenha sido uma sorte para os cabo-verdianos. E a Guiné, onde a guerra seria mais fácil de ganhar.

O colonialismo português teve os seus capítulos de glória nas conquistas e caravelas mas atravessou o século XX, o século das descolonizações, de olhos vendados. Nas escolas, a História de Portugal era uma lenda e uma narrativa mentirosa, arranjada para manter o regime como o defensor dos valores da cristandade em terras de bárbaros. Construíamos a escola e a igreja ao lado e deixávamos o esgoto a céu aberto e o casebre. Já Eusébio era velho, visitei o bairro onde ele nasceu no Maputo, Mafalala. Era isto. O amigo moçambicano que lá me levou não odiava os portugueses. Pelo contrário, tinha vindo educar-se a Portugal e gostava muito de Lisboa. Ele e a mulher são cultos, ela estudou literatura, ele escreveu livros, e assim são os amigos deles. Sempre pasmei da ausência de ressentimento tanto nos intelectuais como na gente simples de um país que condenámos à miséria e à corrupção. Isto deve-se à tal empatia, à humanidade, à educação e à consideração de que somos todos parte de uma raça, a humana.

Não nos odeiam. Nós, temos por cá uma gente que odeia pretos, e ciganos, como temos gente que odeia mulheres, e homossexuais, e doentes com sida, e muçulmanos, e judeus, e por aí fora. Quando se começa a odiar nunca mais se para. É esta gente que tem de ser educada. É esta gente que tem de ler uns livros e sair do canto provinciano e mesquinho das suas cabeças. De ler George Orwell e o que escreveu contra os totalitarismos e autoritarismos de que o colonialismo faz parte. Temos de deixar de controlar o passado.

domingo, 14 de julho de 2019

O estado da vida

«Assistimos esta semana a uma discussão vazia sobre o "estado da nação", quando tanto precisamos de análises sérias sobre os problemas muito concretos que marcam a vida dos portugueses e portuguesas e de propostas simples para a sua resolução. Diz-se que este tipo de discussão é natural em período de campanha eleitoral. Digo não a esse argumento. Primeiro, porque todos os debates regulares sobre a situação do país devem ser rigorosos. Segundo, a campanha eleitoral para as eleições de outubro não deve ser vazia de respostas objetivas, pois isso esvaziará a democracia e afastará as pessoas do ato do dever de votar.

Os portugueses não precisam de um concurso entre partidos sobre a melhor propaganda para vender a promessa de "mais investimento público" ou de "descer impostos". Precisamos sim de garantias reais para fazer chegar os recursos disponíveis aonde eles são necessários e têm de ser investidos - não basta o compromisso de colocar verbas nos orçamentos do Estado. Na questão fiscal, o que interessa mesmo é saber-se com rigor três coisas: i) as receitas que o país pode ter e de que precisa, à luz da sua capacidade económica e financeira e dos serviços que o Estado deverá garantir às pessoas; ii) conhecer-se as medidas que vão impedir a fuga fiscal; iii) garantir que a carga fiscal seja distribuída com mais justiça e aplicar o princípio mais solidário de todos, que é, cada cidadão pagar em cada ano os impostos correspondentes à riqueza adquirida nesse ano.

Precisamos que se abandone a lengalenga das reformas estruturais, que ao longo dos anos tem servido para cavar injustiças e aumentar a exploração, para aprofundar o enredo da financeirização da economia e para atrasar resoluções de problemas. Os partidos devem apresentar políticas estratégicas para o desenvolvimento da sociedade, acompanhadas de respostas às realidades do presente contínuo, base fundamental na construção do futuro. Por exemplo, a Direita tenta instalar na sociedade a ideia de que os serviços públicos estão em situação de caos com o intuito de oferecer grandes negócios a interesses privados. Instalada tal conceção, tornar-se-ia inviável adotar mudanças positivas na gestão e organização dos serviços, na responsabilização e capacitação dos trabalhadores da Administração Pública. Mas esta batalha só será ganha se o Governo abandonar o confronto de posições assente no mero esgrimir de estatísticas e leituras generalistas, e tratar mesmo de recrutar e formar trabalhadores em áreas de carência evidente, se investir em equipamentos, se propiciar condições para uma gestão dinâmica e feita em tempo útil.

No plano laboral colocam-se desafios muito simples que à partida nenhum "parceiro social" põe em causa. Deixo três exemplos: i) inscrever na lei que não pode haver caducidade unilateral de contratos coletivos de trabalho e criar os mecanismos que assegurem tal princípio; ii) impor o respeito pela hierarquia das leis e regulações, ou seja, um regulamento ou acordo numa empresa não pode ferir princípios estabelecidos ao nível de um setor e a legislação e acordos neste plano não podem pôr em causa normas e princípios inscritos nas leis nacionais; iii) dar um forte impulso à valorização do salário mínimo nacional.»

Manuel Carvalho da Silva