(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/07/2019)
Confesso que me comovi quando Pedro Marques pediu para “reconstruirmos a Europa dos nossos sonhos”. A política europeia tem a grandiosidade de uma grande ópera com a plateia vazia. Está lá toda a pompa e circunstância, só não faz grande diferença porque ninguém está a ver. Disse o ministro sem obra emprateleirado em Bruxelas: “Os europeus esperam nada menos do que cinco anos de redenção do projeto europeu depois de dez anos de crise e hesitação”. Os sinais de “redenção” não podiam ser mais claros na escolha de uma alemã que não era candidata e não participou na fraude encenada em que estiveram seis indivíduos que se fizeram passar por pretendentes ao lugar de presidente da Comissão Europeia. Mas ninguém pode acusar a União de não levar as suas fantasias até ao fim. Durante horas, jornalistas e deputados mantiveram um suspense interessante.
Não quero desmerecer os talentos pirotécnicos das instituições europeias. Antes de ser confirmada a nomeação, a senhora Ursula von der Leyen teve de mostrar as suas capacidades de contorcionismo. Não houve nada de bondoso que não defendesse. Vai acabar com a política criminosa para com os refugiados aplicada pelos países que, vetando Timmermans, abriram a porta à sua nomeação. Quer um subsídio de desemprego imposto pela mesma Europa que exigiu a sua redução nos países em crise.
E a mulher que passou à frente de todos candidatos, desrespeitando os deputados eleitos, jura que vai defender o direito de iniciativa do Parlamento Europeu. Tudo o que era impossível até esta terça-feira e continua impossível hoje será possível amanhã, por milagre de um discurso contraditório e convenientemente gasoso em tudo o que fosse difícil. Mas sempre muito verde, muito social, muito inspirador, muito Hino da Alegria.
Que não se pode deixar aqueles deputados à míngua de qualquer coisa que se pareça com política. De tal forma inspiradora que o obreiro da Frente Progressista para afastar o PPE da liderança da Europa lhe deu apoio ainda antes de Ursula falar.
O descaramento no desprezo pelo Parlamento criou mesmo problemas. Antes de ser confirmada a sua nomeação, Ursula von der Leyen teve de mostrar as suas capacidades de contorcionismo. Não houve nada de bondoso que não defendesse
A meio deste texto fiquei a saber que a candidata foi mesmo eleita. Suspiro de alívio. Imaginem que se confirmava o aviso de António Costa antes de ter dado o apoio à nova presidente e que os deputados se irritavam com a desvalorização de que foram vítimas? Imaginem que levavam a sério o apelo de “coragem” feito pela própria Von der Leyen? Era todo um edifício de aparências que desabava, obrigando quem manda a mostrar que manda, revelando assim aos crentes as mentiras da fé. Felizmente, está tudo bem. Houve um debate entre seis, venceu a sétima, os eurodeputados simularam o suspense para parecer que a escolha dos governos também foi sua e a senhora foi obrigada, durante umas horas, a prometer que tudo vai ser diferente do que está a ser. Todos cumpriram o seu papel. E isso é que interessa.
Claro que o descaramento no desprezo pelo Parlamento criou mesmo problemas. Mais por uma questão de poder do que por substância política. A eleição podia ter corrido mal. Para garantir que os deputados engoliam o seu orgulho sem dar muito nas vistas, Ursula von der Leyen teve de dizer a cada grupo político de que dependia a sua eleição o que cada um deles queria ouvir. Mesmo que fossem coisas contraditórias. Nos próximos anos, talvez nos próximos meses, confirmaremos a quem mentiu. Se seguir a tradição, os socialistas terão cumprido esse papel. A questão é saber se foram enganados ou se o quiseram ser.