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sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Cinco notas sobre a greve dos motoristas

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 16/08/2019)

José Soeiro

1 Uma das distorções das nossas representações sobre o que nos rodeia assenta na invisibilidade de grande parte do trabalho humano, seja na esfera da produção mercantil, seja na esfera doméstica. Quando vemos as ruas limpas – ou as escolas limpas, os hospitais o comboio ou a agência bancária – quantas vezes pensamos nos lixeiros e nos varredores que as limparam durante a noite, quantas vezes vemos, quando entramos nesses lugares, o trabalho já feito das mulheres que, para os limpar, ganham uma miséria? Quando pisamos um passeio, conseguimos ver debaixo dos nossos pés o trabalho de quem cortou a pedra e o de quem a colocou ali? Quando escolhemos os alimentos na prateleira do supermercado, conseguimos ver o trabalho, tão desconsiderado, de quem os produziu e transportou? Os exemplos são incontáveis. Há demasiados trabalhos em que só reparamos quando estão por fazer, cujo valor só consideramos quando nos confrontamos com as consequências de não terem sido feitos.

O primeiro mérito de uma greve – e desta greve dos motoristas de matérias perigosas também – é este. Obrigar-nos a apercebermo-nos da importância de um trabalho de que ninguém falava, mas que é afinal tão essencial para que a sociedade funcione. Sem greve, quem teria essa consciência, além dos próprios? Ao longo dos anos, sem greves, alguém falou da centralidade deste trabalho e das condições penosas em que é feito?

2 O objetivo de uma greve é sempre perturbar o normal funcionamento do quotidiano da produção e da circulação mercantil. Mostrar que, se os trabalhadores pararem, o mundo pára. Não há verdadeiro exercício do direito à greve se ela não se fizer sentir, em primeiro lugar, nos bolsos dos patrões que precisam do trabalho para o seu negócio e para obterem os seus lucros; e também, secundariamente, no funcionamento da sociedade, que toma com a greve a consciência da falta que aquele trabalho faz.

Isto nunca quis dizer, evidentemente, que o exercício do direito à greve seja absoluto. Toda a gente concorda que, mesmo havendo uma greve, as ambulâncias têm de continuar a ser abastecidas e a comida tem de continuar a chegar aos supermercados, por exemplo. Por isso, toda a gente concorda e a lei prevê que, em cada greve, se deve definir serviços mínimos capazes de garantir que a greve se compatibiliza com outros princípios fundamentais da nossa vida coletiva. Nisso, não há polémica: os serviços mínimos existem desde que a Constituição consagrou o próprio direito à greve. Se não há acordo entre patrões e trabalhadores na sua previsão, intervém o Estado, cabendo ao Governo defini-los. Mas também é óbvio que se a definição de serviços mínimos é de tal modo maximalista que torna potencialmente nulos os efeitos de uma greve, isso é uma forma objetiva de esvaziar esse direito. Fez bem o Governo em fixar serviços mínimos nesta greve dos motoristas – e é compreensível que, em alguns casos especiais, eles sejam muito exigentes (exemplo óbvio: para emergências na saúde ou no combate aos fogos...). Mas fez muito mal em abusar dessa prorrogativa para fixar verdadeiros “serviços máximos” em áreas que não são, objetivamente, “necessidades sociais impreteríveis”, que é o termo da lei (desde quando é que, por um exemplo, um vôo comercial Porto-Lisboa pode alguma vez caber no conceito de “necessidade social impreterível”?). Têm inteira razão os sindicatos e os partidos de esquerda que acusaram o Governo de ter aproveitado – com o aplauso e o entusiasmo dos patrões e da Direita – a má condução desta greve para fazer um ataque não apenas aos motoristas, mas ao próprio direito à greve e a todas as futuras lutas em que o problema se coloque. Se se aceita o princípio de que pode haver “serviços mínimos” para todas as situações com percentagens de 75% a 100%, o que restará no futuro do impacto de uma greve, por exemplo, dos estivadores, dos motoristas dos transportes públicos ou das trabalhadoras da limpeza? Há linhas que não devem e não podem ser transpostas. E o Governo quis transpô-las.

3 As greves fazem-se para conquistar melhores condições de trabalho, ou para que um determinado trabalho seja reconhecido. Na disputa de uma greve conta a capacidade de dar corpo a dois princípios fundamentais do movimento sindical: a unidade e a solidariedade. Também por isso, uma greve disputa a relação de forças na própria sociedade. Uma greve de um setor particular é tanto mais forte quanto consegue ganhar apoio em toda a classe (por exemplo, em todos os motoristas e não apenas num subsector) e na maioria da sociedade, que é composta por quem vive do seu trabalho (e que é por isso potencialmente sensível à injustiça da situação e à justiça da reivindicação). Uma greve que se deixa deliberadamente isolar é uma greve condenada a perder, a menos que quem a conduz queira ganhar outra coisa que não direitos para quem trabalha. Já uma greve que tem a solidariedade dos outros trabalhadores tem uma força imparável na sociedade. Para vencer, uma greve – que é um sacrifício do presente e do salário, em nome do salário e do futuro – tem de olhar para além do seu umbigo, tem de dialogar com a sociedade e procurar apoios e solidariedade. Não faltam exemplos recentes de greves que o fizeram com enorme sensibilidade e sucesso. Querem um? Os estivadores.

4 A luta dos motoristas de matérias perigosas tinha boas condições para ter o apoio da sociedade. As condições de exploração impostas pelos patrões são uma vergonha. Horários prolongados até ao limite não prejudicam apenas quem os faz, mas a segurança de todos nós. Pagamentos feitos fora do salário prejudicam os trabalhadores, mas também toda a sociedade, porque são formas de os patrões contornarem as suas obrigações contributivas com a Segurança Social e o pagamento de impostos, perpetuando salários-base muito baixos. A lei da selva que parece imperar neste setor é muito mais que um embaraço público: é a expressão da prolongada ineficácia e complacência do Governo e das autoridades inspetivas para com práticas empresariais que são inaceitáveis – e que, no entanto, parecem ter sido aceites ao longo de décadas.

Há por isso reivindicações inquestionavelmente justas que têm sido prejudicadas pela forma como todo o processo foi conduzido. O Governo geriu esta greve a pensar na demonstração exuberante da autoridade do Estado e na maioria absoluta que pode resultar da sedução do eleitorado conservador. E o porta-voz sindical geriu-a a pensar essencialmente na publicidade oportunista ao seu escritório de advogados e na sua eleição para o Parlamento. As vítimas foram os motoristas.

5 Voltar às negociações e conseguir um acordo capaz de satisfazer os trabalhadores é o único caminho razoável e ainda bem que ele parece ter-se agora imposto. Mas greve e negociação não são antíteses, como sugere o Governo e gritam os patrões. São elementos do mesmo processo. Em relações de força desiguais, como aquela em que decorre qualquer negociação de um contrato coletivo de trabalho, a arma da greve não é um objeto externo às negociações. É um dos instrumentos mais importantes para equilibrar essas negociações para o lado dos trabalhadores. Uma greve ilimitada e que não abre caminhos negociais é uma greve que já fracassou, porque o único caminho que propõe aos trabalhadores é a derrota. Mas uma negociação que não faça valer a disponibilidade de luta dos trabalhadores também está condenada a ter um fraco resultado, porque é sempre a vontade dos patrões que vinga.

Compreendem-se pois os apelos a que se retomem as negociações. Já não é aceitável que eles só valham para uma das partes, e que poupem precisamente as associações patronais que dizem que, enquanto uma luta decorre, não negoceiam. Quando o Governo canaliza a sua pressão apenas para uma das partes, torna-se não um mediador em busca de equilíbrio, mas um mero eco das posições patronais.

O que quero dizer é isto: haver um memorando para um acordo entre alguns sindicatos e a parte patronal é um bom sinal, que deve ser aproveitado de imediato por todos os sindicatos. Ao mesmo tempo, que ninguém esqueça ou omita que este acordo agora anunciado não existiria sem que tivesse havido uma greve com a força que ela teve entre os motoristas de matérias perigosas. Ou seja, este acordo é, por mais que isto possa parecer paradoxal, produto desta greve. O que é matéria de reflexão para todos, para o conjunto do movimento sindical e é um fator que justifica, desde logo, que os ganhos que ele possa conter se alarguem a todos os trabalhadores.

“Se o Pardal Henriques é o condestável da democracia, eu sou o Zaratustra

Este texto do Coronel Carlos Matos Gomes merece leitura e aplauso. Magnífico.

“Se o Pardal Henriques é o condestável da democracia, eu sou o Zaratustra

Eu desconfio da bondade e da boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas. Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas mistificações para começar.

Há muito tempo, nas estepes da Ásia Central, nasceu um menino a que os pais deram o nome de Zaratustra. Ao nascer, Zaratustra não chorou; pelo contrário, riu sonoramente. Todo o povo da aldeia se admirou pois nunca tinham visto um bebé rir ao nascer. Onde já se viu rir ao nascer nesse mundo triste e escuro?! Os deuses estão furiosos! O Zaratustra está a rir-se deles.

Ao crescer, Zaratustra deambulava pelas estepes perguntando:

Quem fez o sol e as estrelas do céu? Quem criou as águas e as plantas? E quem faz a lua crescer e minguar? Quem implantou nas pessoas a dúvida sobre a bondade das pessoas?”.
Eu desconfio da bondade e da boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas. Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas mistificações para começar.

A doutora Raquel Varela, de quem sou amigo e por quem tenho muita estima, defende a bondade deles. Mais, defende que eles são meus defensores e escreve no Público que a democracia em Portugal está a ser defendida pelos motoristas reunidos num sindicato de motoristas de camiões cisterna de combustíveis, a que atribuíram de moto próprio a categoria exclusiva de matérias perigosas. Na realidade a categoria de matérias perigosas abrange mais cargas, desde a água ao transporte de animais, de ar líquido a ácidos, de farinhas a caixas de bebidas. Até o lixo é matéria perigosa. Estes motoristas e os seus padrinhos apenas identificam os combustíveis como matérias perigosas porque são os combustíveis que lhes permite perturbar a vida da sociedade, de causar danos económicos e sociais de forma rápida e com resultados garantidos. Como os faquistas sabem onde espetar o punhal. Adiante, porque a defesa da democracia é um ato sério, praticado por gente séria. Não é o caso dos dirigentes deste sindicato erigidos pela doutora Raquel Varela em condestáveis da democracia. Alguém os viu em algum ato de defesa da democracia, numa eleição democrática, na defesa de saúde ou educação pública? Na luta pelos direitos de minorias? Na defesa de uma causa como a da paz, ou do ambiente?

Assim: O vice presidente do sindicato da defesa da democracia é o advogado Pardal Henriques, de recente formação jurídica, em 2017, investigado pelo MP por burla a um investidor francês, e também pela Ordem dos Advogados, que abriu uma investigação a Pardal Henriques, pelo o facto de o advogado pertencer a uma firma de mediação imobiliária desde 2007, algo que é proibido aos advogados. Em resumo, um sindicalista motorista sem carta profissional, defensor da democracia, que já foi empresário de consultoria de gestão e saúde, com tanto sucesso e lisura que foi inibido de administrar bens de sociedades comerciais ou civis, associações ou fundações privadas de actividades económicas, empresas públicas e cooperativas durante sete anos, depois de ser sentenciado por insolvência culposa. Este é o vice-presidente do sindicato que defende a democracia em Portugal!

O presidente é o empresário Francisco São Bento, proprietário da Transportes Francisco São Bento Lda, dissolvida e liquidada em Novembro de 2017 e de que não se conhece nem trabalho assalariado, nem tradição de luta sindical, ou política. É o emplastro que surge nas fotografias ao lado do doutor Pardal Henriques.

Nem ao dito vice presidente Pardal Henriques, nem ao dito presidente do sindicato Francisco São Bento são, pois, conhecidas anteriores intervenções sindicais, de ordem cívica, política, ou cultural. São dois arrivistas, de passado obscuro e de presente suspeito. Quem está por detrás deles? Uma estudiosa dos movimentos sociais acredita em salvadores saídos do nada? Nem a Joana d’ Arc, o foi. Nem qualquer dos revolucionários franceses, nem russos. Todos os protagonistas de movimentos sociais tinham uma história. Até os relâmpagos têm uma causa, uma origem conhecida. Estes dois salvádegos da democracia não, saíram do ovo e logo se transformaram em serpentes! Ora é a estes dois neófitos da luta sindical e da luta cívica e política que Raquel Varela atribui a defesa da democracia! E tantos homens e mulheres dignos foram torturados, presos, exilados, assassinados por lutarem pela democracia e afinal era tão fácil e rápido!

Por mim, não só dispenso a participação destas duas sombrias figuras na defesa da democracia – devemos temer defensores sem história – como, no caso de a defesa da democracia lhes ser entregue, declaro que estarei contra, a sério. Se a Raquel Varela pretende que estes dois “sombras” sejam defensores da democracia, eles que se apresentem a eleições. Apesar de tudo foi o que fizeram o Bolsonaro e a sua camarilha, ou o Salvini. Mas mais, se a democracia for entregue ao Pardal, ao Francisco São Bento e à sua tropa de choque, após esta heróica luta de camiões cisterna de gasolina e gasóleo (que não é inflamável, já agora), de desestabilização social, de falsidades e de nuvens escuras, até de ridículo, eu vou reactivar a licença de uso e porte de arma e reunir quem se lhes oponha e os desmascare.

Como chega uma reconhecida estudiosa dos movimentos sociais ligados ao trabalho à conclusão que um grupo tão suspeito e de origens tão propiciadoras de suspeição é um reduto de defesa da democracia e dos direitos dos cidadãos numa sociedade livre e solidária? Tenho uma explicação tão pouco científica quanto a metodologia das ciências sociais me permite: A identificação do cientista social com o objecto da sua investigação e trabalho, uma atitude semelhante ao conhecido síndrome de Estocolmo que leva as vítimas a aderir intelectual e sentimentalmente ao agressor.

Quem se envolve neste tipo de análise social estabelece premissas que, em vez de colocar em causa as certezas de partida, as teses, e se distanciar para as observar materialisticamente, as toma como verdades assumidas que só poderão ser confirmadas. Ao colocar-se intelectualmente do lado do trabalho e as lutas pela melhor repartição de justiça social, o analista passa a atribuir ao trabalhador todas as virtudes só pelo facto de o ser. Pode ser uma posição moral, mas não é uma posição científica.

O analista social coloca-se na posição do publicitário que originou o slogan: Se é Bayer é bom! Se é trabalhador é bom! A estatuária dos estados socialistas do século passado é exemplar desta deificação do trabalhador, a literatura e o cinema do neo-realismo são outros bons exemplos. Nesta visão idílica o trabalhador é sempre um herói, um fermento de progresso e de futuro radioso. A frase do Manifesto Comunista: proletários de todo o mundo uni-vos! é tomada no sentido literal e como dogma de fé, fora do circulo da razão. Assume que se os proletários se unirem a sociedade se torna ideal, acaba a exploração do homem pelo homem! Sabemos hoje que não é nada assim. Que a primeira questão é a da finalidade da união. Unir para quê?

Curiosamente este sindicato do doutor Pardal, içado a defensor da democracia, não só investe na desunião, mas explora ainda o mais feroz egoísmo: estes motoristas de camiões de combustíveis não são pelos proletários uni-vos, são por nós, os motoristas de combustíveis, eles não querem justiça e equidade, querem sacar o seu deles, tratar da sua vidinha e que os outros se danem e tratem da deles. Chama-se a isto a democracia da mafia: um bando impõe a sua lei e arrecada o lucro! É essa que defendem!

Mais, muitos estudiosos desta área da relações dos elementos de uma sociedade, onde Raquel Varela parece inserir-se, partem do principio que as lutas dos trabalhadores são autónomas quer da política no sentido restrito – os assuntos da polis, as questões nacionais – quer da política em sentido lato, o que habitualmente se designa por geoestratégia (um conceito com má carga histórica e hoje pouco utilizado), isto é, das relações de força entre as grandes potências pelo domínio do planeta e dos seus recursos. Sem ingenuidades académicas: as lutas sindicais fazem parte do arsenal das guerras entre estados e para o domínio de superpotências. São pedras de um xadrez de poder, como são a manipulação das opiniões públicas, os boicotes económicos, a espionagem de dados electrónicos, entre tantos outros. A greve deste sindicato ad hoc, feito ao microondas, ou de uma Bimby, pode muito bem ser um instrumento de uma estratégia muito mais vasta. Um dia saberemos. Antes convinha, por prudência, não classificar o doutor Pardal Henriques e os seus apoiantes de cavaleiros da liberdade e da democracia. Os combatentes da liberdade – freedom fighters – inventados e incensados por Reagan nos anos 80 do século passado afinal eram talibãs e alquaedas financiados pelos Estados Unidos!

Os estudiosos dos movimentos sociais, normalmente criados em estufa, idealizam grupos como elementos de um modelo de cadeia de produção que eles criaram, e enquadram-nos em estereótipos. Os modelos sociais são representações muito falíveis da realidade e ignoram o saber da vida, uma outra forma de empirismo mas que merece ser levada em conta. A minha avó, uma mulher que aos dezoito anos saiu dos Açores para os Estados Unidos, que foi recolhida na ilha Ellis, que atravessou a América de Providence à Califórnia para ir ter com o homem com quem casou, que viveu nas terras do Oeste, no Vale de São Joaquim, dizia que mais valia um ano de tarimba que cem de Coimbra. Pese embora o exagero e a necessidade do estudo sério e profundo, convém dar também atenção às vozes de pessoas como a minha avó Honorina e até à do Padre Américo, o fundador da Obra do Gaiato, de quem terá ficado apenas a primeira parte da frase em que ele apreciava os jovens recolhidos e de quem desconhecia o passado: «Não há rapazes maus». Ficou censurada a última parte: O que há é muito filho da mãe.

Os estudos sociais deviam tomar em consideração os filhos da mãe, porque eles existem e não são todos burgueses e aristocratas. Deve até haver sindicatos e uma ordem deles.”

Marcianos abrem contas bancárias em Portugal?

Posted: 15 Aug 2019 03:07 AM PDT

«Fez este mês cinco anos que o BES colapsou. Não foi um colapso qualquer, foi um enorme estrondo, que deixou estilhaços por todo o lado. Todos percebemos as razões para a queda do banco, mas acho que praticamente ninguém percebeu o que a seguir se passou e ainda continua a passar-se.

O BES, que dias antes da resolução era considerado por governantes e supervisores como seguro e de confiança, foi dividido em dois, o banco bom e o banco mau, para se evitar uma compreensível crise sistémica, que provocaria efeitos inimagináveis na economia e na sociedade portuguesa.

Aos portugueses foi assegurado que no banco bom (Novo Banco) ficavam os ativos não tóxicos e que no banco mau (BES) ficavam os considerados tóxicos. O tempo encarregou-se de demonstrar que não foi bem assim. Para o banco bom também transitaram muitos ativos tóxicos e problemáticos sendo que, afinal, não era tão bom como apregoaram. Mais uma vez os portugueses foram enganados.

Depois continuam a tentar-nos enganar, agora com a versão de que não vão ser os contribuintes a pagar a fatura dos desvarios ruinosos desses gestores (premiados) e supervisores causadores de tamanha hecatombe.

O imenso dinheiro injetado e a injetar pelo Fundo de Resolução no Novo Banco vai ser pago até 2046 pelas contribuições sobre o setor bancário. Para pagarem ao Fundo de Resolução, os bancos vão ter que criar lucros suplementares (e até já o estão a fazer). Quem pagará esses lucros serão os depositantes e os clientes desses bancos, ou seja, de grosso modo os contribuintes.

Para garantirem esses lucros, os bancos despedem trabalhadores, fecham balcões e criam comissões bancárias em catadupa. Se não chegar inventarão mais formas de nos extorquir cada vez mais dinheiro, sempre defendidos pela máxima de que não serão os contribuintes a pagar. Até será verdade, se por acaso os depositantes ou clientes bancários não forem contribuintes portugueses, forem marcianos.

Como pelo que se saiba ainda nenhum marciano abriu uma conta num banco em Portugal, seremos todos nós a pagar, não via impostos, mas via comissões e mais comissões bancárias e outras formas engenhosas inventadas e a inventar.

A bem da transparência aos portugueses deveria ser dita a verdade. Não vai haver aumentos de impostos para pagar ao Fundo de Resolução, mas os portugueses e as empresas vão ter de pagar, a não ser que não peçam dinheiro emprestado à banca, não tenham conta bancária e guardem o seu dinheiro debaixo do colchão.

Depois temos mais uma vez a justiça a não funcionar em tempo oportuno. Cinco anos volvidos, ainda ninguém foi sequer julgado por estes atos ruinosos. Foram milhares de milhões de euros de gestão quiçá criminosa. Potenciais culpados não faltam. O que falta é fazer justiça.

Essa mesma justiça condenou recentemente e de uma forma célere um “indigente com um percurso de vida errático” a um ano de prisão por ter roubado 15 chocolates num supermercado, que foram valorizados em 23,85 euros. Sem querer fazer qualquer juízo sobre a justiça desta decisão (que se calhar até foi adequada), torna-se percetível ao cidadão comum que os poderosos acabam sempre por encontrar formas de fugirem ou adiarem o assumir das suas responsabilidades.

Torna-se claro que a nossa democracia ainda está incompleta, porque quando o sol nasce deveria ser para todos de uma forma igual e quando chove não deveriam existir abrigos privilegiados para alguns.

Vale a pena pensarmos nisto.»

Manuel Carlos Nogueira

Os camionistas a defender a nossa democracia

por estatuadesal

(Raquel Varela, in Público, 15/08/2019)

Raquel Varela

O perigo da extrema-direita não vem de um sindicato a lutar por 900 euros. Vem do desenho autoritário que o Governo está a querer impor.


 

O Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas exige – numa greve que rompe com a maioria das greves relativamente inócuas até aqui realizadas – ser pago em salário base e não em subsídios e que o valor real total seja descontado para a Segurança Social e contado para a reforma. Novecentos euros é o que exigem. Um valor baixo. Porque no ISEG calcula-se o valor real de um salário mínimo em Portugal em pelo menos 1000 euros. Ou seja, 900 euros é um salário abaixo da reprodução biológica do trabalhador. Só para se alimentar, pagar casa e sustentar os filhos, e ir trabalhar no dia a seguir, são necessários pelo menos 1000 euros em Portugal.

Esta greve começa em 2018. A Fectrans, dirigida maioritariamente pela CGTP, está eleitoralmente comprometida com o apoio ao Governo actual. Ao romperem uma regra de ouro do sindicalismo – manter a independência face a qualquer Governo –, os dirigentes da Fectrans abriram a porta a uma ruptura com a sua base. Assinaram em 2018 um acordo em que os motoristas ficam pior do que estavam. Este acordo prevê isenção de horário por um valor fixo de 280 euros. Antes, os motoristas ganhavam 630 em salário base e mais outros 400 a 800 em horas extraordinárias (“ajudas de custo”, em grande parte). Agora, no acordo assinado pela Antram com a Fectrans, passam a receber 700 euros de base e 280 de isenção de horário. Isto é, vão trabalhar as mesmas 15 horas diárias por menos 300 euros.

A questão chave da isenção de horário foi demonstrada pelos serviços mínimos. Os trabalhadores limitaram-se a cumprir a lei, trabalhando oito horas. Ora, as empresas têm escalas de abastecimento que pressupõem o uso regular de horas extra. Este modus operandi destrói a vida e a saúde destes trabalhadores pela exaustão. Estudos provam que após quatro horas contínuas de condução o risco de acidentes é o dobro, e após oito horas é até dez vezes maior. O tacógrafo tem um limite de nove horas de condução, mas podem e trabalham mais outras cinco a seis horas por dia em cargas e descargas, tempos de espera, facturação, etc. Estas empresas dependem de 14 e 15 horas diárias de cada um dos seus motoristas para o “regular abastecimento dos postos”. Sim, jornadas de trabalho do século do XIX – absolutamente desumano.

O que se verificou nestes serviços mínimos já tinha tido lugar na greve dos enfermeiros – durante a greve havia mais enfermeiros a trabalhar do que em dias regulares, onde por escassez de força de trabalho nem se cumprem os mínimos. O caos piorou nos hospitais paulatinamente, demonstrando que a greve não foi a razão da decadência dos serviços. Acusá-los de “matar os portugueses” preparou, porém, o Governo para medidas musculadas sobre outros sectores, medidas que põem em causa a democracia e impedem o exercício do direito à greve, obrigando os trabalhadores a violarem a lei ou a deixar de exercer direitos fundamentais. O paradoxo é este – para defender a democracia eles arriscam penas de prisão por desobediência.

Esta requisição civil soma-se à tentativa – malograda depois em tribunal – de impor serviços mínimos na educação; aos “fura greves” de Setúbal patrocinados pelo Governo; à sindicância à Ordem dos Enfermeiros e requisição civil. Estas medidas avizinham o pior, um Governo com um forte pendor autoritário face ao mundo laboral, que abre as portas a medida mais duras da Direita, que tem agora o Estado-força legitimado por uma “geringonça” de esquerda no poder, e sempre apoiado pelo Presidente da República. Isto é tanto mais grave quanto vivemos tempos autoritários em muitos países.

O mais crítico deste conflito é que o direito à greve foi totalmente posto em causa com serviços máximos e militarização dos protestos sociais. Perante a própria contestação dentro das Forças Armadas, Costa respondeu que... só fala com comandantes. Sim, o perigo da extrema-direita não vem, ao contrário do que aqui escreveu Boaventura Sousa Santos, de um sindicato democrático de base não alinhado à CGTP ou à UGT a lutar por 900 euros. Vem do desenho autoritário que o Governo está a querer impor.

A leitura de um parecer da PGR pelo ministro em directo, confessadamente feito em tempo recorde e usado para impedir o exercício da greve, sem ter tido contraditório, é um traço da bonapartização do regime. Com base neste parecer, desconhecido de nós, o ministro explicou que greve é quando o Governo quiser, como quiser. Greve é permitida se não puser em causa a produção... Como?! As greves são feitas para parar a produção! Essa é a razão de ser de uma greve. Os serviços mínimos só podem ser aplicados a emergências, e aí devem ser escrupulosamente respeitados. Mas nada além disso.

Há duas décadas, estes trabalhadores trabalhavam numa empresa pública chamada Galp, oito horas por dia e ganhavam o equivalente hoje a 1400 euros, dois salários mínimos e meio. Agora trabalham para PMEs que são subcontratadas das petrolíferas, que fixam um preço por quilómetro abaixo do custo real (alegadamente cartelizado). A Galp anunciou para este ano 109 milhões de euros de lucro.

O silêncio das Associações Petrolíferas é explicado pela “empresa enxuta”. A casa mãe tem no topo da pirâmide 5% de trabalhadores mediamente pagos, e as subcontratadas recorrem ao trabalho à jorna, à peça, e mal pago. Na EDP, os custos com Segurança Social são 4%, nas subcontratadas são perto de 30%. Como será na Galp e na Antram? Estas PMEs, normalmente nascidas a partir do desmembramento de uma grande empresa, às vezes até fazem outsourcing em que os próprios trabalhadores são “empresários”. Mas são as grandes empresas que fixam todos os preços de produção. A Galp e outros gigantes da energia elevam os custos de toda a economia, prejudicando um país inteiro.

O Estado considera tabu nacionalizar a Galp, mas normal contribuir para este caos empresarial flexibilizando a lei laboral. Mas faz mais – substitui as políticas de pleno emprego pelas políticas de desemprego. E é aqui que os sindicatos em geral e os partidos de esquerda são complacentes. Porque ninguém vive com 600 nem com 700 euros.

Ao baixo salário junta-se a electricidade subsidiada, a renda social, o subsídio social de desemprego, a cantina gratuita para os filhos, a isenção de taxas moderadoras, enfim, uma panóplia assistencial focalizada (e não universal), onde os sectores médios pagam cada vez mais impostos, e as grandes empresas cada vez menos. Em vez de um Estado social universal (para todos) baseado em impostos progressivos, temos um Estado assistencial focalizado (para trabalhadores pobres) sustentado por impostos regressivos. Ou seja, os sectores médios financiam as empresas pagando a assistência dos trabalhadores mal pagos. Para além da injustiça fiscal, as consequências mais graves do assistencialismo são outras, são políticas: a infantilização da população dependente desta assistência que não conhece os seus direitos, mas vive de mão estendida ao Estado, de forma passiva, submissa, a provar a sua “pobreza”. A extrema-direita cavalga estes sentimentos.

Os motoristas começaram a sua greve com o grito dos estivadores de Setúbal, “nem um passo atrás”, estivadores que ao fim de 39 dias de greve total conseguiram um salário base de 978,47€ mais subsídio de turno de 175,32€, isto é, 1153,79€. Tudo na folha de recibo com todos os descontos legais inerentes.

Os motoristas estão a defender a democracia porque estão a defender o emprego com direitos. Estão a defender a democracia porque estão a defender o direito à greve. É uma tarefa colossal para um punhado de homens, mesmo que determinados. A sociedade portuguesa, e à cabeça todos os sindicatos democráticos, não os devem deixar sós. Não estamos a debater o carro de um advogado, mas os destinos de um país.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

A pedido de Trump, Israel proíbe entrada de duas congressistas dos EUA

Ilhan Omar e Rashida Tlaib, ambas muçulmanas e críticas do Governo israelita, tinham planeado uma visita à Cisjordânia. Netanyahu diz que as congressistas tinham a intenção de “prejudicar Israel”.

PÚBLICO

15 de Agosto de 2019, 17:21

Foto

Omar (esquerda) e Tlaib são críticas das políticas governamentais israelitas JIM LO SCALZO / EPA

O Governo israelita anunciou que vai proibir a entrada de duas congressistas norte-americanas, que tinham planeado visitar a Cisjordânia, horas depois de o Presidente norte-americano, Donald Trump, ter pressionado Telavive nesse sentido.

As congressistas democratas, Ilhan Omar e Rashida Tlaib, tinham programado uma visita à Cisjordânia e a Jerusalém Oriental para se encontrarem com a comunidade palestiniana, mas o Governo israelita veio dizer que a entrada de ambas no país não será autorizada. A revelação foi confirmada pela vice-ministra dos Negócios Estrangeiros, Tzipi Hotovely, em declarações a uma rádio israelita.

"Nenhum país no mundo respeita os EUA e o Congresso americano mais do que Israel. No entanto, o itinerário mostra que a única intenção das congressistas era prejudicar Israel”, afirmou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que enfrenta umas eleições antecipadas a 17 de Setembro, porque não conseguiu formar governo apesar de ter ganho as eleições de Abril.

Horas antes, Trump tinha dito que seria um sinal de “grande fraqueza” se Israel permitisse a entrada das duas congressistas, uma intervenção sem precedentes de um Presidente norte-americano sobre o direito de parlamentares em circular livremente e também sobre a política migratória de outro país.

Omar, sobretudo , tem-se distinguido por declarações críticas a Israel, e pelas posições tradicionais de apoio automático a Israel do Partido Democrata. E Tlaib, que é de origem palestiniana, tem-se mostrado uma crítica feroz de Trump.

No mês passado, o embaixador norte-americano em Israel, Ron Dermer, tinha dito que Omar e Tlaib poderiam entrar no país como demonstração de respeito pelo seu estatuto como congressistas, recorda a Reuters. Tornaram-se nas primeiras congressistas muçulmanas eleitas e são apoiantes do movimento de boicote a produtos israelitas promovido por grupos pró-palestinianos. Ambas fazem parte de um grupo de quatro parlamentares democratas não-brancas que foram alvo de vários ataques de Trump recentemente.

A viagem, que deveria decorrer durante o fim-de-semana, incluía uma visita das congressistas à mesquita Al-Aqsa, que se encontra num local especialmente contencioso, dado que é lá que se situam dois templos de grande importância para o Judaísmo. O direito dos muçulmanos a rezar no local já deu origem a violentos protestos.

A política palestiniano Hanan Ashrawi disse que a decisão de impedir a entrada das congressistas é “um acto revoltante de hostilidade contra o povo americano e os seus representantes”. “É um precedente perigoso que desafia todas as normas democráticas e é um ataque ao direito do povo palestiniano em interagir com o resto do mundo”, afirmou Ashrawi, citada pelo Guardian.