Translate

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Processo às Instituições Europeias por Crimes contra a humanidade

Dois jovens advogados baseados em Paris, Juan Branco, de nacionalidade espanhola, e Omer Shatz, de nacionalidade israelita, instruíram um processo endereçado ao Tribunal Criminal Internacional contra as instituições europeias acusando-as de deliberadamente terem provocado a morte de muitas das 14.000 vítimas de naufrágio registados de 2014 a 2019 nas costas europeias do Mediterrâneo a fim de dissuadir outros potenciais emigrantes.

Pela minha parte, penso que a iniciativa dos dois jovens advogados só peca por tardia e que há muito que a União Europeia recorre a formas bárbaras – que passa pelo puro assassínio – para manter afastada uma massa imensa de gente que foge da guerra, da perseguição, da fome ou que pura e simplesmente procura o melhor para si e para os seus.

A argumentação legal que utilizam os dois jovens parece-me sólida e será incompreensível que o Tribunal Penal Internacional não venha a considerar a abertura do processo.

Trata-se de uma crescente brutalização da humanidade, que passou pela criminalização da emigração e por uma crescente insensibilidade, colaboração com o crime quando não pela sua prática.

Em artigo publicado em Julho de 2008 no jornal de Bruxelas “New Europe” opunha-me à directiva aprovada em Junho pelo Parlamento Europeu – e entrada em vigor no final do ano – que previa o encarceramento de emigrantes ilegais e fazia notar o apoio entusiástico que lhe tinha dado a extrema-direita austríaca.

De lá para cá a situação veio a piorar, com a crescente criminalização não só de quem emigra mas também de quem dá qualquer apoio humanitário a essas pessoas, sendo que a alternativa política é cada vez mais entre os que defendem abertamente essa política e os que o fazem de forma camuflada envolvendo-a num manto feito de hipocrisia e pura mentira.

O caso mais célebre é o de um olivicultor francês de uma zona fronteiriça, Cédric Herrou, condenado por dar abrigo a 200 emigrantes fugidos da Itália numa gare de comboios abandonada. Depois de uma tremenda pressão sobre o sistema de justiça, primeiro o tribunal da relação e depois o Tribunal Constitucional (que em França, como em Portugal, é mais político do que jurídico) ele foi quase totalmente ilibado, tendo-se criado uma jurisprudência que reconhece o princípio constitucional da ‘fraternidade’ como se sobrepondo a qualquer lei ordinária anti-imigrantes.

A Itália aparece aqui como contraponto dado que o seu Ministro do Interior demissionário defende sem o esconder o princípio da criminalização de qualquer acto humanitário para com quem quer que seja considerado ilegalmente em território italiano.

Entender os princípios essenciais

Creio que não iremos a lado nenhum nesta questão sem entender alguns princípios essenciais.

O primeiro é o da existência de grandes fossos nos níveis de desenvolvimento e de remuneração. A questão não é de igualizar níveis, mas é apenas de evitar que eles se tornem de tal forma grandes que faça sentido pôr a vida em risco para os atravessar. Aqui estamos perante muita coisa mas a começar pela fraqueza da chamada ajuda ao desenvolvimento e pior que isso, a sua deformação em larga escala quer por parte de objectivos escondidos de quem dá como da corrupção de quem a gere no local.

O segundo é entender que são os pobres dos países para onde se dirigem os emigrantes que pagam a factura enquanto os menos pobres tendem a lucrar com isso. No nosso país a olivicultura é um exemplo flagrante. Um exército de miseráveis migrantes que aceita trabalhar em condições que felizmente já não são aceitáveis pelos portugueses retira aos nacionais as oportunidades de trabalho, com vantagem evidente para o empresário e desvantagem para o trabalhador.

Enquanto isto não for entendido, e as elites ditas liberais ou de esquerda continuarão a empurrar a massa mais pobre e trabalhadora para os braços da extrema-direita de Salvini ou outra, acusando-a de ser racista, xenófoba e desumana.

Acresce a este facto que a migração clandestina é um grande negócio e que há muita gente disposta a pagar somas por vezes enormes para fugir da guerra ou apenas para se livrar de problemas. É assim que na nossa Europa os criminosos islamistas ou os seus cônjuges que praticaram genocídio sobre minorias (e que as roubaram) têm mais facilmente as portas abertas que essas mesmas minorias.

Em terceiro lugar, a fraternidade tem de jogar obviamente nos dois sentidos. O exemplo da Congressista democrata norte-americana Ilhan Omar, refugiada da Somália nos EUA, é paradigmático, ao sugerir que ‘devemos ter mais medo do homem branco do que dos jihadistas’ depois de ter fugido de um país devastado pelo jihadismo.

A questão é que mesmo quando as pessoas fogem para preservar a vida, nem sempre são capazes de se separar das redes mafiosas que as perseguiram em primeiro lugar, sendo que há frequentemente falsas fugas e reais infiltrações.

Mais uma vez a condescendência liberal ou de ‘esquerda’ americana pelo racismo e fascismo que supostamente vem dos povos oprimidos (na verdade vem dos que os oprimem) é a principal razão que leva à alimentação deste fascismo pintado de vermelho que naturalmente leva a que se reaja, sem muitas vezes ser capaz de distinguir o trigo do joio.

Parece-me que qualquer pessoa que mais do que um abrigo temporário queira uma pátria de refúgio tem que aceitar os valores essenciais dessa pátria de refúgio e abandonar as lógicas racistas e fascistas que imperam na sua terra de origem.

Em quarto lugar temos o problema essencial da cobardia política. Dizia Sarkozy que não poderíamos aceitar a Turquia na União Europeia porque nesse caso a Europa faria fronteira com a Síria. Nunca ocorreu a Sarkozy que o problema deveria ser colocado em relação à deriva islamo-fascista da Turquia que a afasta dos valores consagrados na União Europeia e que não são os actos políticos que fazem a geografia.

A realidade é que a cobardia política ocidental levou a que se ignorasse o drama sírio, permitindo primeiro que uma revolução democrática se transformasse num conflito entre jihadismos e depois que assistíssemos à invasão pelo imperialismo teocrático iraniano (o turco, mesmo aí, ficou muito para trás).

A invasão irano-russa da Síria (agora também um pouco alargada à Turquia) levou até agora a um milhão de vítimas, dez milhões de fugitivos e dois milhões de colonos (a maior parte trazidos pelo império teocrático iraniano do Iraque, Iémen, Líbano, Afeganistão e Paquistão, mas há também alguns sírios árabes ou turcomenos deslocados pela Turquia).

O Ocidente olhou para o outro lado (em larga medida em função de leituras erradas do que fez no Iraque ou na Líbia) e permite que tanto a Turquia como o Irão ameacem hoje provocar um êxodo massivo de refugiados se a Europa não se mostrar cooperante com os seus desígnios.

Ou seja, o refugiado, e muitas vezes aquele que passou pela lavagem ao cérebro do jihadismo, é usado como arma de arremesso pelo imperialismo que está às portas da Europa (porque a Síria está mesmo às portas da Europa, quer Sarkozy o entenda ou não) com a intenção de lançar o Caos em território europeu.

A quinta razão é a hipocrisia. É sempre mais fácil dar lições de moral ao mundo inteiro do que enfrentar os problemas reais que se tem pela frente, e o tecido político-social ocidental está profundamente corroído pela hipocrisia.

Enquanto não quisermos equacionar o que temos pela frente e nos quisermos remeter ao papel de pregadores de falsa moral fechando os olhos à realidade, vamos continuar a ter o mesmo problema.

Pela minha parte, os melhores votos para a corajosa dupla de advogados que ousou dizer que o rei vai nu.

Afinal era só bola

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 20/08/2019)

O comentário do primeiro-ministro acerca do sucesso do Governo na imposição de restrições ao direito de greve merece ser analisado com cuidado. Criticar os excessos de poder do Governo “é o mesmo que perguntar a uma equipa que ganhou 3-0 porque precisou de tantos defesas”, diz ele. Creio que nesta frase está resumido tudo o que vivemos nas últimas duas semanas.

Está, em primeiro lugar, o entusiasmo do Governo, a equipa que ganhou (três a zero, diz o minucioso primeiro-ministro). Tudo lhe correu bem, tinha pela frente um sindicalismo pouco conhecido e até um dirigente que fez todo o catálogo dos erros possíveis, desde angariar clientes para um escritório de advogados até anunciar uma greve por dez anos e lançar-se à aventura da candidatura por um partido de aluguer.

Assim, foi quase fácil esconder a razão profunda dos motoristas, que rejeitam um salário insignificante para um mês pago em horas extraordinárias e em subsídios discricionários, e rejeitam muito bem. Na verdade, isto é norma no privado e é uma condenação para quem trabalha. Que o Governo festeje que tenha feito recuar estes motoristas diz muito sobre como se coloca naquela balança tão pesada entre a razão do salário e o privilégio da empresa.

Foi três a zero, gaba-se. Mas, ainda assim, esforça-se por sugerir que havia duas equipas em campo, supõe-se que com o mesmo número de jogadores, ou pelo menos com regras aceites por todos. A metáfora do jogo está cheia deste segundo sentido, sendo por isso uma mentira impiedosa.

Se lhe pareceu que aquele jogo era uma tragédia, se se lembra dos olhares soturnos de ministros, das conferências de imprensa sucessivas, dos três ministros nos três-telejornais-três, dos apelos a que corrêssemos às bombas de gasolina, dos militares a conduzirem camiões, das reportagens permanentes de piquetes discretos, das equipas de televisão em Espanha à espera da emigração em massa, dos diretos de todos os pontos da bússola, esqueça tudo, já passou, ficou três a zero

Em segundo lugar, e é ainda mais importante, a alusão ao jogo de futebol evoca esta vontade de reduzir rapidamente o drama dos primeiros dias a uma comédia, de simplificar tudo com uma piada ligeira. Afinal, foi como se fosse um jogo de bola, mais um, tudo trivial. Nós dispusemos defesa e linha média, uns avançados lá para a frente, meia bola e força, marcámos uns golos, dominámos o campo. Com 4-3-3 isto vai lá. A banalização da comparação serve para desinchar o conflito e para o dissolver no tempo: já passou, fica tudo esquecido, para a semana há um Benfica-Porto e o campeonato vai para a terceira jornada, prossegue como se nada fosse. Se lhe pareceu que aquele jogo era uma tragédia, se se lembra dos olhares soturnos de ministros, das conferências de imprensa sucessivas, dos três ministros nos três-telejornais-três, dos apelos a que corrêssemos às bombas de gasolina, dos militares a conduzirem camiões, das reportagens permanentes de piquetes discretos, das equipas de televisão em Espanha à espera da emigração em massa, dos diretos de todos os pontos da bússola, esqueça tudo, já passou, ficou três a zero. Aqui, a metáfora do jogo funciona como uma artimanha para sugerir que, mesmo que tenha sido um susto, passa sempre ao fim dos noventa minutos, tem hora marcada. Foi tremendo, só que acaba tudo rasteirinho, toda a gente no balneário.

O dispositivo retórico do jogo da bola funciona por isso nestas duas dimensões: lembrou um momento trágico, mas sabemos que acaba logo; acenou com incerteza, mas supondo que se aceite que a equipa dominante acabe por ganhar, numa espécie de justiça divina. Promete por isso algum equilíbrio nas regras, onze de cada lado, como se essa farsa não tivesse ficado demasiado escancarada, até o porta-voz da equipa patronal começou a carreira como jovem deputado municipal do PS, que falta de imaginação. Pode no entanto o primeiro-ministro, que pretendeu que o país estava suspenso de uma espécie de guerra, vir agora desdramatizar, somos todos amigos, umas bifanas e uns torresmos, varremos uma grade de mines e falamos sobre a arbitragem, o árbitro estraga sempre tudo, mas fora de jogo é que não era.

Ao reduzir as duas semanas em que o Governo jogou todos os seus trunfos eleitorais à imagem do futebol, o primeiro-ministro arrisca-se a desgraduar o seu próprio jogo. Sabe bem porque escolhe este caminho. De facto, o Governo quis primeiro mobilizar o medo, em particular das pessoas em férias, e recuou logo nos primeiros dias, ao perceber que o overacting pode ser fatalmente ridículo. Ficou assim nestas meias-tintas de uma economia emocional em que apostou tudo na radicalização e ameaças e logo se esforçou por parecer moderado e prudente. Quer agradar a quase toda a gente e não desagradar a quase ninguém. Ganhou com isto os maiores elogios de Alexandre Relvas, em pose de chefe do patronato, e até de Rui Rio (o Governo está agora a fazer tudo bem, diz ele, mas é bombardeado mesmo assim, afinal é um dos alvos desta operação e as palavras leva-as o vento).

Os motoristas ficam com promessas algo vagas mas confirmaram o poder do seu horário de trabalho. Quanto ao país, ficou a saber que a gula do poder não tem limites. E o campeonato continua nos próximos fins de semana.

Nunca seremos de mais, camaradas!

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/08/2019)

Daniel Oliveira

Para quem acha que todos os debates se resumem a um “prós e contras”, a greve dos motoristas, desconvocada este domingo, baralhou as trincheiras. Como tentei demonstrar nos dois últimos textos da edição semanal do Expresso, é possível considerar esta greve desproporcionada e a sua direção evidentemente oportunista e, no entanto, fazer uma avaliação crítica da exibição de força de um Governo que a viu como uma oportunidade para ganhar votos à direita. As duas coisas não são contraditórias. Correspondem ao mesmo, aliás: a uma preocupação com a defesa de um sindicalismo solidário e com a preservação dos valores que devem nortear a esquerda na sua relação com as lutas dos trabalhadores. A complexidade de um conflito pode obrigar a respostas igualmente complexas, mas não permite transvestismo. À esquerda, esse transvestimo corresponde ao discurso que nos diz que uma greve não pode prejudicar a economia, à aceitação de que subsídios podem substituir o salário base ou à satisfação com demonstrações de força perante uma greve.

Mas o mais delicioso foi assistir à autêntica transfiguração da direita mediática portuguesa, que por pouco não reivindicou para si o vocabulário marxista da luta de classes. Não é habitual ver a direita aplaudir uma greve, mas ainda menos comum vê-la aplaudir uma greve por tempo indeterminado por causa de um aumento em 2021.

É a mesma direita que costuma rasgar as vestes por qualquer greve de 24 horas para pressionar a uma negociação salarial congelada há anos. Não bate a bota com a perdigota. Nem sequer vou recordar o que disseram e escreveram noutras requisições civis, em greves que não eram por tempo indeterminado nem tinham a capacidade de paralisar toda a economia nacional. Não entro nesse jogo do teu foi pior do que o meu. Fico-me pela incoerência política mais essencial.

É estranho ver os maiores opositores da contratação coletiva – de tal forma que quase a fizeram desaparecer – apoiarem uma greve para que se reforcem as garantias no contrato coletivo de trabalho num sector que não o renegociava há duas décadas. É estranho ver os mesmos que diariamente defendem a flexibilização das leis laborais a bater-se por muito mais garantias legais para estes trabalhadores. É estranho ver quem quer prémios de produtividade no lugar de rendimento fixo defender a integração de pagamento por quilómetros no salário base. É estranho ver quem costuma defender que os aumentos salariais devem acompanhar a situação económica de um sector e das empresas bater-se por uma greve que quer fechar aumentos salariais para 2021 e 2022. E até houve quem apontasse as baterias ao poder cartelizado das petrolíferas quando foram os maiores defensores dos benefícios para a concorrência da sua privatização.

Esta greve, a natureza da sua liderança e a forma como o Governo lidou com ela levantam questões difíceis para a esquerda. Mas há coisas que não mudam de lugar. E as posições tomadas por grande parte da direita mediática exibem o seu oportunismo político. Nuns casos, ele é movido pela vontade de desgastar um Governo. Noutros, compreendem o potencial autodestrutivo que algum “novo sindicalismo” tem para o movimento sindical e querem dar-lhe gás. Noutros, querem exibir as contradições da esquerda, colocando-se eles próprios numa posição de insustentável incoerência.

Escrevi aqui que a irresponsabilidade mercenária com que esta luta foi dirigida fragilizou o sindicalismo e isso foi evidente na forma como acabaram por ter de recuar sem grande ganho aparente. Também escrevi que a exibição de testosterona de António Costa para conquistar ainda mais votos à direita fragilizou alguns valores fundamentais para esquerda. Mas a direita que sobra, que é a que fala nos jornais e nas televisões, não sai melhor deste filme. A incoerência oportunista a que se entregou por estes dias fragilizou o seu discurso e afastou-a ainda mais da base que a apoia. Por mim, está tudo bem. Nunca são de mais os que defendem os direitos para quem trabalha. Até os travestis políticos são bem-vindos.

Nada está ok

Posted: 19 Aug 2019 03:24 AM PDT

«O Okjokull, ou glaciar Ok, derreteu. Morreu. A Islândia fez ontem o primeiro funeral ao seu primeiro glaciar.

Em 1980, o gigante de gelo tinha 16 quilómetros quadrados de superfície. Em 2012, já só 0,7 quilómetros quadrados. Em 2014, deixou de ser classificado como glaciar. A morte adivinhava-se. E chegou.

Ontem, no local do Okjobull foi descerrada uma placa. Diz "415 ppm CO2", em referência ao nível recorde de concentração de dióxido de carbono (CO2) registado na atmosfera em maio passado.

Mas podia dizer outra coisa. Podia dizer "a humanidade destruiu-me". Como vai continuar a destruir outros glaciares. A destruir e a matar o planeta. Ou simplesmente dizer "nada está OK".

O tema das alterações climáticas entrou na agenda política. Em Portugal também. Quer se goste ou não, muito por influência do PAN. E a maioria dos partidos percebeu (tarde) que não são só os cães e os gatos que dão likes nas redes sociais. Por arrasto, as alterações climáticas, que todos sentimos na pele, ocuparam lugar nos discursos e nas intervenções políticas. Algumas vezes com hipocrisia. Atrás do voto, é certo. Mas melhor assim do que nada!

A morte lenta do glaciar Ok já era esperada. No seu lugar fica a mensagem para as gerações presentes e futuras. Sim, também precisamos de mensagens. De esperança.

Às portas da rentrée política vamos com toda a certeza escutar promessas, ideias e soluções. Da Esquerda à Direita. Dos novos partidos também. Promessas e garantias de combate ao aquecimento global, apostas nas políticas de economia verde, descontos nos veículos não poluentes, etc. Também já não é mau.

O tema pode dar votos, pode ser popular e viral. Pode ser tudo isso. Mas é sobretudo mais do que urgente. Já não basta consciencializar as pessoas acerca da crise climática.

É preciso agir. E já. OK?»

Manuel Molinos

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Um thatcherismo de fachada socialista

por estatuadesal

(Ana Sá Lopes, in Público, 18/08/2019)

Ana Sá Lopes

Foi bom os camionistas terem decidido acabar a greve e voltar à mesa das negociações. Provavelmente serão os primeiros a sentirem o alívio por deixarem de ser “os monstros” vilificados por parte da opinião pública, principalmente por dirigentes e militantes socialistas que viram ali, em boa parte devido ao porta-voz Pardal – ou “o Pardal da trotinete” como disse Ana Gomes na SIC Notícias – o início de um movimento de extrema-direita ou uma acção para desestabilizar o país dirigida por Steve Bannon e mais um conjunto de alucinações que podemos dispensar de descrever.

A principal vítima de todo este processo foi o direito à greve. Nada será como dantes. A resposta musculada de António Costa, perante a concordância de todo o seu partido e meia tolerância do resto da esquerda, fará, com certeza, jurisprudência. Um futuro governo de direita tem este precedente para apresentar. Quando António Costa diz, na entrevista ao Expresso, que “no limite pode não haver distinção entre os limites mínimos e o serviço normal” sabemos que uma linha vermelha foi ultrapassada.

Quarenta e cinco anos depois do 25 de Abril, foi preciso recorrer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para saber o que são serviços mínimos. A PGR defende que podem ser “robustos”, Costa conclui que no limite até podem nem existir. Isto passou sem grande susto, mas as greves em sectores vitais – médicos, enfermeiros, transportes públicos – podem estar a caminho da extinção, já que se poderá invocar que “no limite serviços mínimos são iguais a serviço normal”.

Na sua candidatura às primárias do PS, em Junho de 2014, António Costa disse a seguinte frase: “Se pensarmos como a direita acabaremos a governar como a direita”. Era um manifesto de contestação a António José Seguro, acusando de ser brando contra as medidas da troika, contra o governo de Passos Coelho e defensor da assinatura do Tratado Orçamental. Aparentemente, Costa decidiu governar agora como Margaret Thatcher contra a greve dos mineiros sem que ninguém no PS ache estranho, enquanto ao mesmo tempo quem o colocou no poder – comunistas e bloquistas – demonstram alguma incapacidade de lidar com o assunto.

Costa vai ganhar a maioria absoluta por ser o homem da ordem, depois de já ter conseguido o óscar das contas certas? É possível. Há muita direita satisfeita, até porque o seu campo político morreu sem combate. As bases socialistas parecem exultar com o chefe – mas exultam sempre, também o faziam para jurar a inocência de Sócrates.

O Bloco de Esquerda e o PCP ganham ou perdem pela sua relativa abstenção neste processo? É difícil avaliar, mas a gestão da crise não foi brilhante e poderá ter consequências eleitorais. O PSD, apesar de Rio ter acordado quase ao sétimo dia, mantém-se inerme. O CDS apareceu para dizer que quer mudar a lei da greve – mas já se viu que os serviços da direita não são precisos, Costa chega e sobeja para tratar do assunto. Talvez o PAN, que nunca ninguém soube o que pensava sobre coisa nenhuma deste processo, seja um grande vencedor da crise.