Pedro Candeias
Editor
22 JANEIRO 2020
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O ponto 1 do artigo 11.º do Regulamento da Medalha Municipal do Porto diz que a Medalha de Mérito se destina “a galardoar quem tenha praticado actos de que advenham assinaláveis benefícios para a Cidade [....]” como o “desenvolvimento ou difusão da sua arte, divulgação ou aprofundamento da sua história”. A medalha segue a gradação olímpica, ouro, prata e cobre, é atribuída em função do “valor e projecção do acto praticado” e o protocolo manda que seja usada no lado esquerdo do peito.
Foi o que Sindika Dokolo fez.
Em março de 2015, o marido de Isabel dos Santos foi agraciado assim pelo presidente da Câmara Municipal do Porto Rui Moreira, por ter organizado a exposição “You Love, You Love Me Not”. Um ano depois, para estabelecer a Fundação Sindika Dokolo em Portugal - um “espaço de reflexão e aprendizagem para jovens artistas”-, Sindika Dokolo comprou a Casa do Cinema Manoel de Oliveira por €1,52 milhões através da Supreme Treasure, empresa gerida por Mário Leite da Silva, o braço direito da sua mulher que agora toda a gente também conhece dos Luanda Leaks.
Continuando.
Pelo meio, numa visita a Luanda, Rui Moreira garantiu que a fundação era “a melhor forma de retomarmos [Luanda e Porto] os vínculos que temos” e que a inauguração estava planeada acontecer na primavera de 2017. A última notícia sobre o assunto é de novembro de 2018. Porque nada avançara e os prazos tinham falhado, questionou-se a fundação e a fundação respondeu que “a Fundação Sindika Dokolo nunca abandonou a Casa do Cinema Manoel de Oliveira”. Ninguém sabe o que se passou entretanto.
Esta história, e outras que Francisco Louçã recorda num violento texto no Expresso, acusando a elite política e banqueira portuguesas de “conivência” com Isabel dos Santos, representa uma forma de estar que não é nova, nem só nossa, mas que surpreende sempre pela ousadia: quando um personagem todo-poderoso e nebuloso cai com estrondo, quando os esquemas de que todos suspeitavam são expostos ao sol, toda a sombra é pouca para se pôr ao fresco.
Comecemos pela PwC: saiu o português Jaime Esteves, líder do departamento de fiscalidade em Angola, Cabo Verde e Portugal e próximo de Mário Leite da Silva; o chairman Bob Moritz disse-se “desiludido por não termos identificado isto mais cedo e desiludido por não termos saído mais cedo”; Sarju Raikundalia, que trabalhou na PwC antes da promoção a braço-direito de Isabel dos Santos na Sonangol, terá operacionalizado uma transferência encapotada de €38,1 milhões e agora confessa estar disposto a contar tudo.
Ora, segundo os Luanda Leaks, a PwC fez serviços de contabilidade, deu conselhos fiscais e financeiros às empresas de Isabel dos Santos e de Sindika Dokolo - e recebeu 1,28 milhões de dólares por este trabalho, 900 mil dos quais através de uma offshore de Malta. No dia seguinte à divulgação massiva dos Leaks, a auditora cessou os contratos com as empresas de Isabel dos Santos.
Agora, o Fórum Económico Mundial de Davos: a organização riscou o nome de Isabel dos Santos do painel de oradores, sendo que o evento terá sido patrocinado pela Unitel, a empresa de telecomunicações da angolana.
Depois, o Eurobic cortou relações comerciais com Isabel dos Santos, que detém 40% do banco, e o Banco de Portugal pediu esclarecimentos ao Eurobic; em 2015, o BdP elaborou um relatório ao então BIC, considerando que estava exposto a branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
O abcesso apareceu e cresceu, primeiro sozinho e depois acompanhado, com a preciosa colaboração de parceiros estratégicos, diplomáticos, gente famosa e/ou principesca que ajudaram a espalhar a lenda e o dinheiro. E quando a (alegada) massa pútrida rebentou, as mãos que embalaram a narrativa fecharam-se. Atrás delas trancou-se a porta.