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sábado, 25 de janeiro de 2020

Angola procura ganhar a confiança dos investidores em Davos

De  Damon Embling  •  Últimas notícias: 24/01/2020 - 12:51

Angola procura ganhar a confiança dos investidores em Davos

Direitos de autor

Euronews

O Fórum Económico Mundial, de Davos, é o lugar certo para os países se evidenciarem e criarem parcerias. Angola não quis ficar de fora e foi à Suíça mostrar que está a mudar de paradigma e que o país está pronto para fazer mais e melhor, no sentido, também, de cativar os investidores.

À margem do encontro, a euronews falou com a ministra das Finanças angolana que explicou a importância de estar presente neste fórum:

"Estamos num caminho de reconstrução, de ganhar a confiança dos investidores nacionais e internacionais, em Angola, de mudança na maneira como fazemos negócio, como nos mostramos, como gerimos as entidades e as empresas públicas. Por isso, estar aqui é uma oportunidade para fazer ouvir a nossa voz, de falarmos sobre o que estamos a fazer, qual é a nossa visão em relação ao país e como nos propomos diversificar a economia. Porque, no modelo atual, o petróleo é o principal contribuidor, queremos mudar para um modelo onde outros setores contribuem para o nosso crescimento", adianta Vera Daves.

Reduzir a dependência do petróleo e alterar o modelo de governação. O paradigma muda e Angola foca-se em dois pontos principais:

_"Estamos a trabalhar em dois objetivos principais. Um deles é estabilizar as condições macroeconómicas, controlar a inflação, permitir que as taxas de câmbio flutuem livremente, para começar a crescer. _

Há quatro anos que temos uma taxa de crescimento negativa e precisamos de começar a crescer porque a nossa população está a aumentar e precisamos de crescer mais do que a nossa população para ir ao encontro das suas necessidades sociais.

Isto sobre a questão macroeconómica, mas do lado político queremos continuar a desempenhar um papel pacificador. Historicamente, desempenhamos esse papel: falamos com os países vizinhos, ajudamos a estabilizar a região, desempenhamos um papel importante para a paz na região dos Grandes Lagos e queremos continuar a fazê-lo, porque temos em Angola estabilidade social e politica e compreendemos que isso é a chave para garantir que o comércio, que a abertura que queremos ver entre países africanos, acontece num ambiente político de estabilidade", explica a governante.

Angola procura também "arrumar a casa". Findas, quase quatro décadas de poder de José Eduardo dos Santos o país fecha um capítulo, abre um novo, e ninguém está acima da lei, diz a ministra. Isabel dos Santos, a filha mais velha do antigo chefe de Estado, faz as manchetes e está a braços com a Justiça:

"É muito importante, quando temos uma visão, focar-nos nessa visão e persegui-la. Claro que uma das nossas prioridades é a luta contra a corrupção em todas em entidades, empresas e em relação a todas as pessoas. Todos devem respeitar a lei. Há casos mais mediáticos que outros mas temos de estar empenhados neste processo, enquanto processo global. E manter o foco para criar as condições para que a economia de Angola cresça de uma forma inclusiva", diz a ministra das Fianças angolana_._

Isabel dos Santos está no centro das polémicas mas o governo quer deixar este capítulo para a Justiça e centrar-se, como veio fazer a Davos, em mostrar Angola ao mundo e promover todas as mudanças que estão a produzir-se para cativar os investidores. Uma economia saudável é fundamental no sentido de criar melhores condições de vida aos angolanos:

_Temos de garantir que as leis angolanas são aplicadas. E que quem trabalha em Angola, como os gestores públicos ou os investidores privados, cumprem a lei. E é o que está a acontecer. A Justiça angolana está a cumprir o seu papel garantindo que quem não respeita a lei sofre as consequências. E está a acontecer a vários níveis. É pena que só alguns casos sejam mediáticos. _

Penso que temos de respeitar o trabalho da Justiça e das instituições e ver os resultados a aparecer na nossa sociedade. Com a normalização da forma como os negócios são geridos, como os serviços públicos são garantidos e a forma como entregamos aos nossos cidadãos os bens e os serviços de que necessitam", conclui Vera Davos.

Um artigo reaccionário a favor de uma proposta que não é reaccionária do PCP

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 25/01/2020)

Pacheco Pereira

1. Este é um artigo reaccionário, simplista, mas que do ponto de vista do autor é verdadeiro, ou seja, o que se descreve existe como realidade e como problema, senão não o escrevia. Simplista, porque seria preciso muito mais texto do que permite o jornal para passar da impressão à crítica, mas se o faço mesmo assim é porque penso que pode ser útil.

2. Por várias razões, os adolescentes, os jovens, estão na moda, e as crianças e os adultos, já para não falar nos velhos, não estão. A primeira coisa que convém lembrar para se perceber o “estão na moda” é que nem sempre foi assim. No passado, esse “país estrangeiro”, a importância simbólica das diferentes idades e das experiências a elas associadas, assim como o seu valor social percebido, foi muitas vezes bastante distinto. É por isso que digo, sem dúvida simplificando, que a moda traduz a forma como no espelho da sociedade se mede a importância de cada idade, e por razões culturais, económicas e sociais esta importância muda com os tempos. E hoje é grande.

3. Uma das razões por que os jovens estão na moda tem que ver com a valorização simbólica da força, da beleza, da vida com todo o tempo à frente, e os efeitos dessa moda são particularmente visíveis na comunicação, nas indústrias da moda, do sexo e do entretenimento, no desporto e nos jogos, e em todos os casos há muito dinheiro em cima, como se vê na publicidade e no mercado. Daqui seguem-se uma série de estereótipos que, se forem analisados, não dão os resultados que todos pensam dar e se revelam ideias feitas. Por exemplo, todos os hackers nos filmes são nerds, jovens disfuncionais socialmente a “trabalhar” numa cave escondida algures, e nenhum alfarrabista nos filmes é jovem, mas um velho de barbas brancas metido no meio de estantes de livros antigos que acumula os livros com as artes da espionagem. Do mesmo modo, a caterva de personagens angustiadas nas séries televisivas são todas de meia-idade. Estes estereótipos são repetidos por páginas culturais e jornais de referência sempre a descobrir jovens talentos que não duram um ano, escritos por jornalistas de meia-idade que pensam que têm 18 anos.

4. Há várias coisas que os jovens não fazem, a não ser as excepções, e uma é ler livros e por isso o estereótipo da “geração mais bem preparada” é um daqueles mitos que gostamos de alimentar, mas que soçobra ao mais pequeno concurso televisivo de perguntas “culturais”, ou inquérito de rua sobre se conhecem Cesário Verde, ou sobre o que estão a ler. Vão-me dizer que não precisam de saber essas coisas, mas que têm outras “competências”. Uma treta que não passa de saber usar um telemóvel, ou colocar posts e imagens no Facebook (uma actividade onde “habitam” muitos adultos) e no Instagram, e manejar meia dúzia de devices pouco elaborados que só espantam os mais velhos, porque eles não o sabem fazer. O Fortnite, onde passam as noites, isso sabem. Já sei que também me vão dizer que milhares de jovens pelo país fora participam em grupos de teatro, são “artistas” plásticos, são músicos de talento, e há toda uma indústria subsidiada pelo Estado e pelas autarquias, que sem gente “nova” não existiria. Sim, é parcialmente verdade, mas experimentem usar um qualquer critério de qualidade (mesmo neste período de intangibilidade da cultura, eles existem…) para lhes medir o mérito. Como não se trata de terapias ocupacionais, mas de actividades que se reivindicam de criativas, é preciso medir o valor e os resultados.

5. Por isso, muitas das iniciativas educacionais e culturais e os recursos que mobilizam são muito mais eficazes se dirigidos às crianças e aos adultos, tratando-se o “meio” de outra forma, sob pena de se fazerem enormes esforços sem qualquer resultado útil, ou, dito de outra forma mais crua, vale mais investir e muito nas crianças e nos adultos, e aí concentrar os recursos escassos, para obter resultados sociais que depois atingirão os “meios”. Se, por exemplo, se trata de aumentar a escolaridade obrigatória, como dizia Marçal Grilo, mais vale fazê-lo para trás do que para a frente. E aqui é que entra a proposta do PCP para o Orçamento deste ano, de garantir “a gratuitidade de frequência de creche a todas as crianças cujo agregado familiar pertença ao primeiro escalão de rendimentos da comparticipação familiar até à entrada no ensino pré-escolar”.

6. Esta é uma proposta que vai no sentido certo em conjunção com um muito maior esforço no pré-escolar, porque ataca numa idade muito favorável a divisão entre pobres e ricos, nos seus efeitos perversos que se reproduzem em toda a vida escolar, favorece uma socialização equilibrada das crianças, permite que desde cedo muitas competências e “vontades” possam ser moldadas para a leitura, para as línguas, para a nossa muito maltratada língua, para chegar ao saber pela curiosidade. Não é milagrosa, mas muda muito. Quando as crianças de hoje forem os novos jovens daqui a uns anos, serão diferentes.

O sorriso de Isabel dos Santos

Posted: 24 Jan 2020 03:34 AM PST

«A propósito do dilúvio de notícias sobre Isabel dos Santos, empresária que graças à relação de parentesco com um discreto ex-ditador de uma antiga colónia portuguesa construiu um império e se tornou mundialmente conhecida por antonomásia como “A Mulher Mais Rica de África” ou, nos circuitos angolanos, “a Princesa”, lembrei-me de uma frase de Honoré de Balzac dita por uma das suas personagens, Vautrin, no Tio Goriot: “O segredo das grandes fortunas sem causa evidente é um crime esquecido, por ter sido cometido como deve ser.” Uma versão reduzida da frase, e a mais conhecida e divulgada, diz que “por trás de uma grande fortuna esconde-se sempre um crime.”

Embora o sentido seja semelhante, há diferenças. Vautrin fala de grandes fortunas sem causa evidente — e não de qualquer fortuna. E acrescenta que o crime cai no esquecimento porque é cometido com arte e engenho. A nós, pobres mortais pobres, alegra-nos a versão popular porque não poupa nenhuma fortuna à suspeita de que na sua origem esteve um crime e somos confortados pela ideia de que todo o dinheiro a sério, não os trocos que levamos nos bolsos ou os míseros saldos das nossas contas bancárias, é sujo, tem a mácula de um pecado original.

Desconheço a sensação de ser possuidor de uma fortuna, lícita ou ilícita, mas desconfio que o homem ou a mulher de fortuna extraia mais gozo, mais prazer sensual, de uma fortuna acumulada através de jogadas e lances obscuros e de moralidade duvidosa do que de milhões conquistados pelo suor do rosto à luz do dia.

Veja-se o sorriso de Isabel dos Santos. Até há pouco tempo um traço fisionómico luminoso e hoje transformado num ricto tenso de fase de inquérito, na sua rasgada e económica horizontalidade que jamais se abastardava no descontrolo obsceno da gargalhada, o sorriso da primogénita de José Eduardo dos Santos tornou-nos cúmplices de todos os seus hipotéticos atos de gestão danosa, de todas as suas eventuais malfeitorias. Tinha inscrito em cada pequeníssima ruga de esforço a branda malícia daqueles que se sabem favorecidos pelo acaso, pela astúcia e, quando estes não chegam, por advogados peritos em alçapões legais, gestores fiéis e disponíveis para a imolação e redes clientelares de amigos de negócios. (Se repararem, em virtude do lugar secundário que ocupam na cadeia alimentar, os sorrisos destes são geralmente mais amplos, mais genuínos, mais desavergonhados).

Ao contrário do sorriso da impunidade, que é arrogante e desafiador, o de Isabel dos Santos denotava uma certa bonomia, uma jovialidade sedutora. Mesmo quando desfilava com ares de imperatriz por uma Lisboa ajoelhada pela crise, e se resguardava tanto quanto a sua posição lho permitia num silêncio esfíngico que inspirava temor, como se a qualquer momento, qual Salomé, pudesse exigir a cabeça dos inimigos em salvas de prata, o sorrisinho malandro, mais caluanda do que King’s College, onde se licenciou, nunca desaparecia. Era o sorriso do prazer físico proporcionado pelo dinheiro e pelo poder. Desconfio que Isabel dos Santos queria que fôssemos testemunhas desse prazer por saber que a quantidade de dinheiro em que navegava a tornava imune à inveja popular.

O pobre, meus amigos, não inveja quem tem 50 milhões de euros ou dois mil milhões de euros, abstrações inconcebíveis para a sua cabeça remediada, mas o vizinho que tem mais 50 euros do que ele. É essa quantia irrisória que o atormenta — e não os 300 mil euros que Isabel dos Santos pagou para remodelar um apartamento de quatro milhões. Por isso vê-se mais indignação por causa de um bilhete de autocarro do que pelos milhões que terão sido desviados por Isabel dos Santos.

Como todos os coletivos, o “martirizado povo angolano”, a vítima de que a nossa indignação necessita para condenar com alguma veemência “a princesa”, é outra abstração. Um povo inteiro não tem rosto. Eis a razão pela qual a indignação contra os corruptos nasce de um esforço racional, de civismo forçado, enquanto a indignação contra o ladrão de galinhas vem das vísceras, de um sentimento urgente, epidérmico, de injustiça.

Apartamentos de 50 milhões de euros no Mónaco são uma ficção, uma galinha roubada é real. O “povo angolano” é uma ficção, o proprietário da galinha é real. Isabel dos Santos, que diz ter começado a vender ovos nas ruas de Luanda, deve saber uma ou duas coisas sobre galinhas, ovos e abstrações, sobre os pequenos delitos que nos agravam e os crimes que toleramos mesmo que estejam na origem de fortunas faraónicas. Só quem sabe sorri daquela maneira.»

Bruno Vieira Amaral

Tudo tão irritantemente previsível

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/01/2019)

Miguel Sousa Tavares

Agora Isabel dos Santos desdobra-se em entrevistas, declarações, comunicados, explicações. Mas antes de o escândalo rebentar — ou melhor, antes de o controlo lhe escapar das mãos, porque o escândalo sempre esteve lá, à vista de todos — ela resguardava-se ao extremo, como pessoa politicamente exposta, que sabia ser, e como pessoa esperta, que era. Por isso, são poucas as imagens disponíveis dela, nas raras ocasiões em que se deixou filmar ou fotografar em Portugal. Nessas raras imagens, vemos sempre a “princesa de África” muito longe de um clima de racismo, de que agora também se reclama vítima. Antes pelo contrário: aparece rodeada de homens e mulheres de raça branca que lhe sorriem, abrem alas, bajulam quase lhe fazem vénias e só não rastejam a seus pés porque é tudo gente muito composta. Ó Isabel de África e do mundo, o dinheiro não tem raça!

E também não carece nem de razões, nem de explicações, nem de ética. Muito dinheiro, rios de dinheiro afogam quaisquer dúvidas. Veja, Isabel, como entre toda essa gente — os seus parceiros de negócios, os seus banqueiros, os seus advogados, os seus conselheiros, os traficantes de influências a seu soldo ou os políticos a seus pés — ninguém ousou fazer-lhe as duas perguntas que se impunham: como é que tinha conseguido o seu primeiro milhão; e como é que se justificava que, sendo Angola um país riquíssimo, o seu povo fosse miserável, enquanto o Presidente e a família do Presidente eram todos multimilionários e a filha do Presidente a mulher mais rica de África? Alguma vez sentiu, entre todos esses racistas que a rodeavam, a mais leve sombra de crítica, de desprezo, de desdém, pelos seus milhões? Sentiu alguma leve sombra de mal-estar pela sua presença nos conselhos de administração onde, como diz, se fazia sentir o seu “talento e inteligência”, ou nas lojas de luxo ou nos restaurantes com nome francês da Avenida da Liberdade, onde se fazia sentir a leveza do seu dinheiro?

Claro que a “princesa de África” agora tem razões para se sentir traída e abandonada. Julgou que o dinheiro também comprava lealdades e solidariedades, sempre e entre pares, e está a descobrir por si que não existe tal coisa como ser-se alguém sem escrúpulos na prosperidade e ser-se também um cavalheiro na adversidade. Uma vez sem princípios, sempre sem princípios. Concordo que ver o seu auditor de todos estes anos, o cavalheiro da PwC, declarar-se “desiludido” consigo deve meter nojo a uma ratazana. Ver Davos desconvidá-la, depois de se ter feito pagar bem pelo convite que lhe havia feito para intervir na qualidade de grande empresária internacional, mostra bem o estofo moral da elite do mundo. Ver o seu próprio banco, cúmplice nos seus desvios de fundos de dinheiro de Angola para o seu bolso, vir agora “cortar relações comerciais” com as suas empresas, continuando todos sentadinhos nos seus lugares lá no banco, prova que há gente que nem de si própria tem vergonha. Mas é a gente dela, é o mundo dela, são os valores dela. São os guardiões do mais desprezível dos bezerros de ouro: o dinheiro sujo que todos eles sempre souberem ser o dela. Dinheiro roubado a angolanos que morreram por falta de medicamentos nos hospitais, que morreram de fome num país com condições para alimentar de sobra toda a sua gente, que viveram miseráveis todos estes anos, sugados por um regime afogado em lençóis de petróleo e diamantes, cujas receitas, durante anos a fio, nem sequer entravam no Orçamento do Estado. Iam directamente para os bolsos da “grande família”, dos generais e da clique que em Luanda os apoiava, sobrando abundantes restos para os que, em Portugal e não só, lhes forneceram o indispensável know how financeiro, bancário, jurídico e organizativo para se transformarem de salteadores de estrada em respeitáveis empresários internacionais com entrada garantida em Davos.

Pelo caminho, e no que nos toca, foram décadas de sucessivos “irritantes” e outras tantas humilhações de Estado a que Angola nos submeteu e a que nós nos submetemos. Eles, a “grande família” de Luanda, pela sua atitude de novos-ricos reivindicando o direito de mandar até na nossa Justiça e na nossa imprensa; e nós, submetendo-nos tantas vezes pelo “interesse nacional” de não perder a mina de ouro dos negócios com Angola — refúgio, por vezes certo, outras vezes incerto, em tempos de crise. Por força das regras de jogo ditadas pela cleptocracia angolana, de que Isabel dos Santos era expoente e embaixadora, nunca tivemos com Angola uma relação limpa e transparente, entre iguais e amigos. E esta obscura e hipócrita relação foi sustentada como imperativo nacional por todos ou quase todos os quadrantes políticos portugueses, com a notável excepção do BE e, durante muito tempo, até se arrepender, do CDS. De resto, o PS e o PSD, sobretudo este, porque tinham as mãos na massa, e o PCP, por razões de psicanálise (pois continua a querer acreditar que Angola, tal como a China, a Rússia, a Venezuela ou a Coreia do Norte são países “socialistas”) fizeram sempre do dossiê Angola uma questão indiscutível. E até vimos alguma gente de extrema-direita, nacionalista e ex-colonialista a fazer negócios em Luanda, de mãos dadas com a elite dos generais corruptos do MPLA.

Vimos de tudo, e toda a gente soube sempre de tudo. Espero que ninguém se atreva a vir dizer que não sabia. Não é preciso que se suicidem, nem sequer esperamos que se demitam, mas ao menos que fiquem envergonhadamente calados. Até porque, ou muito me engano, ou nós ainda só vimos a ponta do icebergue. Como é evidente, Isabel dos Santos não acumulou 3 mil milhões de dólares sozinha, sem ter tido por trás de si um mar de conivências, cumplicidades e fechar de olhos de quem devia ter visto, ter falado e ter impedido. Lá, como cá. Aliás, muito gostaria de saber o que veio cá fazer ao certo o PGR de Angola, ao querer reunir-se com a sua homóloga portuguesa logo no dia seguinte a ter constituído Isabel dos Santos arguida por desvio de fundos da Sonangol. Gostaria de acreditar que não veio cá para combinar entre ambas as partes o quê e quem é que cada um dos lados deve investigar e quando é que deve parar. O que estará naqueles 700 mil documentos que ainda não sabemos e que mais pistas é que eles podem dar para outras investigações? Quando se segue a pista de dinheiro sujo — e rios de dinheiro é quase infalivelmente dinheiro sujo — nunca se chega só aos suspeitos do costume.

Tudo isto é bem mais do que irritante, é profundamente triste. Nós estivemos em Angola e em África 500 anos. Fizemos por lá aquilo que outros povos brancos e outros colonizadores fizeram em circunstâncias idênticas: explorámos a colónia, conforme era direito adquirido à época. Nem inventámos o colonialismo nem inventámos a escravatura em África, mas tirámos abundante partido de ambas as coisas e fizemos o Brasil à conta de Angola. E prolongámos ambas as coisas, o colonialismo e a escravatura quando, mesmo entre os brancos, tal se tinha tornado moral e juridicamente insustentável. E, por isso, para garantir o negócio de uma dúzia de famílias da metrópole, mantivemos uma guerra fora de tempo e fora da justiça durante 13 anos, que só terminou com a queda do regime. E porque foi tão mal conduzido o final da colonização e tão errada a guerra, a descolonização foi um desastre cujo preço foi pago, não pelos donos da colónia, mas pelos colonos pobres, impreparados para uma saída apressada.

E para trás, depois de 500 anos, não deixámos, conforme era nosso estrito dever, uma elite local capaz de tomar em mãos o destino de uma nova nação. Deixámos, sim, o que ficou à vista: um país dividido entre etnias e facções, que se dilaceraram numa interminável guerra civil que destruiu Angola, finda a qual, os vencedores se instalaram a banquetear-se com o saque do país. E nós a colher as migalhas.

Dito assim, parece que nada de recomendável ficou da nossa passagem de 500 anos por Angola. Mas não é verdade. Muitos portugueses fizeram e deixaram lá obra notável e que nos orgulhou, muitos amaram como sua Angola e deram toda a sua vida por ela, muitos mereceram ficar para a História de Angola, por mais que se reescreva a História. Eles não merecem é a pequena história destes últimos 44 anos das nossas relações com Angola, em que o principal foi sempre a cobiça e a hipocrisia. Isabel dos Santos é o exemplo eloquente disso. Ela manchou o nome de Angola. E, com a nossa cumplicidade, manchou o nosso também.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Suicídio e perguntas ainda sem resposta no "Luanda Leaks"

De  Nara Madeira com RTP/AFP/AP  •  Últimas notícias: 23/01/2020 - 19:56

March 5, 2015

March 5, 2015   - 

Direitos de autor

AP Photo/Paulo Duarte-Paulo Duarte

O procurador-geral da Republica de Angola, Hélder Pitta, está em Lisboa, onde se reuniu esta tarde com a homóloga portuguesa, Lucia Gago, no âmbito do caso de corrupção que envolve Isabel dos Santos.

À chegada à capital portuguesa afirmou que veio debater "muita coisa", sem esclarecer se iria pedir diretamente ajuda na investigação que envolve a filha mais velha do antigo presidente angolano, José Eduardo dos Santos. A reunião da tarde terminou sem declarações à imprensa.

Isabel dos Santos foi constituída arguida por alegada má gestão e desvio de fundos durante a presidência da Sonangol, denuncia feita pelo atual presidente do conselho de administração da petrolífera estatal, Carlos Saturnino.

Entretanto, as autoridades portuguesas privilegiam a tese do suicídio na morte de Nuno Ribeiro da Cunha, diretor e responsável pelas grandes contas do Eurobic, entre elas a de Isabel dos Santos.

O gestor, que tinha sido constituído arguido por Angola no mesmo processo, foi encontrado morto na sua casa no litoral Alentejano, em Portugal, na quarta-feira.

São ainda arguidos neste processo Sarju Raikundalia, ex-administrador financeiro da Sonangol, Mário Leite da Silva, presidente do conselho de administração do Banco de Fomento Angola (BFA) e Paula Oliveira, administradora da portuguesa NOS. Todos com ligações à empresária. O procurador-geral diz que estão todos fora de Angola mas que serão notificados de que foram constituídos arguidos.

O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação tinha revelado mais de 700 mil ficheiros, os "Luanda Leaks", mostrando os esquemas utilizados por Isabel dos Santos e pelo seu marido, Sindika Dokolo, para, alegadamente, desviar dinheiro público angolano e colocá-lo em paraísos fiscais.

Desenvolvimentos que acontecem na altura em que Angola sobe 19 posições no "Índice de Perceção da Corrupção", da Transparência Internacional, relativo a 2019. O documento destaca as "melhorias significativas" registadas pelo país.