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domingo, 16 de fevereiro de 2020

Para as pessoas que não lidam muito com estas matérias

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 13/02/2020)

Marques Mendes já era um importante militante do PSD aos 18 anos de idade, quando exerceu o cargo de secretário do Governador Civil de Braga nos idos de 1975. Filho de um advogado fundador do PSD e presidente da Câmara Municipal de Fafe, o primogénito iria nos 44 anos seguintes provar que merecia usufruir dos privilégios dinásticos. No Cavaquistão foi peça do núcleo duro partidário e governativo, chegou a presidente do PSD em 2005 e foi mantendo ao longo das décadas uma feérica actividade como advogado e administrador de várias empresas. Para o que segue importa fixar o seguinte: o actual Presidente da República escolheu-o para o Conselho do Estado – isto é, Marques Mendes representa no Conselho de Estado os interesses de Marcelo Rebelo de Sousa.

No passado domingo, no seu comentário na SIC, Marques Mendes lançou no espaço público as seguintes declarações:

"Eu não dou muita importância [às violações do segredo de justiça] porque isso é aos pontapés"
– “Já se percebeu que há uma guerra entre este juiz [Carlos Alexandre] e o primeiro-ministro e, portanto, não vale a pena perder... isso é uma questão lateral
– “Há coisas muito estranhas aqui [no caso de Tancos]... Não é do ponto vista criminal, é do ponto de vista político
– “Veja bem, três exemplos para as pessoas perceberem rapidamente: [seguem-se três exercícios de cavilações]
– “Toda a gente no País sabia [do duvidoso "memorando"], menos o Governo
– “E a certa altura viemos a saber o quê? Que Azeredo Lopes acha tudo normal porque vê muitos filmes policiais. Veja bem, é o que lá 'tá dito [em supostas transcrições do interrogatório de Carlos Alexandre a Azeredo Lopes]... e achou qualquer coisa normal porque vê muitos filmes de televisão
– “Veja bem, como é que num assunto gravíssimo, que podia ser de segurança nacional, das coisas mais graves que aconteceram em Portugal, o Governo não tratou de esclarecer coisíssima nenhuma... tratou isto como uma novela policial, veja bem
– “Para as pessoas que não lidam muito com estas matérias [directiva sobre poderes das chefias no MP], e que podem até achar que é uma questão muito jurídica, que não interessa nada, expliquemos rapidamente. O que está em causa, no essencial, é isto: é saber se a ordem de um superior hierárquico a um procurador no Ministério Público deve estar escrita no processo ou não. E isto ressuscita - para as pessoas perceberem a importância disto - o fantasma das ingerências políticas nas investigações.
– “Vi-o [António Ventinhas] a dizer «Isto é o fim do Ministério Público democrático, é um atentado à democracia»... são afirmações algo demagógicas...
– “E, finalmente, insisto no que disse há bocadinho, suscita, justa ou injustamente, o fantasma das ingerências políticas em processos judiciais. Sobretudo nos processos mais delicados. Aí onde Joana Marques Vidal, a anterior procuradora-geral da República, criou, de facto, as condições para haver maior independência, e, agora, levanta-se este novo fantasma.
– “Se a actual procuradora-geral da República, eu acho que se não resolver isto rapidamente, eu acho que ela corre o sério risco de sair chamuscada do processo

Recapitulando, e com “três exemplos para as pessoas perceberem rapidamente”:

– Marques Mendes está-se a cagar para a actividade criminosa da violação do segredo de justiça.
– Marques Mendes caga d’alto na “guerra” que um certo juiz alimenta contra um certo primeiro-ministro.
– Marques Mendes espalha merda da grossa para cima dos magistrados, do PS e da República.

Este peralvilho que se baloiça desasado no poleiro mediático do militante nº1 do PSD seria o mais feroz dos indignados com os crimes de violação do segredo de justiça caso eles visassem preferencial e sistematicamente a sua área política ou as suas relações profissionais e pessoais. Como as vítimas são na sua enorme maioria da sua principal concorrência eleitoral e fáctica, como os crimes cometidos por agentes da Justiça foram e são fundamentais para a estratégia da calúnia e da judicialização da política contra o PS, ele está feliz da vida.

Este passarão do sistema partidário e político desde o final dos anos 70 estaria em pé de guerra caso um juiz, um juiz qualquer badameco sem carência de ser uma vedeta do poderosíssimo Tribunal Central de Instrução Criminal e do populismo justiceiro, abrisse um qualquer tipo de conflito com um primeiro-ministro laranja. Sairia a terreiro armado com grandiloquentes sermões acerca de Montesquieu e da teoria da separação de poderes no liberalismo democrático que não deixariam pedra sobre pedra na temeridade e reputação desse juiz.

Este Conselheiro de Estado, escolhido pelo Presidente da República para um órgão de consulta a respeito das mais criticamente graves questões nacionais, deleita-se na política-espectáculo a ameaçar a procuradora-geral da República, a atacar o Governo e o PS com chicana debochada, a achincalhar indecentemente um ex-ministro a partir da violação dos direitos e da dignidade de um cidadão, e a espalhar sórdidas e dementes teorias da conspiração em que um número indeterminado de magistrados (procuradores e juízes), a que se acrescentam todos os órgãos soberanos (da Assembleia da República aos conselhos superiores das magistraturas, e ainda os tribunais no seu todo, já para não falar de Cavaco Silva então Presidente da República), teriam sido cúmplices de dois indivíduos (Pinto Monteiro comandado por José Sócrates) para se cometerem espantosos crimes no Ministério Público sem que o próprio SMMP os tivesse conseguido denunciar às autoridades.

Estará Marques Mendes maluco? Nada disso. Ele apenas aproveita a vantagem da sua posição de poder, um poder que conseguiu ilegalmente espiar um primeiro-ministro em funções, e que irregularmente (quiçá também ilegalmente, a História o verificará) conseguiu o troféu supremo da prisão do inimigo mais temido, por isso mais odiado. Esse poder, Marques Mendes – em nome de Marcelo Rebelo de Sousa e do que ambos representam, estabelecem e influenciam no regime – não quer perder.

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Pedro Lains fez, há um ano, um interessante retrato deste pulha: Compreender Marques Mendes

O sr. Medina e o Pai Natal

Posted: 15 Feb 2020 03:39 AM PST

«Shirley Temple, que se tornou uma das crianças-prodígio de Hollywood, a terra de todas as fantasias, recordou um dia que a marcou para sempre: “Eu deixei de acreditar no Pai Natal quando tinha seis anos. A minha mãe levou-me a um centro comercial e ele pediu-me um autógrafo”. O sr. Fernando Medina, que não conseguiu seguir carreira em Hollywood, nunca terá tido uma experiência como a menina Shirley. Assim, teve de continuar a acreditar no Pai Natal. Com o tempo evoluiu. Hoje crê que é o Pai Natal. E que está, em Lisboa, a distribuir prendas. Talvez sonhe que, se um dia forem reconhecidos os seus dotes superiores, possa ser Primeiro-Ministro ou mesmo Presidente da República. Será então mais famoso do que o Pai Natal.

Cada um segue a quimera que quiser. Mas, até lá, o sr. Medina aspira terraplanar Lisboa. E torná-la a imagem da sua fantasia. Quer fazer de Lisboa a sua Versailles. Com um outro estilo de Corte. O projecto, cerzido desde há anos, está a chegar ao ponto de rebuçado. Para ele, Lisboa será uma cidade que será uma mistura entre o Dubai arquitectónico e um condomínio turístico. Com o povo fora de portas, vindo apenas para prestar serviços a uma “cidade limpa” e “verde”.

A sua “estratégia para o turismo 2020-2024” certifica esta visão. É por isso que pode dizer: “Não estamos a falar de uma coisa pequena, 15 mil milhões (de euros) é o equivalente a 10 vezes o que gera todo o sector do calçado no país e seis vezes as vendas da Autoeuropa”. De forma modesta o sr. Medina vem dizer aos comuns crédulos que o turismo é tudo e indústrias estruturantes são amendoins. Foi com ideias destas que os ingleses impuseram o Tratado de Methuen e Portugal destruiu o seu têxtil e ficou a ver a Revolução Industrial por um canudo.

Pior, no seu “planinho”, o sr. Medina sonha “potenciar” Marvila e Beato como zonas “trendy” e criar um pólo Reserva Natural do Estuário, com o turismo dedicado à “tradição rural”. Essa ideia de dividir Lisboa em “reservas de estilo” é digna de um Nobel. Sobre a segunda, depois do que projecta para o Estuário do Tejo com o novo aeroporto, pode-se criar um novo tipo de turismo “bird watching”: observar aviões a descolar e a aterrar porque os pássaros não existirão. E sobre a “cidade verde”? Tiram-se os carros da Baixa, mas acena-se os maiores poluntes de todos, os barcos de cruzeiro.

Se juntarmos tuda esta irrealidade à linha circular do Metro (feita para quem vive na zona turística poder andar sem demoras) e aos planos imobiliário para Entre Campos e Praça de Espanha, o Monopoly está embalado. É triste. Não se pense que o sr. Medina inventou alguma coisa.

Basta ler o que escrevia o grande escritor e monárquico convicto Carlos Malheiro Dias, em 1904: “o pobre foi escorraçado de todos os locais saudáveis e arejados, tangido para Xabregas, para Alcântara, para a Mouraria, para Alfama. E a Lisboa dos ricos desenvolve-se, prospera, aformoseia-se”. Agora são as classes médias a serem corridas dos novos centros de cobiça.

Quando José Carlos Ary dos Santos escreveu o poema “Lisboa, Menina e Moça”, falava ainda de uma cidade onde os bairros eram os seus pulmões, cercando um Terreiro do Paço poderoso. Era uma cidade típica, sem ser moderna. Décadas depois, sem conseguir ser moderna, está a deixar de ser típica. Lisboa desinvestiu dos bairros e não investiu numa visão que a tornasse moderna sem desprezar o passado alfacinha e sem ignorar a riqueza cultural que as diferentes emigrações lhe trouxeram.

O problema é que Lisboa continua sem ter direito a uma visão criativa por parte de alguém que a tente transformar naquilo que deve ser: uma cidade cosmopolita mas agradável para viver, trabalhar e passear. Com uma história. Se for só arquitectura pseudo-moderna com bairros “trendy”, não serve para nada. Nem para o futuro turismo, porque este vai mudar muito rapidamente. Lisboa precisa de ser autêntica, na sua diversidade. E não ser uma “pequena Versailles”. Ao remover o antigo, para criar um novo efémero, o sr. Medina não legará uma cidade de futuro. Os seus herdeiros receberão betão sem alma.»

Fernando Sobral

sábado, 15 de fevereiro de 2020

A palavra é sofrimento

Posted: 14 Feb 2020 03:15 AM PST

«Uma síntese do que se escreveu quando já nada mais há a dizer. Morrer não é só uma fatalidade quando morrer é quase uma obrigação. É dignidade pelo livre arbítrio e pela escolha individual, o fim de um sofrimento atroz.

Ainda hoje há quem considere leal viver um simulacro da vida pelos olhos dos outros, pelo desígnio de nos manterem vivos à custa da tormenta. Por acharem que é justo, decente ou imperativo em razão da sua moral, visão, religião ou vontade. É por aqui que nos ficamos, tantas vezes. Um ser piedoso como um verbo de encher.

Falhamos redondamente em humanidade se não nos derem o direito de sobreviver a nós mesmos. Ninguém pode decidir se um sofrimento terminal é ou não legítimo. Ninguém se pode arrogar do espaço de liberdade final de alguém em nome da perpetuação da vida, para além da vontade quando se sofre tremendamente. Impedir a agonia é intimidade e é intransmissível. É nome maior, glorificação do mais basilar princípio da democracia: decidir em liberdade quando só nós estamos em causa.

Lembrando o processo da despenalização do aborto em Portugal, somos por vezes um país que prefere atrasar-se uma década ou mais quando legisla sobre realidade. A dignidade e elevação geral do debate parlamentar de 2018 sobre a morte assistida criou condições para enterrar de vez o alarme social de frases assassinas como "por favor não matem os velhinhos", "eutanásia? Não mates, cuida" ou do "eu não quero morrer, será que me vão eutanasiar?" Esta contrainformação, espúria manipulação da miséria humana, criando cinicamente a confusão sobre a possibilidade de um Estado-matador que espreita às portas da doença, é ofensiva e inclassificável. Então porque insistem?

Há quem queira levar a referendo um sofrimento inatacável. Que não se combate, não se desloca para sinais intermitentes ou zonas de maior conforto. Está para além da bondade caridosa ou da complacência. Em última análise, falamos de amor e de dignidade que não se entrega às mãos de ditames da fé ou da sua ausência. E aí os vemos, ímpios da consciência alheia a agitar a bandeira da liberalização da morte para diabolizar a eutanásia. Tamanha dissimulação. Ousam falar da obrigação societária de cuidar até ao último sopro de vida quando sempre menosprezaram o estatuto dos cuidadores informais e o reforço dos cuidados paliativos. Apenas um álibi para minar o debate e as decisões sobre a morte assistida. Adiar ou referendar em nome de quem? Apenas da hipocrisia e a sua própria moral em autogestão.»

Miguel Guedes

PS cai, PSD resiste. Só o Chega ganharia com novas eleições

por estatuadesal

(David Dinis, in Expresso, 15/02/2020)

Se tivéssemos hoje eleições antecipadas não seria um dia bom para António Costa: na sondagem Expresso/SIC, o Partido Socialista cai para o registo mais baixo do último ano, 33%. Na prática, é uma queda de 3,3 pontos face aos 36,3% que o PS obteve nas legislativas de outubro. Mas são também menos nove pontos face à intenção de voto que o PS chegou a atingir em setembro, durante a pré-campanha eleitoral. Consequência: como o PSD mantém a sua intenção de voto nos 28% (em outubro teve 27,8%), isto significa que o PS está, agora, apenas com cinco pontos de vantagem face aos sociais-democratas.

Não é fácil, pela sondagem, encontrar as razões para a descida dos socialistas — que, embora ainda dentro da margem de erro (de 3,5%), é a mais significativa deste inquérito. Isto porque António Costa mantém a sua popularidade estável desde há um ano, a estratégia orçamental de conseguir um excedente sai validada (ver texto nestas páginas) e até a avaliação ao Governo melhorou: 57% dizem que está a fazer um trabalho bom ou muito bom, contra 34% que o veem de forma negativa. No balanço, são mais sete pontos positivos do que antes das legislativas (10 se contarmos com a descida das respostas negativas).

O PS não cresce, mas os inquiridos aprovam o excedente orçamental e a situação económica

Os dados da aprovação do Governo são tão positivos que ultrapassam o somatório das intenções de voto dos partidos que permitiram a aprovação do Orçamento de 2020. Dito de outra forma: PS, Bloco, PCP, PAN e Joacine (Livre), juntos, teriam 54%, menos três pontos do que a aprovação do trabalho do Executivo. O que pode encontrar explicação por este outro dado: o Governo merece a avaliação positiva de 85% dos simpatizantes do PS, mas também de 25% dos simpatizantes do PSD, um em cada quatro dos inquiridos. Mesmo assim, o facto é este: a aprovação do Governo, neste caso, não se traduz em intenção de votos para o PS.

MESES DIFÍCEIS, OUTROS PELA FRENTE

A verdade é que, nestes quatro meses depois das legislativas, o Governo não tem conseguido dominar a agenda política: Costa anunciou a intenção de fazer um grande acordo de concertação sobre a subida dos salários, mas as negociações arrastam-se na concertação social sem avanços concretos; a agenda legislativa do Executivo praticamente parou; as centrais sindicais, UGT e CGTP, reforçaram a luta e fizeram novas greves; a ‘geringonça’ ficou sem papel passado e o primeiro Orçamento da legislatura acabou por ter um susto de última hora, com PSD e Bloco a unirem forças para tentar forçar uma baixa do IVA da luz. Não conseguiram, mas o aviso ficou.

Pela frente, Costa pode ter mais um problema: a saída pré-anunciada de Mário Centeno do Governo, um ministro com índices de popularidade e aprovação que ultrapassam, até, os dos líderes partidários na oposição. Se o PS cai com Centeno, como será sem ele?

PSD RESISTE, CHEGA SOBE, DIREITA LONGE

Visto assim, parecem boas notícias para Rui Rio — cuja reeleição em diretas no PSD coincidiu com o trabalho de campo deste inquérito. Mas, na verdade, se as legislativas fossem hoje Rui Rio estaria muito longe de poder governar. É que o PSD fica estável nos 28% que conseguiu em outubro e, somadas as intenções de voto, a direita consegue apenas 40%. O cenário é pior ainda quando quem ganha força neste inquérito é o Chega — que, no congresso do PSD, sobretudo depois de um discurso do vice-presidente Nuno Morais Sarmento, surgiu como um aliado possível caso seja preciso uma maioria parlamentar.

Mas este é mesmo o indicador que mais muda nestes quatro meses: de acordo com o inquérito ISCTE/ICS, o partido de André Ventura é já o quinto partido com mais intenções de voto atingindo os 6%, muito acima dos 1,3% das legislativas, acima do CDS (que se mantém nos 4%) e até do PAN (que se mantém nos 3% com que elegeu quatro deputados).

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

O juizão

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/02/2020)

Daniel Oliveira

Quando o juiz Ivo Rosa ficou com a operação Marquês, duas juízas substituiriam-no nos muitos processos que ele acompanhava. Noto que foram precisas duas magistradas, tal a complexidade e quantidade de trabalho. Numa decisão incompreensível, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) determinou, na semana passada, dispensar as duas juízas e entregar tudo ao juiz Carlos Alexandre, que passa a acumular todos os grandes processos do país, tirando a Operação Marquês. Cinco processos com mais de 260 arguidos.

São apresentadas duas razões para esta decisão: a complexidade dos processos exigirem especialização e as juízas serem necessárias noutros lugares. Que a complexidade dos processos seja argumento para concentrar numa só pessoa o que nem um conjunto de magistrados dedicados a cada um deles conseguiria resolver apenas nos diz que há quem acredite que superjuízes têm superpoderes. Uma fé que uma cuidadosa análise aos resultados finais de muitos processos dirigidos por Carlos Alexandre rapidamente dissiparia. Quanto ao segundo argumento, uma juíza é recambiada para Santarém. Parece que é mais precisa lá do que no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), onde se acompanham os processos mais graves de todo o país. A outra vai para lado nenhum. Na decisão do CSM, “comunica-se a urgência” da juíza “ser oportunamente colocada no âmbito do quadro complementar”. Penso que estamos conversados sobre a racionalidade de tudo isto.

Se a existência de um “ticão” sempre levantou muitas dúvidas, até constitucionais, quanto à concentração de poderes em poucos juízes, a inevitável exclusividade de Ivo Rosa no caso da Operação Marquês e a consequente concentração de todos os processos num só “juizão” levanta problemas gravíssimos. Para quem acredita na Justiça e não em justiceiros, e para quem sabe que a concentração de poder é sempre um convite ao abuso – seja quem for a pessoa que o concentra – isto salta à vista. Aparentemente, o CSM não vê qualquer problema. Até faz por agravar o que já era mau. Sem que qualquer argumento o justifique. Pelo contrário: dispensa uma juíza disponível e justifica a concentração de trabalho numa só pessoa com a complexidade dos processos.

O Conselho Superior da Magistratura dispensou duas juízas do “ticão” e entregou tudo a Carlos Alexandre. Uma tripla irresponsabilidade: concentra-se um poder inaudito num só juiz; a única forma de os processos morrerem é serem mal acompanhados, pondo em risco condenações finais; e os prazos escorregarão ainda mais, mantendo em liberdade pessoas perigosas

Estamos a falar, no conjunto dos processos, de centenas de testemunhas. Nem que o juiz Carlos Alexandre trabalhasse 24 horas por dia conseguiria sequer ler a totalidade de um dos processos. Entre estes processos está o caso das rendas da EDP (que envolve Manuel Pinho e António Mexia) e dos Hells Angels, relacionado com criminalidade violenta e gravíssima. Neste caso, já foram libertados 40 arguidos, em novembro do ano passado, por incumprimento dos prazos. Tendo em conta o perfil mediático de Carlos Alexandre, não é difícil prever que se vá concentrar na EDP, onde estão pessoas famosas. O que quer dizer que o caso dos Hells Angels e todos os outros que estão no “ticão” vão escorregar ainda mais. E isto parece não preocupar o Conselho Superior da Magistratura.

Não sei o que leva o CSM a decidir concentrar todos os processos que estão no TCIC, com exceção da Operação Marquês, num só juiz. Nem as razões que levam qualquer juiz a aceitá-lo, sabendo que é humanamente impossível cumprir a função que lhe é confiada. Há quem dê mais importância ao poder que concentra do que à qualidade do que produz. Ou quem ache que o papel do juiz de instrução é dizer que sim a todos os desejos do Ministério Público, com os resultados que se conhecem no fim. Sei que se trata de uma tripla irresponsabilidade: porque se concentra um poder inaudito num só juiz; porque a única forma dos processos não morrerem é serem mal acompanhados, pondo em risco condenações finais; e porque os prazos escorregarão ainda mais, mantendo em liberdade pessoas perigosas e pondo a segurança pública em risco.