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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Desgraças e cheques em branco

Posted: 02 Aug 2020 03:38 AM PDT

«Nunca perderei a esperança de que é possível e vale a pena lutar por um Mundo melhor na certeza de se poderem, sempre, encontrar dimensões novas para a realização do ser humano. Contudo, evidenciam-se hoje demasiadas negações coletivas geradoras de medos.

O assassinato a sangue-frio do ator Bruno Candé e os escabrosos comentários justificativos desse ato hediondo mostram-nos racismo inculcado na sociedade portuguesa. Ora, o racismo e outras manifestações de intolerância e violência estão a armadilhar a vivência democrática das sociedades e o alarme tem de disparar quando, poucos dias depois, Rui Rio admite que se o Chega mudar de discurso (lavar a cara) até pode entrar no diálogo para um projeto de Oposição ou governação do país.

A desgraça maior é observarmos, simultaneamente: i) o poder desmedido e opaco com que os potentados tecnológicos Amazon, Apple, Facebook e Google se apresentaram ao Senado Americano; ii) a especulação financeira desencadeada pela "corrida às vacinas" contra a covid-19; iii) a invocação do combate à pandemia para se coartarem liberdades; iv) a forma indecorosa como certos países europeus se tornam frugais e credibilizam as casas de receção do roubo que são os offshore; v) a mais que suspeita gestão fraudulenta do Novo Banco, que infelizmente não é uma situação excecional - nem interna nem externa - mas sim o espelho do que se passa com o poder do setor financeiro e o uso subversivo de tecnologias; vi) a brutal queda do PIB (Produto Interno Bruto) e tantas empresas em coma. Cheira forte a um "novo" normal duro e perigoso, carregado de desemprego, de exploração e desigualdades, de pobreza, de profundos problemas sociais.

É difícil acreditar na legalidade das transações do Novo Banco quando a principal figura do fundo abutre que comprou as 13 mil casas, terrenos e outros bens imobiliários envolvidos no negócio veio da Lone Star. E o que é a legalidade? Como há muitos anos digo, o roubo "legal" é, nas sociedades atuais, incomensuravelmente maior que o roubo na plena acessão da palavra. Entretanto, quando se constata que negócios deste tipo são "legais", o problema em vez de se atenuar, agrava-se.

Fazem falta regulação e fiscalização sérias, mas os sistemas montados são autênticas fraudes. Como é possível, depois de tantos negócios ruinosos, compadrio e corrupção a marcarem o caminho da Banca, ter acontecido a privatização deste banco e ter sido assinado um contrato que permite ao comprador assaltá-lo por dentro e remeter a fatura das perdas para os bolsos dos portugueses? O que é isto? Talvez uma mistura de cegueira política, imprudência, impunidade e estupidez geradas pela "moderação" que marca o comportamento dos autointitulados cidadãos honrados que gerem os diversos poderes instalados.

A 3 de fevereiro de 2017 a Assembleia da República rejeitou, com votos contra do CDS, do PSD e do PS, projetos de resolução do BE e do PCP que se opunham à venda do banco à Lone Star e propunham a sua nacionalização. Muitos dos agora surpreendidos e indignados estão apenas a colher o que semearam. E o presidente da República, ou o primeiro-ministro não podem falar do assunto como se dispusessem apenas da informação do comum dos cidadãos. Não lhes podemos admitir hipocrisia política ou desresponsabilização.»

Manuel Carvalho da Silva

domingo, 2 de agosto de 2020

Sacrificar tudo para combater um vírus

Posted: 01 Aug 2020 03:46 AM PDT

«Entrego à quinta a crónica de sábado. Esta semana, não foi exceção e, de acordo com o que se sabe hoje (quinta-feira), amanhã (sexta) o INE divulgará as suas estimativas sobre a evolução do PIB no segundo trimestre do ano. É provável que o leitor saiba mais do que eu. De todo o modo, a não ser que haja uma boa surpresa, o PIB deu um tombo de todo o tamanho. Provavelmente entre os 12 e os 15%.

Já no trimestre anterior, de acordo com as estimativas do INE, o PIB tinha caído 2,3% relativamente ao primeiro trimestre de 2019. O que assusta é que toda a quebra se deveu a março. Não temos dados mensais para o PIB, mas temos outros e muitos mostram que, nos primeiros dois meses do ano, a economia funcionava bem. Por exemplo, as exportações de bens, em janeiro, tinham aumentado 4% face a janeiro do ano anterior. Em fevereiro, tinham aumentado ligeiramente. Março foi o primeiro mês de queda. Caiu 13%. Olhando para o índice de horas trabalhadas na indústria, observamos um aumento de 10% em janeiro, em fevereiro uma estagnação e, no mês seguinte, uma quebra de 4%.

O mau mês de março foi suficiente para levar a uma quebra no PIB trimestral superior a 2%. No segundo trimestre, teremos, não um mau mês, mas sim três meses péssimos. Para se ficar com uma ideia, as exportações de bens, que em março tinham caído 13%, caíram 40% em abril e maio. Fala-se muito na quebra do turismo, mas nem procurei esses dados para não me deprimir mais. Os números do PIB para o segundo trimestre, que, repito, não conheço, deverão alertar-nos para a necessidade de a economia recuperar. Caso contrário, será uma catástrofe. Mas, dada a forma como discutimos o combate à covid, parece-me que não temos essa noção.

Desde março, o nosso conhecimento evoluiu em diversos sentidos: sabemos que a doença é menos grave do que se temia, somos mais eficazes no seu tratamento e as consequências económicas do confinamento são muito mais devastadoras do que as antecipadas. Bem sei que agora todos pensam que desde o início sabiam que ia ser uma catástrofe, mas não é verdade. Quando, em meados de março, num programa de TV, eu disse que, na melhor das hipóteses, o PIB de 2020 cairia 5%, a maioria das reações que recebi era a de que estava a ser catastrofista. Quando, a 21 de março, o Expresso fez uma sondagem a 10 economistas, daqueles muito famosos, um deles previu um crescimento de 1% para este ano.

Face a nova informação, é razoável rever as nossas políticas. Se o vírus, afinal, é mais manso, se a terapêutica melhorou e se o confinamento é desastroso, a atitude racional é não reagir de forma igualmente draconiana caso haja uma nova vaga.

Infelizmente, racionalidade e histeria são incompatíveis. E, neste momento, observamos essa histeria em vários domínios. No terceiro período, que agora acabou, dez das escolas reabertas fecharam por causa de alguns casos de covid. O que é extraordinário é que bastava haver um caso que viesse de fora da escola para a encerrar. Uma que fechou sem haver nenhum caso. Simplesmente, a histeria era tanta que um surto num lar de idosos levou ao fecho da escola e das creches dessa região. E, tendo o líder do principal sindicato de professores a gritar nas ruas que os professores não serão “carne para covid”, não é de esperar que haja mais razoabilidade no próximo ano.

Na Madeira, obrigam as pessoas a andar de máscara mesmo na rua. Em Leiria, criou-se a polícia anti-covid para patrulhar o concelho, dizendo a toda a gente para usar máscara na rua. Isto em pleno Verão. Como diz o meu irmão, chegaremos ao Outono com cara de cu.

Por todo o país, os parques infantis continuam fechados. As discotecas vão fechar às 8h da noite — eu nem sabia que abriam antes disso, para ser sincero. Hospitais públicos e privados funcionam a meio gás, alguns nem isso, por causa da covid. Para garantir que os hospitais não deixam de funcionar por causa do coronavírus, impede-se que os hospitais funcionem. É um curto-circuito na lógica.

Tudo isto é desproporcional. Era bom que nos convencêssemos de que a covid não desaparecerá. Vai haver novos casos e não podemos entrar em histeria de cada vez que forem reportados. O medo do desconhecido é real, mas compreendam que a reação das democracias a uma crise económica e social como a que estamos a provocar também é desconhecida. Falar em quebras do PIB a rondar os 15% é falar do risco de, em breve, haver milhares de portugueses a passar fome. Tenham noção.

Fico com a ideia de que os fundos da União Europeia têm tido um efeito péssimo na discussão pública. Parece que a recuperação económica dependerá desses fundos. Lamento, mas não. A recuperação económica dependerá de voltarmos a trabalhar e a produzir. Tudo o resto é paliativo.»

Luís Aguiar-Conraria

Não há bancos bons

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 01/08/2020)

Daniel Oliveira

Em pleno boom imobiliário, o Novo Banco vendeu 5552 imóveis e 8719 frações por quase metade do preço. Mesmo sabendo que este tipo de venda se afasta sempre da avaliação inicial, o desconto de 42% é exagerado. Na altura, Helena Roseta explicou a falta que aquelas casas àquele preço fariam para políticas de habitação de um Estado que despejou milhares de milhões no BES. O dinheiro que perdeu com a liquidação total de bens quando o imobiliário estava em alta será em grande parte coberto pelo Fundo de Resolução. Ou seja, por nós. O resto, emprestou o Novo Banco a quem comprou. E assim transformou 13 mil problemas em crédito fresco. Pode? Desde que o comprador não esteja ligado à Lone Star, sim. Não está? Não sabemos. Como quem lhe comprou foi a Anchorage, uma empresa com um fundo sediado nas Ilhas Caimão, com registo no Luxemburgo e com donos por nós desconhecidos, não foi logo divulgado. O Banco de Portugal, que tem como única função confiar na banca, confiou que não. Quando o negócio se fez, um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Depois foi contratado para diretor da Anchorage. Em Portugal, o negócio foi executado por cinco imobiliárias com sede na loja 19 do Shopping Columbia, compradas pela filial luxemburguesa da Anchorage. Com um historial de €200 de lucro fizeram, de uma assentada, o segundo maior negócio ibérico dos últimos anos. A expressão “cheira a esturro” usa-se para coisas menos evidentes.

Nada do que nos foi contado pelo jornalista Paulo Pena é ilegal. A fuga aos impostos no Luxemburgo, anónimos a comprar 13 mil casas, o banco que empresta dinheiro ao seu comprador, o Estado que banca um desconto de 42% em tempo de boom imobiliário... tudo seria crime se fosse feito por cidadãos que têm de provar e pagar para comprar uma casa. Com eles não é. Não estou a falar dos poderosos. Isso é conversa para quem procura inimigos fáceis. Já quase não há poderosos desses. Há um poder sem limites de uma massa anónima a que chamamos finança, constituída por meia dúzia de fundos gigantescos. Foi esse poder que transformou o crime em legalidade, tecendo uma malha que torna risível qualquer regulação. Que usa a chantagem para transformar o uso decente de recursos públicos num ato revolucionário. Que estoira o dinheiro da economia e dos impostos no casino.

Ricardo Salgado foi um pilha-galinhas vindo do tempo em que a banca tinha rostos e famílias. Teve azar e foi apanhado a fazer o que se faz quando tudo corre mal. Estou a generalizar, dizendo que a banca se dedica hoje ao crime? Estou.

Não há bancos bons. E não é porque os banqueiros sejam maus. É porque permitimos que se erguessem gigantes opacos impossíveis de controlar. E sem controlo e limites qualquer um se torna monstro. Henry Ford terá dito que se as pessoas soubessem como funciona a banca haveria uma revolução.

Sabemo-lo no bolso, e a revolução não chegou. Proponho uma: assumir que o que a lei não pode controlar devem os Estados possuir. Parece excessivo? A léguas da náusea deste assalto diário. Podemos culpar Salgado, a UE, o Banco de Portugal, Carlos Costa, Centeno, Passos Coelho ou António Costa. Mas a maior ingenuidade é a de quem acredita que o BES pode não repetir-se. Ele nunca deixou de acontecer.

sábado, 1 de agosto de 2020

A corte na lama

Posted: 31 Jul 2020 03:02 AM PDT

@Pedro Vieira

«Dois anos depois, o PSD volta a abrir os braços a André Ventura (AV). Não deixa de ser curioso que dois líderes sociais-democratas, consecutivamente, sejam os maiores responsáveis pela normalização irresponsável de um projecto político pessoal absolutamente demagógico, maniqueísta, mentiroso e populista, tantas vezes racista, odioso e xenófobo. É perturbador que a única coisa que parece aproximar Passos Coelho de Rui Rio seja esta tendência conjunta para normalizar protofascistas num ápice.

No momento em que AV procura branquear o assassinato de Bruno Candé, recorrendo a mais um rol de declarações inadmissíveis, insinuações abjectas e divulgação de posts falsos, Rui Rio apela a uma eventual-fofura-futura do Chega (CH). "Se o CH evoluir para uma posição mais moderada, eu penso que as coisas se podem entender", afirma Rio à RTP3. Ficamos a saber que é possível ver Rui Rio a conversar com um rebento do PSD de Passos, o delfim que o ex-líder do PSD abraçava na campanha autárquica de Loures em 2017, desvalorizando as declarações xenófobas e racistas que proferira contra a comunidade cigana e que levaram o CDS a retirar o apoio à candidatura, abandonando a coligação.

Ao admitir uma aliança com AV, Rui Rio comete o seu maior pecado político desde que assumiu a liderança do PSD, admitindo algo que só o marialva-CDS de Francisco Rodrigues dos Santos foi capaz de afirmar como possível. PSD e CDS, juntos na insensatez. Rui Rio encheu-se de lama. São agora mais eloquentes e translúcidos à "firmeza política" de Rui Rio, proferidos por AV há um par de meses. Projectando uma aproximação no caso do CH se conseguir moderar, Rio não deixou de ouvir a resposta certa de um porco na luta: o CH só aceitará conversar com um PSD que não seja a dama de honor do PS. Foi para esta corte na lama que o PSD de Rui Rio se deixou arrastar. Se há coisa que Rui Rio devia ter aprendido com a sua liderança-minada no PSD é que só pode contar consigo. Ao contrário do que diz, uma eventual aliança não depende do CH, depende sempre do PSD. E quem se dispõe a passar um pano sobre o passado recente e sobre o presente evidente só pode estar a querer limpar a realidade com um pano encharcado nas mãos. Quando alguns continuam a criticar a Esquerda por tornar o CH visível através da denúncia permanente da sua ideologia de extrema-direita de pacotilha, o verdadeiro palco que é dado a AV continua a vir desta Direita que não entende que só uma cerca sanitária pode impedir, e já vai tarde, o crescimento de um populismo tão abjecto.»

Miguel Guedes

Rui Rio, o homem sério

por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 31/07/2020)

Foi sempre a imagem de marca de Rui Rio. “É um homem sério “, dizia- se (e diz-se) do atual líder do PSD em tom grave, como que a sublinhar uma característica distinta que uniria todos os olhares. Quem não vota PSD sempre diz “mas é um homem sério, um homem honesto”.

Confesso que, não duvidando da seriedade e da honestidade de Rui Rio, nunca percebi a eleição destas duas características como especiais do atual líder do PSD, assim como qualquer coisa de muito bom, que o distingue e que nos deve deixar felizes.

Afinal, ser sério e honesto parece-me ser coisa de cumprir os mínimos e nunca percebi por que raio se diz tanto da seriedade de Rui Rio, como se os outros líderes partidários não merecessem a adjectivação. De António Costa a Francisco Rodrigues dos Santos, há razões para duvidar da seriedade ou da honestidade de algum ou de alguma líder partidária?

Dito isto, para além da “enorme seriedade“ de Rui Rio, o que resta da sua prestação recente para a República? Quem tanto apregoa a verticalidade do líder, basta-se com isso? Não se aflige com o seu populismo programático, devidamente delegado nos novíssimos soldados parlamentares prontos para explicarem à República que o Regime está podre e que o Parlamento precisa dessa coisa, a sociedade civil, para se purificar?

É que Rui Rio, o homem sério, detesta o Parlamento e, em pouco tempo, propôs dar cabo da comissão da transparência, instalando cidadãos “de reconhecido mérito” no Parlamento, sem ética controlada, claro, em número superior ao dos nefastos deputados, para tratarem do seu estatuto. Assim, numa penada, Rui Rio explicou que precisamos de retirar aos deputados a conquista da democracia liberal e dar a uns ilustres cidadãos o poder de definirem o estatuto de gente eleita.

Um homem sério.

Esta abertura do Parlamento à sociedade civil também aconteceria nas comissões parlamentares de inquérito, com carácter permanente, aberração que foi defendida com a eloquência do Chega: “mas afinal quem é que tem medo do povo?”.

Um homem sério.

Rui Rio detesta ser Deputado, não o esconde, e convenceu Costa da bondade de acabar com os debates quinzenais, que passarão a ser de dois em dois meses. Aqui, com o aval de Costa e com os votos dos deputados do PSD e do PS que acharam por bem fazer isto à democracia representativa (e à própria Política), conseguiu a sua vitória nesta onda anti-parlamentar.

Entretanto o homem sério veio admitir uma aproximação ao Chega, se este evoluir e tal. Não sei que evolução será necessária.

O homem sério saberá.

Afinal é o que dizem de si.