Translate

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Juan Carlos e o retrato da monarquia

Posted: 05 Aug 2020 03:46 AM PDT

«Os chineses têm uma teoria a que chamam de ciclos dinásticos. Simplificadamente, reza assim: o imperador que estabelece a dinastia é capaz e virtuoso e melhora a vida dos súbditos. Geralmente é um imperador guerreiro (esmaga militarmente a dinastia cessante), sucedido por um filho erudito, mais preocupado com as artes e a burocracia governativa, igualmente virtuoso e, nos termos confucianos, um homem nobre (de carácter). Porém, com o passar das gerações, os imperadores vão amolecendo, ganhando gosto pela boa vida do palácio e das concubinas, secundarizando o governo do império. Até que se tornam tão viciados que as catástrofes começam a acontecer. As obras de irrigação degradam-se por falta de manutenção, resultando em cheias ou secas, ambas destruindo colheitas e gerando fome. Terramotos também marcam presença, sinalizando que a dinastia perdeu o Mandato do Céu. Os súbditos podem sentir-se legitimados em substituí-la por outra dinastia.

Mas há dinastias mais pragmáticas. Chegam ao estado de decadência moral mais rapidamente. No caso espanhol, num só reinado. O rei Juan Carlos passou de garante da transição espanhola do franquismo para a democracia, e uma das figuras que fez abortar o golpe fascista de 23 de fevereiro, para um agente investigado por corrupção. Estabelecendo a fortuna familiar (até aí inexistente), suspeita-se, através de tráficos de influências pelos quais foi magnificamente pago. De personalidade incontestada e venerada em Espanha – muitos diziam-se não monárquicos mas juancarlistas –, ganhou reputação de vulgar vendilhão e corrupto. Esta semana exilou-se para não perigar a monarquia espanhola deixando-se avistar por Espanha.

Em boa verdade, nada do que Juan Carlos fez foi novidade nos círculos reais. Podemos dizer que seguiu uma tradição bem estabelecida das famílias reais de se enriquecerem, e aos seus, fazendo uso do poder político que detinham. O azar de Juan Carlos foi viver numa era em que o método de amealhar dos seus antecessores é malvisto.

Em todo o caso, a família real espanhola é um ótimo exemplo de como a suposta probidade moral da monarquia – que a justifica, em oposição à necessidade de compromissos políticos e, tantas vezes, éticos de quem precisa de ganhar eleições – é ilusória. A filha mais nova de Juan Carlos escapou a acusações e julgamentos (provavelmente por benevolência e respeito pela sua posição), no entanto o marido cumpre pena de prisão.

Não espanta. Olha-se para a História e uma das realidades mais salientes é a quantidade de patifórios, cobardes, incapazes (não raro em estádios de idiotia clínica) que as monarquias produziram. As questões do vil metal, de resto, são sempre determinantes para estas almas supostamente desligadas da materialidade e somente preocupadas com conceitos etéreos como o dever e a dignidade do país. Vejamos um episódio que envolveu Portugal. Eduardo VIII, em fuga dos nazis que ocuparam Paris e temporariamente em Cascais, enquanto pesava deixar-se raptar pelos alemães (com quem simpatizava e que lhe guardaram com enlevo a casa parisiense) para servir de marionete aos inimigos dos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial ou chantagear a sua família para o receberem de volta em Inglaterra, decidiu manter-se afastado do seu país pela razão mais prosaica: um enviado de Churchill a Lisboa informou-o da quantidade de impostos que teria de pagar se regressasse.

O Rei Alberto II da Bélgica possuía tal retidão moral que se recusou aceitar a paternidade e a sustentar uma sua filha de uma ligação não conjugal. Foi obrigado ao reconhecimento por um teste de ADN, qual playboy sem escrúpulos. O príncipe André do Reino Unido participou no esquema de exploração sexual de adolescentes de Jeffrey Epstein. No lado oposto, é difícil apontar um caso de génio ou talento excecional nas casas reais. Nos exemplos mais virtuosos, que também existem, são personagens sensaboronas sensíveis ao sentido de dever.

Esta falta de têmpera é resultado da endogamia das casas reais que torna o sangue fraco, mas também da sensação de casta intocável, de distância incontestada dos mortais comuns que é promovida nas famílias reais. Na carta que Juan Carlos escreveu ao filho, atual rei, informando-o de que iria residir fora de Espanha, refere investigações sobre a sua vida privada. Fazendo lembrar as desculpas dos corruptos mais escancarados, que igualmente se escudam nos dinheiros da sua vida privada para se esquivarem de dar explicações da forma como abusam da sua posição.

Juan Carlos e a família real espanhola – incluindo Filipe VI, conhecido por ser bem-parecido mas particularmente pouco brilhante – tornaram-se num exemplo da falibilidade da monarquia. Num país onde rei ou rainha poderiam trazer um efetivo benefício – sendo o tal símbolo unificador e de perenidade e estabilidade que se lhe aponta como razão de existência, o substituto de espírito nacional num país com várias línguas e regiões que em tempos passados se viam como inimigas e separadas –, Juan Carlos e a sua família falharam e expuseram a sua inutilidade.

O poder simbólico da monarquia já não é suficiente para manter em união aparentemente amistosa zonas que se querem separar. (A Catalunha acena-nos.) Questões como a integração económica das diferentes regiões ou a pertença à União Europeia e ao euro provavelmente pesam mais que partilharem o mesmo chefe de Estado hereditário. Vê-se o mesmo efeito na Escócia, com o “Brexit” incendiando os ímpetos independentistas, malgrado a rainha Isabel II.

Há tentativas das monarquias se modernizarem e humanizarem. Os casamentos românticos dos herdeiros dos tronos europeus com plebeias (e, no caso sueco, plebeu) atraentes, substituindo casamentos de conveniência por vidas familiares mais recompensadoras. Uma (pouco) maior parcimónia no uso do dinheiro dos impostos. Porém, permanece o paradoxo: se são uma família normal, não merecem privilégio hereditário; se são diferentes, então têm de ser incansavelmente perfeitos – e ninguém é.

Por muito que alguns membros das famílias reais se constituam interessantes espécimes da natureza humana, são falíveis, entediantes, egoístas, com defeitos de carácter – tal como os demais. Ora para termos chefes de Estado corruptos e imorais não é necessária a manutenção de riquezas e honrarias hereditárias. Com eleições e numa república, o consulado destas personagens é sempre temporário. É uma vantagem.»

Maria João Marques

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A economia do medo e suas consequências

por estatuadesal

(Eugénio Rosa, in Resistir, 01/08/2020)

– Aumento significativo do desemprego
– Redução do apoio aos desempregados
– Queda de 16,5% no PIB do 2º trimestre
– Uma opinião contra a corrente

O INE acabou de divulgar os dados da economia portuguesa referentes ao 2º trimestre de 2020, tendo-se verificado uma quebra no PIB (riqueza produzida no país) de 14,1% quando comparado com a do 1º trimestre deste ano, e de 16,5% quando comparado com o 2º Trimestre de 2019 (menos 8.760 milhões € de riqueza não criada só num trimestre, e menos 3.200 milhões € de remuneração não recebidas pelos trabalhadores). E logo se levantou um coro de surpresas e de críticas quer na comunicação social quer por parte de dirigentes políticos por causa do descalabro económico.

As perguntas que surgem de imediato para reflexão são as seguintes: O que poderia acontecer de diferente quando se fecham empresas e estabelecimentos, se paralisa a economia e se manda para casa quase dois milhões de trabalhadores? O que poderia acontecer de diferente quando se espalha e difunde sem um mínimo de racionalidade e de equilíbrio o medo e o pânico? Quando se assiste ao massacre diário pelos media da população confinada em casa, de manhã à noite, com noticias de mortes e de milhares de infetados, como se não existissem mais doenças e mais mortes em Portugal que, com falta de assistência médica, se multiplicaram, mas de que os media não falam e logo não existem? E quando os números de mortes em Portugal não eram suficientes para aumentar o medo juntava-se os de outros países, com muito mais população? O que poderia acontecer de diferente quando se trata uma crise de saúde desta dimensão sem um mínimo de equilíbrio e de racionalidade? O que estava em jogo era demasiadamente importante e sério, e com consequências dramáticas em todas as áreas da vida dos portugueses, que merecia ter sido tratada de uma forma mais racional, rigorosa, equilibrada e planeada, e não deixada às "caixas" chocantes da comunicação social nem às declarações contraditórias dos "especialistas" e dos responsáveis da Direção Geral da Saúde.

Embora Bernard-Henry Lévy seja um filosofo francês com quem não me identifico, ouso transcrever algumas das suas afirmações feitas numa entrevista recente ao semanário Expresso, correndo o risco de desagradar alguns leitores, pois obrigam à reflexão por serem diferentes das ideias dominantes. Afirmou ele: "acho ignóbil" que se ponha a questão "entre saúde e economia. "A economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa máxima antiga dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, o desemprego leva à miséria, e a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida".

Em Portugal tudo isto ganhou uma gravidade maior porque para o combate ao COVID-19, da forma como foi feito, a assistência medica a outras doenças foi reduzida drasticamente, como os números divulgados sobre o numero de consultas, de exames e de operações que se deixaram de fazer provam, o que causou um aumento significativo de mortes que, quando forem divulgadas, chocarão todos os portugueses. E BHL acrescentou: "o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons". Na economia, afirmamos nós, os efeitos são nefastos e dramáticos como os dados do INE já revelam.

Estamos agora com um pais – Portugal – em que o medo e o pânico se alastrou, em que os portugueses têm medo de sair de casa e de regressar mesmo com a segurança possível ao trabalho e em que o teletrabalho, isolado e individualizado na maioria dos casos é trabalho desorganizado (segundo BHL, "o trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do publico e privado, a ideia que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões"). A Administração Pública é um exemplo de improvisação e de incapacidade do governo para dar orientações claras, deixando tudo ao arbítrio das chefias. O teletrabalho tornou-se a panaceia e se criou a ilusão de que o país poderá funcionar e recuperar desta forma. Mas não funciona nem é verdade que recuperará –. os dados do INE acerca do PIB já provam isso

A REDUÇÃO DA RIQUEZA CRIADA NO PAÍS NO 2º TRIMESTRE DE 2020 É DE 16,5%
DESTRUIÇÃO CRESCENTE DO APARELHO PRODUTIVO NACIONAL E DO EMPREGO

Uma das ilusões que o governo e muitos jornalistas estão a difundir é que a crise é passageira (para o ministro Siza Vieira: "já atingimos o pico da crise") e que o país após a pandemia tem o seu aparelho produtivo intacto (diretor do ECO) e rapidamente recuperará (seria uma saída em V o que não é verdade, talvez em U ou W longos).

Ora tudo isso é uma ilusão, quando não mesmo uma mentira. Com o medo que se instalou na sociedade portuguesa (e o medo tem um efeito enorme na economia pois leva a quebra significativa da produção e do consumo), com a quebra generalizada de rendimentos dos trabalhadores (lay-off, horários reduzidos, e desemprego) e com o fecho de mercados externos, é evidente que a crise vai ser prolongada e vai causar uma enorme destruição de empresas (fecho) que não se aguentarão por falta de vendas (alguns chamam a isso "destruição criativa" pois só se aguentarão as empresas mais fortes) e também uma enorme destruição de emprego que levará muito tempo a recuperar e muitos trabalhadores serão excluídos definitivamente do mercado de trabalho e muitas empresas desaparecerão.

Não compreender isto é estar cego, não tomar medidas imediatas para reativar a economia é suicídio. O aumento do desemprego e o fecho definitivo de muitas empresas que já se verificou é apenas o sinal de uma crise social e económica que não sabemos quando terminará e cuja recuperação será mais difícil devido à desorganização que está a causar em toda a Administração Pública. Esta, um instrumento vital no combate à crise, antes da crise já enfrentava graves deficiências e problemas que a crise só multiplicou (são necessário objetivos claros, decisões rápidas, medidas implementadas urgentemente, investimento, nomeadamente público, elevado, tudo isto era necessário por parte do Estado para vencer a crise mas nada disto está a acontecer nem vai acontecer a breve trecho).

Os dados da evolução do desemprego real em Portugal do INE (quadro 1), que é apenas o sinal inicial da crise que vamos enfrentar, confirmam a gravidade da situação que se procura iludir.

Quadro 1.

Entre março e junho de 2020, em apenas três meses, o desemprego oficial aumentou em 4.100, mas o desemprego real subiu em 109.600, ou seja, em 26,7 vezes mais. E isto porque o INE não considera para cálculo do "desemprego oficial" todos os desempregados que no período em que fez o inquérito não procuraram emprego, apesar de serem trabalhadores no desemprego (os chamados "inativos disponíveis" que em junho de 2020 já somavam 305.000 quase tanto como desemprego oficial), que incluímos no cálculo do desemprego real, por serem verdadeiros desempregados. O desemprego real atingia, no fim de jun/2020, já 636.200 trabalhadores. O desemprego oficial do INE oculta à opinião pública o desemprego real. O número dos que estão a receber subsídio de desemprego é muito reduzido como mostra o gráfico 1 (Segurança Social).

Gráfico 1.

Em jun/2020, o número de trabalhadores desempregados já atingia 636.200, mas o número destes que recebiam subsidio de desemprego eram apenas 221.701. E entre maio-junho 2020 diminuiu em 3.652 apesar do número de desempregados ter aumentado nesse mês em 20.300. Somente 35 em cada 100 desempregados recebem subsídio de desemprego. E o subsídio médio de desemprego pago neste mês foi, segundo dados da Segurança Social apenas de 504,70€.

É a miséria que se está a alastrar no país perante a inação de um governo que nada faz de concreto para reativar a economia (só promete "bazucas" da UE que continuam sem disparar). Não é com lay-offs, com reduções de horários de trabalho e dos rendimentos dos trabalhadores, e moratórias que se consegue a recuperação. Isso só prolonga a agonia e torna o final muito mais doloroso e destrutivo.

O zoom dos imperadores

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 04/08/2020)

Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020.


Quando Bezos (Amazon), Cook (Apple), Zuckerberg (Facebook) e Pichai (Google) se sentaram nos seus gabinetes para um zoom com a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, no fim da semana passada, nem era a primeira vez que o faziam nem seria a mais difícil das suas audições. Mas o surpreendente é que demonstraram algum nervosismo. Trata-se dos gestores de quatro das empresas mais poderosas do mundo e, se os deputados norte-americanos tinham perguntas a fazer-lhes sobre a forma como estabelecem monopólios nos seus sectores de atividade, estariam relativamente tranquilos quanto à inconsequência das questões: aquele Parlamento não concebe a ideia de impor restrições que dividam os monopólios, ao contrário do que aconteceu há um século com maior companhia petrolífera.

Assim, durante cinco horas, os quatro executivos desembaraçaram-se, mesmo que com alguma atrapalhação, das inquietações dos deputados, que ficaram na mesma. Desviaram a conversa para o “perigo chinês”, tão ao gosto de Trump, e para um discurso meloso acerca do “sonho americano”, que justificaria todas as tropelias na destruição de concorrentes e no condicionamento dos consumidores. Os “imperadores”, como lhe chamou a imprensa norte-americana, limitaram-se a exibir o seu poder, deixando as respostas no ar.

O que não conseguem evitar é que a questão do poder dos monopólios de busca de conteúdos, de comunicação, de publicidade e de plataformas sociais se torne mais notória no debate sobre o presente e futuro da democracia. Por isso radicalizam as suas posições. O que os imperadores estão a tentar construir é um castelo inexpugnável e que, estando acima dos estados nacionais e de autoridades internacionais, defina as suas próprias regras. Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020. Mesmo que não seja suficiente para recuperar o terreno eleitoral já perdido pelo milionário, assim se conformarão os poderes mundiais deste século: o que decide são os mísseis, o comando financeiro e o controlo de massas pela internet.

Nesse contexto, a intervenção da Casa Branca contra a rede TikTok, da chinesa ByteDance, foi interpretada como uma vingança: adolescentes norte-americanos terão utilizado a rede para popularizar a ideia de um boicote artificioso ao comício de Trump em Tulsa em junho, pedindo centenas de milhares de bilhetes para deixarem a sala às moscas. O presidente quereria banir a rede, que é a que mais tem crescido nos EUA (já terá 100 milhões de utilizadores, um terço da população, sobretudo jovens) e teria inventado o estratagema de impor a sua compra por uma empresa norte-americana para a domesticar. Em todo o caso, parece que a justificação é exagerada, a direita republicana também já tem grande presença na rede (o hastag #conservative tem 1,9 mil milhões de visualizações). O resultado, apesar de tudo, foi que a Microsoft se ofereceu, teria assim um canal de entrada no mundo das redes sociais e fala-se de um preço de 50 mil milhões.

Ora, a perspetiva da venda desencadeou uma tempestade entre os trumpistas. O conselheiro para o comércio externo, Peter Navarro, recusa a operação e pede iniciativas para proibir a ação da Tiktok e do WeChat, da Tencent, outro gigante chinês. Ameaçou mesmo a Microsoft de ter de encerrar as suas operações da China, se fosse adiante com a compra. Num tuíte de sexta-feira, Trump apoiou-o e anunciou a proibição do negócio, mas voltou atrás esta semana depois de um telefonema de Satya Nadella, chefe da Microsoft. Se se concretizar nas próximas semanas, será a maior compra de empresa do ano, com um simbolismo evidente: quando todo o mundo mergulha em recessão, há um setor que cresce, o da comunicação.

A lógica parece ser a de que, se for um gigante tecnológico norte-americano a crescer, a soberania dos imperadores ficará reforçada e, no fim das contas, é isso mesmo que é determinante. Os presidentes passam pela Casa Branca mas quem fica são os poderes que tutelam a comunicação e o nosso dia a dia.

Obsessão patológica

Posted: 04 Aug 2020 03:54 AM PDT

«Nos últimos 21 anos, o Bloco de Esquerda desenvolveu aquilo a que Ricardo Salgado chamou uma "obsessão patológica" pelos negócios dos "donos de Portugal". Nestes anos, questionámos o poder de banqueiros, denunciámos o rentismo nas empresas privatizadas e fizemos as contas à porta giratória que unia (e une) PS e PSD aos interesses económicos. É essa intransigência na defesa do que é público que hoje dirigimos ao Novo Banco.

Todas as semanas, o tema regressa pelas piores razões. E, sim, "nós avisámos" sobre um desastre que só não anteviu quem não quis, e apresentámos proposta: nacionalizar o banco teria custos, mas garantia o controlo público ao serviço da economia.

No dia 27 de janeiro de 2017, propusemos a "manutenção da propriedade do Novo Banco na esfera pública", que foi rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 13 de abril, propusemos a condenação do Governo pela decisão de venda sem consulta ao Parlamento, rejeitada por PS/PSD. Nesse dia, deu entrada um projeto para a "Nacionalização do capital social do Novo Banco, SA", também rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 5 de maio, marcámos um debate para denunciar as condições de venda, a que se seguiram dezenas de artigos, propostas de orçamento, audições ao Banco de Portugal, ao Fundo de Resolução e à Administração do Novo Banco, pedidos de documentação e outros tantos debates e requerimentos.

A cada novo pedido de injeção de capital, o Novo Banco deu-nos razão. Com a determinação de uma auditoria à gestão privada do Novo Banco, o Governo (empurrado pelo Parlamento) escolheu o caminho mais longo. Mas foi um passo importante para dotar o Estado dos instrumentos que lhe permitam fazer frente ao fundo Lone Star. É por isso que defendemos que fosse impedida uma nova injeção sem conhecer os resultados dessa auditoria. Ao fazer a transferência de 850 milhões contra a palavra do primeiro-ministro, o Governo foi fraco perante os interesses do fundo financeiro internacional. E voltou a sê-lo ao aceitar o atraso da Deloitte, contratada por três milhões de euros para auditar o Novo Banco. O mesmo Governo que não quis esperar para pagar ao Lone Star aceitou o atraso imposto pela consultora financeira.

Seja o que for que a auditoria da Deloitte esconde, o país não tem que aceitar a espera. A consultora e o Governo devem informar o Parlamento de todas as conclusões preliminares, e o Governo, para dar-se ao respeito, deve cancelar o contrato. Depois, o Estado tem uma de duas opções para terminar uma auditoria que defenda o interesse público: ou a IGF ou Mário Centeno mostra o que vale no Banco de Portugal.

PS. Solidarizo-me com os milhares de pessoas que se juntaram para pedir justiça por Bruno Candé. O seu homicídio não será menorizado pelas distrações criadas por André Ventura para disfarçar as suas ligações às offshores e aos vistos gold da corrupção e o financiamento obscuro do seu partido. No Bloco, levamos o combate à corrupção tão a sério como o combate ao racismo.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 4 de agosto de 2020

É bom que nos preparemos

Posted: 03 Aug 2020 03:24 AM PDT

«Se há coisa que aprendemos à força com esta pandemia compressora foi não fazer planos de rigorosamente nada: a verdade à segunda-feira pode ser de uma enorme imprecisão à sexta.

Na forma como o vírus muda, nos alvos preferenciais do contágio, na evolução da nossa saúde e na dos nossos, no sentido das medidas restritivas e, sobretudo, nas projeções económicas. Neste particular, estamos a confundir com naturalidade os pessimistas com os catastrofistas e os otimistas com os ignaros. Só podia ser assim, porque em algum momento desta narrativa vertiginosa ambos estiveram certos e errados.

Viveremos, provavelmente até ao final do mês, numa espécie de bolha artificial. Com setembro, começaremos a conhecer a verdadeira dimensão da hecatombe. O brutal encolhimento do PIB no segundo trimestre do ano (que reflete o período do Grande Confinamento) foi quatro vezes pior do que o pior da troika. Recuámos vários anos em escassos meses. Acresce que a retoma está a ser mais tímida do que o esperado, o turismo exaspera (o Algarve viveu mesmo o pior julho de sempre), as exportações estão congeladas e, no princípio, no meio e no fim, ainda temos de lidar com a progressiva erosão da força modificadora do Estado. Não por acaso, ouvimos o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, reconhecer que, findos os apoios públicos mais significativos na manutenção artificial do tecido económico, vão aumentar as insolvências e os desempregados.

O Estado foi a salvação de uma fatia considerável do país, mas o oxigénio está a acabar. E vem aí o inverno. E com ele a gripe sazonal e a ameaça cada vez mais certa de uma segunda vaga da pandemia. Ora, para acorrer a tudo será preciso um investimento adicional no Serviço Nacional de Saúde. Mais despesa.

A aparente sensação de normalização que nos foi dada pelo desconfinamento não deve entorpecer o nosso sentido de compromisso. A batalha é de todos os dias, reflete-se nas pequenas ações, gestos e cuidados. Temos de estar preparados para o que aí vem mesmo que não saibamos o que nos espera. Porque se formos forçados a parar tudo outra vez, não tenho a certeza de que o queiramos, ou possamos, fazer. Se chegarmos a esse extremo, teremos certamente outro entendimento sobre o valor da doença e da cura.»

Pedro Ivo Carvalho