Translate

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Quando a extrema-direita governa: ao cuidado de Rui Rio

Posted: 11 Aug 2020 04:06 AM PDT

«A crise de 2008 expôs ao Mundo o falhanço do modelo económico neoliberal, seja na sua versão mais radical (nos EUA) ou mais "social" (na Europa). Doze anos depois, nada mudou a esse respeito.

Wall Street soma e segue e nos EUA as grandes empresas até pagam menos impostos; a Apple acabou de ganhar um processo em que era acusada de um esquema de evasão fiscal de 13 mil milhões através da Irlanda; nos offshores nem um arranhão. A banca sombra sobreviveu bem à crise que provocou, embora o mesmo não se possa dizer de tanta gente que perdeu a casa e o emprego.

Doze anos depois, o poder das elites económicas continua intacto mas, para isso, o Mundo teve de mudar muito. Em vários países, instituições democráticas, herdeiras do sofrimento e da luta contra os horrores da guerra e da ditadura, estão a ser desmanteladas para que tudo o resto permaneça igual. EUA, Brasil, Polónia, Hungria, Turquia, Áustria... sob diferentes capas e de diferentes formas, todos os pilares da democracia estão em causa, com sucessivas ameaças à liberdade de imprensa e à independência do poder judicial; com ataques ao Estado social e ordem de soltura às milícias mais violentas; com discursos de ódio e preconceito.

Não nos enganemos, estas extremas-direitas são tão eficazes em desviar as atenções do sistema económico podre como das suas próprias políticas corrompidas e cúmplices desse sistema - veja-se o passado de Trump, de Bolsonaro ou de André Ventura. E por isso estes partidos e personalidades têm sido tão úteis à Direita tradicional. É a aliança que lhes permite juntar poder em torno de um programa económico liberal, mesmo tendo de abdicar de alguns compromissos democráticos, e mesmo que tudo isso seja feito à custa de bodes expiatórios. Não interessa quais: nuns países são os árabes, noutros os ciganos; nuns são os refugiados, noutros os emigrantes; nuns são os negros, noutros os homossexuais. Alimentam-se bodes expiatórios que cheguem para pôr remediados contra pobres, pobres contra pobres, e pobres contra remediados. E assim se avança, numa macabra dança das cadeiras que a História já dançou vezes mais que suficientes para reconhecer.

Agora mesmo, na Polónia, ativistas contra a homofobia estão a ser presas arbitrariamente por um Governo que falhou todas as promessas de justiça e bem-estar mas que está a desmantelar a constituição democrática do país. Um Governo liderado por um partido que trata os refugiados de guerra como uma "praga", mas chegou ao poder dizendo querer combater a corrupção e jurando a pés juntos que não era de extrema-direita. É assim que a extrema direita Governa, sempre que consegue chegar ao poder com uma pequena ajuda dos seus amigos.»

Mariana Mortágua

A fuga do rei Juan Carlos

por estatuadesal

(Red Roja, in Resistir, 05/08/2020)

O abcesso de podridão explodiu e o borbón – ao qual chamam de emérito, para maior escárnio – escapou para assegurar o saqueio acumulado durante décadas e a sua impunidade.

Mas a evidência da corrupção da monarquia permite revelar outras.

A vitória do fascismo mediante um dos massacres mais terríveis da história moderna foi também uma espoliação maciça, uma imensa acumulação de capital roubado, que garantiu a sua continuidade mediante a monarquia borbónica. Com as dezenas de milhares de assassinados que continuam enterrados nas valas – para vergonha de governos "pregressistas" de todos os níveis do Estado – pretende-se manter sepultado também o saqueio gigantesco sobre o qual se fundaram e no qual se desenvolveram os grandes capitais do Reino de Espanha.

O fecho de abóbada sobre a qual se veio assentando a pilhagem supranumerária dos cofres públicos – que se soma à exploração capitalista – é a monarquia borbónica. E o rei, muito consciente de tudo isso, vinha exigindo receber o dízimo do grande negócio.

Com todas as cumplicidades políticas, também devidamente remuneradas, o monarca constituiu-se em cúpula da rede de corrupção que permitiu amassar fortunas aos proprietários das grandes empresas. As "mordidas dos 3%" que reluziram na Catalunha são só uma pequena parte da cascata de comissões e subornos que edificaram a fortuna do borbón e, por debaixo dele, dos diferentes níveis da administração e das empresas que obtém lucros a partir de decisões políticas. As viagens oficiais carregadas de empresários, destacados políticos e altos funcionários, com o rei à cabeça, são a imagem viva da utilização do Estado ao serviço do capital.

É essa cadeia de cumplicidade e delitos, que infecta todas as estruturas do poder político e económico, que tem mantido a impunidade do rei como chefe do bando de ladrões.

Felipe VI senta-se num trono alagado de sangue e corrupção. E ocupa-o por ser o filho do rei designado pelo ditador mais criminoso que houve na história dos povos do Estado espanhol e também, herdeiro parte da mãe da sangrenta e corrupta monarquia grega colaboradora directa da ditadura fascista.

Os poderes de facto – o capital e seus aparelhos do Estado – com cumplicidade do governo "progressista", obrigaram o borbón a escapar. Tal como quando lhe exigiram a abdicação, pretendem que mude algo para que nada mude – e o "emérito" é o bode expiatório. Em 2014 o detonador foi o medo de uma mobilização popular alimentada pelas consequências da crise e à qual se fez acreditar então que "Podemos" mudar as coisas mediante as eleições.

Hoje, perante o tsunami económico e social que se está a abater sobre a classe operária, a decisão foi fulminante para tentar escorar uma monarquia cada vez mais fraca. Mas agora, para maior escárnio, o governo e os meios de comunicação do poder, tentam apresentar a fuga do ladrão pai como uma contribuição para a estabilidade do trono do filho.

A colaboração do governo PSOE-Podemos no encobrimento do ladrão fugido revela mais uma vez a sua função real de escoramento de todas as estruturas do Regime de 78 e do grande capital. E, naturalmente, sua capacidade nula para mudar uma ínfima parte do código genético franquista dos aparelhos do Estado.

Enquanto os cárceres estão cheios de presos políticos, quando ainda estão quentes decisões judiciais que tentam esmagar a liberdade de expressão para denunciar à mesma monarquia jovens adeptos do rap como Pablo Hasel ou mantém encarcerados os dirigentes políticos catalães que organizaram um referendo, algum ingénuo poderia perguntar: Os altos tribunais do Estado colocarão o borbón em [ordem de] busca e captura? Emitirá o Ministério do Interior uma ordem de detenção internacional? Apreenderão suas propriedades como garantia do pagamento das enormes quantidades roubadas precisamente por exercer a chefatura máxima do Estado? Evidentemente, não. E não se trata de procurar através das urnas outro Podemos mais poderoso.

A perseguição àqueles que reclamam liberdade continuará, os mortos continuarão nas valas e seus assassinos continuarão morrendo impunes e cobertos de medalhas, enquanto os povos do Estado espanhol não mandarem à lixeira da história todas as estruturas de poder do Regime instaurado pela Constituição de 1978.

Nestes momento em que a indignação popular põe em manifesto a debilidade relativa das estruturas de poder – a própria fuga do borbón é mostra disso – Red Roja conclama à classe operária e aos povos do Estado espanhol, assim como às organizações capazes de representar sua soberania e independência, a mobilizar-se contra a monarquia e pela ruptura com todas as instituições herdeiras da Ditadura.

Uma tarefa pendente num caminho longo

Mas acabar com a monarquia e demais instituições do Regime de 78 é uma tarefa pendente num caminho mais longo.

As crises – e a que vivemos é de grandes proporções – são momentos de oportunidade para impulsionar a tarefa histórica de uma organização revolucionária: contribuir para destruir o capitalismo e construir o socialismo. Sabemos também que esse objectivo requer conceber o caminho que conduza rumo à construção do poder do povo e da direcção política capaz de levá-lo a cabo.

Entendemos que o avanço de ambos os processos não é o resultado de declarações de vontade ou de decisões de gabinete. É possível só com as energias que a luta de classes é capaz de desencadear e com a condição de que estas não possam ser absorvidas e reconduzidas aos seus próprios fins pelo poder.

Com a finalidade de introduzir elementos de ruptura com a ordem actual nas lutas populares pelas suas necessidades vitais, Red Roja faz um apelo ao debate para a constituição de uma Frente de Salvação Popular [1] cujos pontos cumpram com o objectivo central: serem entendidos como imprescindíveis pelo povo e incapazes de serem concedidos pelo poder, ao qual não cabe senão enfrentar sem conciliação possível.

Tais elementos são:
1º Expropriação da banca privada.
2º Recusa a pagar a chamada “dívida pública”.
3º Ruptura com os ditames da UE.
4º Intervenção das grandes empresas de produção e distribuição.
5º Implementar a planificação racional e democrática da economia.

Vamos sequestrar os velhos por quanto tempo?

Posted: 10 Aug 2020 03:52 AM PDT

«Ainda nos idos de março, estava a pandemia no início, fiquei comovido com a forma como os portugueses se mobilizavam para proteger os seus mais velhos e doentes, que são os principais grupos de risco da covid. Rapidamente passou a comoção. Dada a histeria coletiva e a perceção totalmente distorcida do risco envolvido com a doença, convenci-me de que, afinal, a generalidade dos portugueses estava era preocupada consigo mesma ou, vá lá, com os seus familiares. Nada disto é científico, claro, eram perceções.

A reação pública, ou a falta dela, às mortes no lar de idosos de Reguengos de Monsaraz aumenta a minha convicção. Nesse lar houve um surto de covid, vários foram os infetados, não apenas entre os idosos, e acabaram por morrer 18 pessoas. No entanto, ficámos a saber, a maioria das mortes não resulta dessa doença, mas sim da falta de cuidados médicos. Os velhos morreram desidratados e, quando finalmente receberam assistência médica, tinham as suas doenças crónicas agravadas. Morreram porque foram abandonados à sua sorte. O que se seguiu? Gritos histéricos nas redes sociais? Não. Gritos histéricos dos partidos da oposição? Não. Palavras de conforto de Marcelo Rebelo de Sousa? Não. Mensagem grave, em direto para o telejornal das 20h, da Ministra da Saúde, da diretora-geral da Saúde ou da ministra do Trabalho e da Segurança Social? Não. Admito que me possa ter falhado alguma notícia, mas de facto não assisti a nenhuma comoção nacional. Nem pouco mais ou menos. Apenas nos disseram que o Ministério Público ia abrir um inquérito.

Esta ausência de choque com a morte de velhos abandonados à sua sorte mostra que não eram eles a nossa preocupação quando tirámos as crianças e jovens das escolas e nos enfiámos em casa. Mostra também que tão perigoso como a covid (ou, na verdade, mais) é o nosso medo. Mostra também o quão certeiro foi o Gato Fedorento quando em 2007 nos disse que os velhos não deviam ser despejados nas ruas, mas sim no Velhão, “o sítio onde deitamos os velhos fora quando já não precisamos deles.”

Neste momento, muitos velhos estão num regime de sequestro nos lares de terceira idade. Não podem, de facto, sair, porque se saírem a sua reentrada está vedada. Não podem receber visitas a não ser à distância, pelo que não podem sentir sequer um toque ou um carinho dos seus filhos. Como as visitas estão altamente condicionadas, a sua frequência é agora muito menor, apenas podendo ver os seus familiares de forma muito espaçada. Pelo menos em alguns lares, não sei se todos, a entrada está vedada a crianças até aos 12 anos de idade, pelo que nem grande parte dos netos podem ver.

O caso de Reguengos de Monsaraz leva-me a desconfiar que todas estas medidas não são para proteger os velhos, mas sim para preservar os responsáveis dos lares de eventuais chatices. Assim, podem sempre alegar que fizeram tudo o que era possível.

Não sei se não seria preferível a morte a tal sorte. De qualquer forma, seja com que intenção for, está na altura de perguntarmos com cada vez mais insistência: e se não houver vacina eficaz? Vamos manter os velhos sequestrados no lar durante quanto tempo? Até deixarem de reconhecer os netos?»

Luís Aguiar-Conraria

domingo, 9 de agosto de 2020

O rei vai nu

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 08/08/2020)

Daniel Oliveira

As suspeitas que recaem sobre Juan Carlos não são, na sua natureza, muito diferente das que recaíram sobre José Sócrates. Mas um foi detido à chegada a Lisboa, esteve preso em Évora, foi abandonado pelos seus correligionários e enfrenta um processo que o pode levar a uma pesada pena. Outro tem o presidente do Governo a apoiar a sua fuga indigna e a direita a exigir respeito e compreensão por quem é suspeito de fuga ao Fisco e corrupção.

Dizem os defensores da monarquia que a sua superioridade é preparar os chefes de Estado e as suas famílias para a representação do Estado. Uma superioridade que se baseia na ideia de que o privilégio garante mais sentido de dever do que a representação democrática. De que quem herda o poder o exerce melhor do que quem o conquista no voto. Tudo o que vemos no Reino Unido e em Espanha o desmente. Era a ignorância que garantia a gravitas da coroa. Como é ela que nos dá a ilusão do brilho incomparável dos grandes estadistas do passado ou da sobriedade incorruptível das ditaduras. Nenhum destes mitos sobreviveria ao escrutínio das democracias modernas. Nem os grandes estadistas que veneramos, nem os ditadores que branqueamos, nem os reis que protegemos. E só quem sobrevive a este escrutínio deve servir de exemplo. O que me leva a uma convicção contraintuitiva: nunca houve poder menos corrupto do que o atual, porque nunca houve poder tão escrutinado. Um escrutínio que torna todos os podres visíveis e nos oferece uma amarga sensação da decadência. Este paradoxo poderia levar a maior exigência dos cidadãos. Mas, porque haverá sempre corruptos, resulta em cansaço. E do cansaço nasce a indiferenciação. Os notáveis aldrabões que por estes dias ganham palco contam com isso. “Podia dar um tiro a alguém na 5ª Avenida e não perderia votos”, disse Trump, em 2016. Não estamos preparados para lidar com a verdade que exigimos. Ela pede demasiado de nós.

Os grandes estadistas que veneramos, os ditadores que branqueamos e os reis que protegemos não sobreviveriam ao escrutínio das democracias modernas

A monarquia não é mais corrupta do que a república. A diferença é que o monarca, mesmo depois de abdicar, não se livra do privilégio de berço que lhe ofereceu o lugar: a família, obrigada a carregar no cargo o fardo da ignomínia. Não vale a pena dizer que Juan Carlos é agora apenas um cidadão. Isso é falso, porque é por nunca o ser que ocupou o trono. E é por o poder ser transitório e nunca hereditário que a República se regenera.

A superioridade republicana é a sua humildade perante a fraqueza humana: as instituições não se confundem com pessoas ou famílias. Em janeiro, uma sondagem dizia que 43% dos cidadãos de Espanha apoiavam a monarquia e 42% eram contra. Quando chegar o seu tempo, uma regeneração republicana não será sinal de decadência, como teme o republicano PSOE, mas de progresso.

A História dá grandes saltos, e o papel da esquerda não é o de temeroso guardião do statu quo. Aceite-se o papel que Juan Carlos teve na transição democrática mas recuse-se a ideia de que a unidade de Espanha depende de uma família. Só a democracia e o diálogo a podem conseguir, através de uma federação plurinacional e multicultural. Para a construir, a coroa é um problema.

Democracia e futuro normal

Posted: 08 Aug 2020 03:43 AM PDT

«Continuamos, justificadamente, a ter medo da covid-19, mas há por aí outros vírus perigosos que sorrateiramente se vão instalando.

A associalização e o confinamento militante em que vamos sendo acantonados tornam-nos tolerantes perante violações de direitos individuais e coletivos, e produzem uma sociedade apática.

A má gestão e a não resolução de grandes problemas socioeconómicos, como aqueles com que nos deparamos, geram perigosos subprodutos. No plano político, projetos ultraconservadores e fascistas. No plano social, um crescente de microconflitos, de falsas disputas e clivagens: nas relações entre gerações, potenciando disfunções e ruturas; no trabalho, aproveitando condições diferenciadas dos trabalhadores ou colocando o setor privado contra o público, para incapacitar a ação coletiva e intensificar a exploração; nas relações entre maiorias e minorias e entre culturas, para gerar intolerâncias e ódios.

A esmagadora maioria das pessoas sente necessidade de segurança e estabilidade, de condições de sociabilidade, de uma economia a funcionar. Contudo, a expressão "retorno à normalidade" pode ser uma mera ilusão ou ter interpretações subversivas. O futuro nunca foi nem será retorno ao passado. Porém, podem surgir recuos e dolorosos retrocessos civilizacionais, camuflados de alternativa ou de modernidade no início do seu percurso.

O futuro constrói-se a partir das condições concretas em que nos encontramos. Pessoas, empresas e instituições não têm possibilidade de projetar o dia de regresso às condições existentes nas vésperas da pandemia que, em muitos casos, pura e simplesmente, não existirão mais. É preciso conter os duros impactos sociais e económicos da pandemia, mas é um erro grave deixar para depois as políticas estratégicas de recuperação da economia. Aqueles impactos vão prolongar-se mais do que era expectável. Por outro lado, a retoma das atividades das empresas e dos serviços tem de ser progressiva (mesmo com resultados pobres ou negativos) para que exista criação de valor, se possam realizar reconversões de atividades, reestruturações de empresas e capacitação dos trabalhadores. Essa retoma é necessária para se criarem novos projetos e para posicionar melhor a nossa economia nas cadeias de valor em processos de mudança.

Se ficarmos pelo atentismo no "retorno à normalidade" podemos ter a certeza de que, rapidamente, chegaremos a uma situação em que os défices da nossa matriz de desenvolvimento e as fragilidades do Estado se agravarão, acompanhados pelo aumento exponencial do desemprego, pelo aprofundamento das injustiças, das desigualdades e da pobreza. Um cenário pesado para a esmagadora maioria dos portugueses pode ser um maná para estratégias de enriquecimento assentes em baixos salários, na apropriação de fundos coletivos e na amputação de direitos laborais, sociais e democráticos.

Neste tempo de exaltação da frugalidade e da moderação, lembremos quão frugais são os trabalhadores e o povo, e que a moderação nem sempre é uma virtude. Por vezes é tão-só a forma ardilosa de não incomodar as maiorias dominantes. Uma certa moderação e pretenso cavalheirismo, muito invocados por certas elites, deram cobertura a gestões danosas, a compadrios e corrupção, que nos custam hoje dezenas de milhares de milhões de euros.»

Carvalho da Silva