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domingo, 20 de setembro de 2020

Não deixem aos populistas a conversa sobre a corrupção...

Posted: 19 Sep 2020 03:57 AM PDT

«… porque senão eles tornam-na num ataque contra a democracia, usando como pretexto a corrupção, que lhes é verdadeiramente indiferente. Mais do que nunca, temos que ter uma conversação rigorosa, dura, intransigente, mesmo impiedosa, sobre a corrupção. Por vários motivos: um, estrutural, porque a corrupção é endémica em Portugal; outro, de circunstância: porque vem aí da Europa o alimento da corrupção, milhares de milhões de euros. Já se vêem os bandos de pombos atrás do milho. Por último, porque nada mais fragiliza a democracia nos dias de hoje do que a corrupção num debate público envenenado pelas redes sociais, com a crise de toda a informação de qualidade, mediada e séria a ser substituída pelo clamor populista e pela crise colectiva da “educação para a cidadania” dos seus cultores...

Comecemos pelo carácter estrutural da corrupção em Portugal nos dias de hoje. O que é que se pode dizer quando temos enredados na justiça, arguidos, acusados, indiciados, toda a panóplia de graus de indiciação, um antigo primeiro-ministro, vários ex-ministros, vários secretários de Estado, autarcas, dirigentes da administração pública, militares de altas patentes, responsáveis policiais, juízes, procuradores, dirigentes desportivos de grandes clubes, empresários, gestores de topo, deputados, banqueiros, personalidades do jet-set, génios das tecnologias, uma multidão de medalhados, doutorados, homenageados, por aí adiante. Quem é que escapa?

O que aconteceu é que toda esta gente se encontrou uma ou mil vezes perante uma tentação a que não resistiu, ou que acolheu de braços tão abertos, que nem chega a ser tentação, felizes pelas oportunidades de ganhar dinheiro ilegalmente, de fugir aos impostos, de vender ou comprar um favor, de roubar com colarinho branquíssimo, de usar os seus conhecimentos nas altas esferas e os melhores conselheiros no mercado, para defraudar os “parvos” dos outros. Tiveram oportunidades, e criaram oportunidades, e é a facilidade com que isto aconteceu, e a fila enorme de gente importante que foi lá buscar o seu quinhão, que mostra que não é um problema de meia dúzia de corruptos, mas do “meio” que facilita o crime, ou seja, é estrutural e não conjuntural. Eles vivem no “meio” e são o “meio”.

Hoje isto é dinamite para a democracia. Já houve alturas em que não foi assim, ou não foi tão grave assim. Hoje, é. Os populistas usam a corrupção para atacar a democracia divulgando o mito de que regimes de ditadura como o de Salazar-Caetano não tinham corrupção. Completamente falso, e isso seria evidente se se tirasse a tampa da censura. Mas os políticos sérios em democracia ajudam a demagogia dos populistas a ter sucesso pela flacidez com que numa sociedade estruturalmente corrupta defrontam a corrupção. O problema da corrupção não vem da democracia, daí que o seu principal agente não seja sequer a chamada “classe política”, mas vem da sociedade, das debilidades do nosso tecido social, de uma burocracia assente em favores, da desigualdade de acesso ao poder e informação, e das várias promiscuidades entre poderes fácticos, como o contínuo que vai da construção civil aos clubes desportivos e terminando no poder político.

O problema é que os promíscuos não estão sozinhos, porque, se se pensa que o alarido populista significa verdadeira recusa deste tipo de actos, estão bem enganados. Como os culpados lembraram, faziam habitualmente este tipo de tráficos sem qualquer protesto, como se fosse normal e era reconhecido como normal. Até porque, como diz o ditado, o peixe apodrece pela cabeça e por isso, de cima a baixo, o sistema de cunhas, tráficos de influência, patrocinato e favores mergulha até ao fundo e, numa sociedade com este tipo de convívio com a pequena, a média e a grande corrupção, nunca haverá verdadeiro repúdio da corrupção a não ser nas bocas de café, agora transpostas para as redes sociais.

Uma das coisas que faz o populismo é centrar as suas acusações à corrupção “deles” e isolá-la como alvo principal, deixando de lado o meio em que ela é partilhada com “forças de segurança”, “agentes económicos”, “empresários de sucesso”, magistrados, protagonistas de um mundo em que o populismo não toca. Já viram alguma especial indignação com a corrupção nos grandes clubes quando não é o “nosso”? Como se as pessoas que vociferam nos cafés e nas redes não tivessem uma ideia de onde vem e para onde vão os muitos milhões e milhões que custam os jogadores.

Isto significa que não se pode fazer nada? Bem pelo contrário, pode até fazer-se muito, mas de um modo geral não é o que habitualmente se faz na resposta pavloviana à pressão populista. O populismo é contraproducente para combater a corrupção; pelo contrário, até a reforça. Não é aumentar as penas, não é diminuir as garantias do Estado de direito, não é oscilar entre a complacência e a intransigência. É pensar de uma ponta a outra a administração, das autarquias aos ministérios, é cortar radicalmente os milhares de pequenos poderes discricionários que por aí existem, obrigar a que sejam transparentes e escrutináveis muitos processos que nada justifica não serem públicos. Agora que vêm aí vários barris de dinheiro, é vital que tal se faça.

Mas é também dar o exemplo de que não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.»

José Pacheco Pereira

sábado, 19 de setembro de 2020

Israel entra no segundo confinamento sob protestos

De  euronews  •  Últimas notícias: 18/09/2020 - 13:24

Israel entra no segundo confinamento sob protestos

Direitos de autor JACK GUEZ/AFP or licensors

Centenas de pessoas protestaram contra o novo confinamento antipandemia que começa esta sexta-feira, em Israel.

O primeiro-ministro do país admitiu que as restrições são necessárias e que podem vir a ser mais apertadas nas próximas semanas caso o número de novos contágios não pare de crescer.

Benjamin Netanyahu diz "não ter alternativa" em relação ao segundo confinamento que entra agora em vigor. O primeiro-ministro do país referiu o caso da Austrália como um exemplo de como a quarentena deu resultado e disse acreditar que "os restantes países que lutam contra a covid-19 vão ter que seguir as mesmas medidas".

A partir desta sexta-feira, vários negócios fecham portas e grande parte da população fica em casa, de quarentena. Medidas que já tinham sido aplicadas na primavera para conter o o novo coronavírus.

Desde o início do surto, morreram em Israel 1.163 pessoas infetadas com covid-19 e foram registados 172 mil positivos.

A lista de Vieira: da tragédia à farsa em cinco dias

Posted: 18 Sep 2020 03:59 AM PDT

«Eu sei que é suposto a História dar-se primeiro como tragédia e repetir-se depois como farsa, mas que diabo, ninguém me tinha dito que seria tão rápido. Na segunda-feira caprichei a escrever sobre a inclusão de António Costa na lista da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira como tragédia shakespeariana, com punhaladas e discursos grandiloquentes, e eis que cinco dias volvidos tudo se desfaz em farsa, com Luís Filipe Vieira a tirar inopinadamente da sua lista não só António Costa como os políticos que o tinham decidido honrar.

A tentação seria repetir também a dose, e em vez da tragédia chamada Júlio César, que me serviu de mote na segunda, optar agora por uma farsa, talvez Comédia de Enganos. Mas não vale a pena. Não há nada de mais elaborado a dizer sobre esta reviravolta da história do que notar que a emenda conseguiu ficar ainda pior do que o soneto. Ou seja, os titulares de cargos públicos querem honrar Vieira, mas é Vieira a tirá-los da lista como se eles fossem desonrosos. É o mundo ao contrário!

Tendo em conta o coro de críticas à mistura da política com o futebol num tempo em que sobre Luís Filipe Vieira impendem suspeitas de interferência com a justiça, o que se esperaria seria uma de duas coisas. Ou António Costa (porque é principalmente dele que se trata, enquanto chefe do poder executivo) mantinha a sua posição de que estar naquela lista fazia parte de uma parte da sua vida enquanto adepto de futebol que é absolutamente irrelevante para a política, pese embora a contradição aparente com o dever de reserva que ele recomenda aos ministros. Ou então António Costa tomaria em conta as críticas que lhe foram feitas e, dando-lhes razão no fundo ou aceitando os seus argumentos na forma, diria que tinha decidido retirar o seu nome da lista.

O que acabou por acontecer, não sendo nenhuma dessas duas opções, pode parecer à primeira vista ter isentado o primeiro-ministro de ter de fazer uma escolha, ainda para mais quando o Presidente da República já tinha anunciado que este seria um tema da conversa semanal entre ambos. O assunto parece assim encerrado, mas a verdade é que deixa um gosto amargo, porque é precisamente ao primeiro-ministro que compete tomar este tipo de escolhas, para o bem e para o mal. Ao retirar com pouca cerimónia os titulares de cargos públicos da sua lista de honra, Vieira acaba por reforçar a ideia de que é o futebol que manda nisto tudo e que são os presidentes de clube os únicos a poderem verdadeiramente tomar decisões, nos tempos que correm, sem temerem consequências por parte da opinião pública. Mesmo aí, Vieira teria podido tomar uma atitude mais cívica, e humilde, declarando publicamente que lamentava a situação criada e que embora agradecesse a disponibilidade dos titulares de cargos públicos em causa, os desejava dispensar do compromisso que eles tinham assumido. Mas as boas maneiras parecem não fazer parte do acervo do presidente de clube de futebol. E foi assim que, tratando o chefe de governo como um daqueles treinadores a quem se dá uma chicotada psicológica dias depois de se lhe ter demonstrado confiança, Vieira acabou por pôr e dispor das pessoas que o tinham querido honrar com os seus nomes.

Se este episódio já revelava uma estranha ausência do mais simples tato político, agora ele acaba por ilustrar uma problemática incompreensão dos valores republicanos. Não é, nunca por nunca ser, um presidente de clube de futebol que “despede” um primeiro-ministro, nem que seja da sua comissão de honra. Se António Costa foi surpreendido por esta decisão de Vieira, é mau. Se de alguma forma sabia dela antes, é pior, porque nesse caso teria aceitado esta menorização do cargo que representa. Prefiro então pensar que tenha sido exclusivamente Luís Filipe Vieira a tratar os seus apoiantes como objetos, assim como trata jogadores de futebol ou treinadores ou, quem sabe, juízes. Mas mesmo assim isso diz muito sobre o tipo de figuras deste mundo do futebol que as pessoas que faziam e fazem parte da comissão de honra dele estão a honrar com os seus nomes. Eles emprestaram-lhe honra, ele retirou-lhes dignidade.

Para onde quer que nos viremos, tudo isto é triste, tudo isto existe, mas tudo isto é mais do que fado — ou futebol. Para um país, ser farsa não deixa de ser também trágico à sua maneira.»

Rui Tavares

A vacina não vem já, vamos começar a pensar nos nossos filhos?

Posted: 17 Sep 2020 03:38 AM PDT

«Não sou médico nem cientista. Não faço a mais pálida ideia da real probabilidade de termos, a curto ou médio prazo, uma vacina contra o coronavírus eficaz e ministrada à escala global. O máximo que posso expressar é o meu cepticismo. E acho que é com base nesta cautela que os políticos devem gerir esta pandemia.

A suspensão dos testes da vacina da farmacêutica AstraZeneca ajudou a temperar esperanças de curto-prazo. Temo, aliás, que com uma opinião pública ansiosa por boas notícias e um poder político ansioso por as dar, se façam por aí grande e inúteis negócios. Por mim, preparo-me para viver algum tempo com este vírus e sem vacina. O que dizer que me preparo para não aceitar medidas que não sejam sustentáveis por um tempo razoável. E que temo a ansiedade de políticos e médicos indisponíveis para ouvir especialistas de outras áreas, que lhes expliquem os efeitos perigosos de muitas das medidas que os primeiros impõem por pressão dos segundos.

Ao ouvir políticos franceses e espanhóis aventar a possibilidade de mais um período de confinamento, fica claro que não estamos preparados para lidar com os perigos das epidemias e em nome de uma falsa segurança estamos e totalmente disponíveis para o suicídio coletivo. E o problema é que gastámos todos os cartuchos logo na primeira fase. O futuro dirá se fizemos bem ou mal e não estarei aqui para cobrar a quem teve de decidir com base no pouco que se sabia. Os suecos decidiram de forma diferente e foram trucidados. No fim saberemos quem tinha razão.

Temo os efeitos psicológicos e psiquiátricos do medo induzido de forma persistente e incisiva. Temo os efeitos sociais e políticos que destruam aquilo pelo qual tantos morreram. Temo as vítimas colaterais de outras doenças e a lenta e irreversível destruição de um Serviço Nacional de Saúde obcecado pelo vírus. Temo a destruição de relações laborais minimamente decentes. Temo os efeitos duradouros na economia. E temo os sacrifícios que exigimos a uma geração que se está a formar agora para uma vida inteira a que tem direito.

Se das milhares de tarefas que temos pela frente tivesse de escolher duas, elas seriam o investimento nos lares, para proteger o principal grupo de risco onde ele se encontra – e mesmo assim sabemos que não evitaremos mortes inevitáveis a curto prazo –, e a abertura sem mais uma interrupção das escolas. Com aulas presenciais. Esta semana começa o derradeiro teste. Tivemos meses para preparar estes dias. Veremos se estamos disponíveis para compensar o que tirámos, nestes meses, aos nossos filhos. O que me chega é pouco mais do que mudanças de horários. Pouco, muito pouco.»

Daniel Oliveira

É precisa uma cidade para formar um cidadão

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/09/2020)

Daniel Oliveira

A absurda polémica em torno das aulas de Cidadania e Desenvolvimento começou com um pai que decidiu que os filhos não iriam a aulas que a lei define como obrigatórias, inventando uma objeção de consciência que não está em lado nenhum. Como estava previsto na lei, os alunos reprovariam por faltas injustificadas. No entanto, e ao contrário do que foi dito, o Ministério, por considerar que os dois alunos menores não podiam ser prejudicados por uma decisão imposta pelos pais, propôs um plano de recuperação mínimo para que os alunos não ficasse retidos.

Este artigo do secretário de Estado explica que plano era esse, para ficar clara a aldrabice que nos andaram a vender: elaboração de trabalhos escritos e orais sobre a diferença entre as características da infância, da adolescência e da idade adulta; Educação Ambiental e Literacia Financeira; Direitos Humanos (especificamente Direitos da Criança); sustentabilidade; educação alimentar; atividade física; e igualdade de género, com uma reflexão sobre representações, preconceito e discriminação, centrando-se na capacidade de exposição e argumentação das ideias dos alunos. O pai recusou, porque, usando os seus filhos como armas, o seu objetivo era sobrepor-se à lei.

O debate que se gerou baseia-se em dois equívocos. O primeiro parece equiparar a cidadania à religião. A religião é opcional e cabe ao Estado defender a liberdade de culto. A cidadania é um dever e cabe ao Estado usar os instrumentos ao seu dispor (a escola é um deles) para a promover. O segundo equívoco julga que o Estado democrático é neutro. Não é. Ele promove, com base na sua legitimidade democrática, um conjunto de valores essenciais. Não é neutro em relação à homofobia, ao machismo e ao racismo, por exemplo. Porque não é neutro em relação a valores como a igualdade e a tolerância. Não se baseia numa “ideologia”, mas na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que Portugal é signatário. Há quem não goste, mas o Estado não se torna neutro por não gostarem. É o preço de viver em democracia. Em ditadura, de que algumas destas pessoas são saudosas, é muito pior: o Estado não precisa de outra legitimidade para além da vontade de quem manda.

Também não gosto da forma como a história do colonialismo português é ensinado nas escolas. Penso ser demasiado benevolente com o nosso passado coletivo e que isso tem efeitos no presente. Continuarei a bater-me para que esse consenso seja alterado. Mas não me considero no direito de decidir que esta cadeira passa a ser facultativas para os meus filhos. Porque não é assim que as coisas funcionam em sociedade. E se um criacionista recusar as aulas de biologia? E se um qualquer grupo cultural ou religioso exigir que a escolaridade obrigatória deixe de incluir as raparigas e fizer objeção de consciência? A escola respeita os pais, mas nem é um mero prolongamento da sua vontade nem os filhos são propriedade deles. Se assim fosse, a escolaridade obrigatória seria intolerável. Os pais decidiam se valia a pena. Ela, com os respetivos currículos, é imposta, queiram ou não queiram os pais que os seus filhos os aprendam.

Li, numa rede social, um comentário elucidativo deste tempo. Uma pessoa partilhava um trabalho do Expresso em que se explicava em que consistia esta disciplina e como funcionava. O artigo era factual. Uma outra pessoas respondia que não seguissem a imprensa tendenciosa, que havia coisas muito mais pormenorizadas no YouTube. O eurodeputado Nuno Melo até garantiu que uma aula de educação física tinha sido interrompida por uma palestra para explicar aos alunos 67 tipos de sexualidade, incluindo atração por objetos inanimados. Quando lhe foi pedido que dissesse onde e quando tal tinha acontecido, recusou-se a esclarecer. E é este o problema: anda tudo a contar meias-verdades, meias-mentiras ou mentiras completas sobre este tema. E de repente acontece uma coisa extraordinária: com milhares de crianças nas aulas de cidadania e desenvolvimento, as pessoas falam do assunto como se estivessem a falar de uma realidade distante, que lhes chega por via das redes sociais.

São estes os domínios obrigatórios para todos os ciclos de ensino das aulas de cidadania: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde. São estes os domínios obrigatórios para os ciclos de ensino básico: sexualidade, media, instituição e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, risco e segurança rodoviária. Os domínios opcionais são empreendedorismo, mundo do trabalho, segurança, defesa e paz e voluntariado.

São estes os domínios que realmente preocupam os conservadores que querem que a cidadania seja facultativa: igualdade de género e sexualidade. São os mesmos assuntos que os preocupam sempre, pelos quais são, aliás, obcecados. Quanto ao primeiro caso, terão de mudar a Constituição: a discriminação por género ou orientação sexual, assim como étnica e outras, é combatida pelo Estado português. E a escola tem o dever constitucional de promover a igualdade. Quanto à segunda, pedem-nos que sejam eles a não tratar do assunto. E quando vem um referendo ao aborto, passam a pedir que o Estado prenda as suas filhas se o fizerem e que não se deve legalizar, deve-se ensinar... para depois não quererem que se ensine. Exigem que a sua negligência seja política de Estado.

Acontece que a ignorância neste tema produz vítimas. As primeiras são os seus filhos, negligenciados por ignorância, medo ou convicção dos pais, numa área fundamental da sua formação enquanto pessoas. As segundas são os frutos dessa negligência, crianças que surgem numa fase demasiado precoce da vida dos seus pais adolescentes. As terceiras são muitos milhares de jovens que sofrem na pele a discriminação, o sentimento de culpa, a indizível dor de se sentirem anormais por serem aquilo que são. As quartas somos todos nós, que temos de lidar, enquanto sociedade, com gravidez adolescentes, abortos legais ou ilegais e gente profundamente traumatizada. A escola não educa, dizem eles. Mas enganam-se. Educa cidadãos e seres humanos.

É preciso uma aldeia para educar um filho, diz-se. E para o defender também. Eu acrescentaria que é preciso uma cidade para formar um cidadão. Na forma como nos organizamos, essa aldeia ou cidade é a escola. Não substitui os pais, mas participa na preparação da vida dos seus filhos em comunidade. Desde que há escola que assim é, não vai mudar agora. O que muda é o que se ensina, porque mudou a sociedade.

Tendo perdido o domínio que tinham desta função, exercido antes pela Igreja ou pelo Estado autoritário, os ultraconservadores propõem uma impossibilidade: que a sociedade seja composta por núcleos familiares isolados que não partilham deveres, direitos e valores mínimos de convivência. Esses valores, que incluem os da igualdade, estão definidos na Constituição. Cada um manterá as suas convicções e as passará aos filhos, mas a sua aprendizagem na escola não é facultativa.

O que é milagroso? Que, em pleno regresso às aulas depois de meio ano com as escolas fechadas, estas pessoas tenham conseguido que o tema dominasse o debate público durante quinze dias. Um tema que preocupa um nicho da sociedade portuguesa. Por isso, demorei este tempo a tratar do assunto. Não fazer a vontade a políticos despertados por atenção que, dizendo-se representante das preocupações do português comum, vivem, nestes tempos difíceis, a léguas das verdadeiras angústias dos pais.