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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Uma questão de confiança

Posted: 13 Oct 2020 03:29 AM PDT

«Nas próximas duas semanas assistiremos à negociação fora da negociação para a aprovação do Orçamento do Estado. O Governo soprou cedências extraordinárias que foi fazendo, o BE já soprou exigências a que o Governo não cedeu. O PAN, embrulhado na sua crise interna precoce, não teve a possibilidade de se defender, mas posso eu fazê-lo: o Governo não cumpriu praticamente nada daquilo a que se comprometeu com os animalistas, no orçamento do ano passado. Como António Costa tem uma boa relação pessoal com Jerónimo de Sousa, dispensa o PCP deste jogo. E o facto das negociações para um Orçamento dependerem tanto das relações pessoais do primeiro-ministro é já um mau sinal.

Que jogo é este, afinal? É o jogo da perceção pública. Interessa a António Costa passar a ideia de que está a dar tudo e que são os outros, sobretudo o BE, que são pouco razoáveis. O objetivo é aumentar a pressão pública para que o preço de criar uma crise política recaia sobre o Bloco e ele não tenha outro remédio que não seja viabilizar um Orçamento de que discorda no essencial e onde muito pouco conseguiu pôr de seu. Interessa ao BE passar a ideia que o fundamental não foi garantido para reduzir essa pressão e ter mais espaço para negociar ou para votar contra.

Durante a geringonça, houve alguns jogos assim, em versões muito mais ligeiras. É natural. Mas não só havia um documento que definia as linhas vermelhas e que funcionava como tira-teimas, como havia uma relação política mais distendida e um interlocutor no governo – Pedro Nuno Santos – em quem os parceiros parlamentares do PS confiavam. Quando os acordos se esgotaram, esse rumo comum desapareceu. E Costa mudou tudo. Chutou o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares para cima e, quando as sondagens lhe eram favoráveis, tentou forçar umas eleições antecipadas através da crise artificial dos professores.

Houve episódios anteriores, mas este marcou o fim da geringonça. E marcou o fim de qualquer relação de confiança entre os partidos de esquerda. Quando, na campanha, o primeiro-ministro garantiu que o BE nada tinha a ver com o nascimento da geringonça fechou definitivamente o ciclo, o que se confirmou com a recusa de qualquer acordo escrito depois das eleições. Costa fez essa escolha de forma consciente e deliberada, não tentando sequer passar a ideia que estava a tentar negociar um acordo com o BE para a legislatura. Pensar que depois disto este governo poderia depender exclusivamente do BE só pode resultar de um enorme cinismo político.

Não sei se o BE se verá obrigado a viabilizar mais este Orçamento. Se o fizer, sem cedências muito mais significativas do que as que conhecemos, será apenas por medo das consequências políticas de uma crise. E sabendo que, tal como sucedeu na crise dos professores e na última campanha, será abandonado à beira da estrada mal isso favoreça Costa. Catarina Martins sabe que Costa não lhe propõe uma parceria, mas uma armadilha. E isso torna qualquer negociação numa charada insuportável.

Algumas pessoas espantam-se por eu, que defendi desde a primeira hora um acordo à esquerda, andar a defender que esse acordo só deve acontecer com grandes cedências de Costa. Faço-o por três razões.

Primeira: não defendo acordos que não sejam politicamente benéficos para todas as partes. Um acordo em que uma parte se sente perdedora está condenado a falhar.

Segunda: os acordos entre forças políticas devem existir quando as une um objetivo comum - na legislatura anterior, era a reversão de uma ofensiva sem precedentes do governo mais à direita que a nossa democracia já conheceu. Se é para ter apenas um acordo de regime deve ser entre as duas forças que historicamente têm capacidade de governar.

Terceira: os acordos dependem de relações de confiança que se alimentam e cultivam. Não é por acaso que a AD entre Marcelo e Portas morreu. Essa relação não existia. Também não acontece, há pelo menos dois anos, entre António Costa e Catarina Martins. Costa detesta o Bloco e a sua líder e é incapaz de o disfarçar, mesmo em público. E isso em política também conta. Sobretudo com um primeiro-ministro tão visceral.

As sucessivas cedências a uma chantagem continuada, para evitar uma crise política, só podem resultar numa derrota e esvaziamento dos partidos à esquerda do PS. Num tempo em que a direita está em crise, a extrema-direita em crescimento e o centro-esquerda a fazer a mera gestão quotidiana, esse esvaziamento teria um custo político que desestruturaria o nosso sistema partidário. Olho para o resto da Europa e sei que não o quero.

António Costa ajudou a construir a improvável geringonça, num momento em que estava frágil. Quando se sentiu forte, não a soube preservar. Está a pagar o preço disso. É tudo uma questão de confiança.»

Daniel Oliveira

Sexta extinção em massa já começou. Mas podemos mudar, diz Attenborough

por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 09/10/2020)

Pode parecer estranho mas a covid-19 não é a maior tragédia do planeta. É apenas a consequência do processo humano de ocupação ilimitada do espaço natural e que nos trouxe esta trágica zoonose. Agora estamos atolados neste doloroso outono-inverno que não sabemos onde nos levará. Depois retornaremos à vida, algures, em 2021. Mas continuamos a perder tempo sobre o mais que anunciado desastre climático. Será que as opiniões públicas acreditam realmente na ciência?

Não se pressente um sentimento de mudança na Humanidade. Não só em Trump ou nos negacionistas instalados. Parecemos todos embrutecidos por um processo nos salvarmos enquanto indivíduos, não percebendo que é exatamente esse movimento coletivo que nos levará a uma destruição gigantesca, talvez muito mais rápida do que julgaríamos.

É por isso notícia este grande documento/testamento audiovisual do grande David Attenborough, com uma carreira extraordinária na BBC e agora num documento especial para o Nextflix. O "doc" chama-se "Uma vida no nosso planeta" e é imperdível. Quem não gosta do "oportunismo" de Al Gore ou da "ira" de Greta Thunberg, vai ter dificuldade em escolher a pedra a atirar ao naturalista inglês. Exatamente porque ele, nos seus atuais 94 anos, atravessou décadas e décadas para concluir isto: "Nós destruímos o planeta. Não nos limitamos a estragá-lo. Aquele mundo não humano desapareceu".

O que é este "mundo não humano"? Dois pontos-base: a devastação florestal e a delapidação dos oceanos.

Diz Attenborough que vivemos um declínio global acentuado por uma só geração. Talvez o mais simbólico exemplo seja o da destruição da Amazónia. Não é só um desastre de proporções inimagináveis para a biodiversidade terrestre, como está a ser alterado o ciclo dos oceanos - a Amazónia é a maior contribuinte para o alimento dos peixes a nível global e decisiva para o seu movimento oceânico.

Com a continuação do abate de árvores, a Amazónia perde o entrelaçar do seu ecossistema húmido e morre de forma vertiginosa e coletiva, transformando-se numa savana, à imagem de África.

Em paralelo, o aquecimento da atmosfera faz desaparecer o gelo nos polos. Esses gigantescos territórios, nus, passam a emitir o catastrófico metano, fatal para uma ainda maior aceleração do aquecimento do planeta. Entretanto, os oceanos acidificam-se cada vez mais pelos nitratos libertados pela agricultura intensiva que destroem rios e depois mares, pelas consequências dos incêndios cada vez mais devastadores, e pelo aumento da temperatura da atmosfera. Sem oceanos saudáveis não há oxigénio na Terra.

David Attenborough sublinha o mesmo ponto doutro documentário também da Netflix, "Kiss the Ground - agricultura regenerativa": estamos a curtíssima distância de perder a capacidade de ter solo fértil para manter a agricultura produtiva. Quando? Algo tão assustador como... daqui a 60 colheitas... Isto acompanhado de uma galopante perda de insetos polinizadores, outra faceta decisiva para a nossa alimentação. Em resumo: um cenário de fome extrema, generalizada, por mais que a ilusão da tecnologia alimentar nos faça pensar que a abundância é eterna.

Outros dados: 30% dos stocks de pesca no mundo estão em estado crítico devido à sobrepesca; 15 mil milhões de árvores são abatidas por ano; a biodiversidade das espécies nos ecossistemas de água doce foi reduzida em mais de 80%.

Mais: estamos a substituir a natureza selvagem pela natureza domesticada. Metade dos solos férteis da terra são agora agrícolas (e não zonas de biodiversidade para espécies que não a humana). Setenta por cento das aves no planeta são aves domésticas, a maioria delas galinhas.

Talvez ainda mais impressionante: os seres humanos são mais de um terço de todos os mamíferos da Terra. E, surpresa... os outros 60% são animais que comemos. Os selvagens - de ratos a baleias - são apenas 4%. "Este é agora o nosso planeta. Gerido pela humanidade, para a humanidade. Resta pouco para os outros seres vivos", sublinha o inglês.

O que fazer então? Ele defende a corrente ambientalista que considera a "Renaturalização" do planeta como a medida-chave.

Uma das ações essenciais é a da redução de agricultura intensiva e das monoculturas florestais. Por exemplo, o dendezeiro (óleo de palma) é um problema global, fruto do uso intensivo na indústria alimentar. Por cá, a nossa monocultura crítica é a do eucalipto, espécie exótica incapaz de gerar biodiversidade e que alimenta fogos de grande dimensão por não ser enquadrada num rigoroso mosaico florestal que trave os incêndios.

A Costa Rica é o exemplo que David Attenborough escolheu para mostrar como um país, há 100 anos coberto em dois terços por floresta, acabou por deixá-la reduzir a apenas 25% do território, na década de oitenta. Nessa altura o Governo apoiou os proprietários a replantarem floresta selvagem. Hoje o país está recoberto de novo em 50% pela floresta e é um caso de sucesso mundial em turismo de natureza.

Ocupar menos espaço humanizado significa recuperar florestas - selvagens e biodiversas. Este seria o mecanismo mais rápido e inteligente de voltarmos a aprisionar carbono a grande escala. Sem isso não sobrevivemos.

Há outra nota essencial: a da revolução alimentar. "Sempre que optamos por comer carne, reclamamos - mesmo que involuntariamente - uma enorme quantidade de extensão de território. O planeta não consegue suportar milhares de milhões de grandes comedores de carne. Não há território para isso. Se tivéssemos todos uma alimentação baseada em plantas precisaríamos de metade do espaço que ocupamos hoje", frisa Attenborough.

Demografia. O naturalista alerta para a necessidade de se diminuir o crescimento demográfico a médio prazo. Vamos chegar a 11 mil milhões no final deste século porque viveremos muito mais anos. Reduzir a população passaria também por aumentar o tempo de formação académica para as mulheres, dando-lhes ferramentas de escolha para uma vida profissional e pessoal mais igualitária, além de acesso generalizado a planeamento familiar. Em muitos países os rapazes prosseguem os estudos enquanto as raparigas vão trabalhar.

Ponto essencial: "É uma loucura que os nossos bancos e os fundos de pensões estejam a investir em combustíveis fósseis quando são precisamente eles que estão a comprometer o nosso futuro". O que financiam as nossas poupanças para a reforma nos fundos a cargo da Segurança Social? Enquanto o dinheiro for usado sem critérios aprovados pelos seus detentores, a especulação financeira mundial continuará a aplicá-lo onde a rentabilidade usurária for mais elevada, mesmo destruindo a rentabilidade natural do planeta.

Uma nota final: espera-se que David Attenborough viva ainda muitos anos, para continuar a ser veemente e certeiro como foi agora. Mas, mesmo que os seus dias cessassem hoje, ter-nos-ia deixado um documento definitivo sobre a soberba e a ganância humana que deveria passar a ser obrigatório nas escolas (e nos Natais em família). Ele usa frases simples e que reforçam princípios cada vez mais óbvios: temos de parar de crescer, entrar em equilíbrio, sermos sustentáveis.

"No mundo natural uma espécie só prospera quando as outras à sua voltam também prosperam".

"Se tomarmos conta da Natureza, ela tomará conta de nós".

"A Natureza é o nosso maior aliado".

"A espécie humana tem de deixar de ser a mais inteligente para ser a mais sábia".

Este não é apenas um documentário. É uma vida inteira. Muito obrigado Sir David.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Com taxas e bolos se enganam os tolos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/10/2020)

Daniel Oliveira

O Governo fez saber, como notícia extraordinária, que pretende mexer no IRS para “aumentar salários”. Que isso até seria um doce que tinha guardado para os seus supostos parceiros à esquerda. A ver se nos entendemos: o Governo não pretende mexer uma décima nas taxas de IRS. O que quer mexer é na taxa de retenção, o que é coisa bem diferente. Significa que os trabalhadores descontam menos mas, no cálculo que é feito no fim, a devolução será menor. Pagam exatamente o mesmo.

Podemos concordar com a medida. O trabalhador não tem de adiantar ao Estado um imposto que não lhe é devido. Não podemos é acompanhar António Costa no ilusionismo, que faz disto um aumento de salário. E muito menos podemos aceitar que esta alteração sem qualquer impacto no rendimento final dos trabalhadores seja apresentada pelo primeiro-ministro como o argumento derradeiro para BE e PCP aprovarem o seu Orçamento do Estado. Se é esta habilidade à vista de todos, nem quero imaginar o que acontece na mesa de negociações.

Mas há uma razão para esta medida, que tem pouco a ver com o Orçamento de Estado e nada a ver com o rendimento dos trabalhadores. Lembram-se quando, próximo de eleições, Paulo Núncio, secretário de Estado de Maria Luís Albuquerque e Passos Coelho, criou um simulador personalizado que atualizava mensalmente a estimativa de crédito fiscal da sobretaxa de IRS? Uma estimativa que se revelou falsa, aliás. A coisa é parecida, mas com dinheiro real. Os trabalhadores recebem no salário o que não receberão na devolução. E enquanto o pau vai e volta vêm as eleições autárquicas. E estamos a falar dos impostos de 2021, cuja devolução só acontecerá em 2022.

António Costa não faz diferente de outros. Não me recordo é de uma tão descarada ação de campanha ser usada como moeda de troca numa negociação de um Orçamento do Estado. O único beneficiário da medida é o próprio primeiro-ministro, que enganará os incautos que julgam ganhar mais até chegar a devolução do IRS. A medida pode ser justa, por não pôr tanta gente a emprestar dinheiro ao Estado. Não aumenta é o salário de ninguém, porque o que vem agora não virá depois. O que eu compro fiado não me sai à borla, o que recebo antes não recebo a mais.

Será suficiente para termos Natal?

Posted: 12 Oct 2020 03:53 AM PDT

«Esta semana poderão ser anunciadas mais medidas de combate à expansão da covid-19. Tendo em conta que nos últimos dias 67% dos novos casos tiveram origem, segundo a Direção-Geral da Saúde, em convívios familiares e em festas de jovens universitários, um dado é certo: é impossível legislar sobre o que se passa dentro da casa de cada um de nós.

Assim, numa altura em que os números de novas infeções fazem soar todos os alarmes no setor económico e no Serviços Nacional de Saúde, e afastada que está a hipótese de um novo confinamento, percebem-se os apelos insistentes do Governo e da Presidência da República à responsabilidade pessoal. Será suficiente para termos Natal? A ideia que fica é que não. O regresso às aulas e o cansaço que a pandemia impôs às pessoas não explica tudo e é evidente que, um pouco por todo o lado, se percebe que o relaxamento quanto à prevenção aumentou. Festas em discotecas interrompidas, espaços de restauração sem o distanciamento obrigatório entre mesas ou confraternizações na via pública estão à vista de todos.

Não causará qualquer surpresa, portanto, que o uso da máscara social passe de uma recomendação a uma obrigatoriedade em todos os espaços abertos, com as devidas exceções, ou que os horários e a lotação de restaurantes, cafés e outros espaços comerciais sejam de novo revistos. Porém, antes de serem divulgadas mais restrições, há muito para afinar. Não apenas nos processos técnicos, como melhorar a rapidez dos resultados dos testes e a identificação dos contactos com casos positivos, de forma a controlar as cadeias de transmissão, mas também na pedagogia e na uniformidade das medidas. Até para que os portugueses não fiquem ainda mais confusos, sob pena de o desleixo nos cuidados sanitários essenciais para prevenir a doença aumentar.»

Manuel Molinos

Corona c'est moi

Posted: 11 Oct 2020 03:34 AM PDT

«E não perca as aventuras desta semana! O nosso herói venceu o vírus e saiu do hospital ileso, sem máscara, pronto a enfrentar o real varandim da Casa Branca e a mostrar aos fiéis, à América e ao mundo que a única coisa que correu mal foi a maquilhagem, excessos do pessoal das cosméticas, alguém usou e abusou da base laranja que prometia dar ao curado um halo bronzeado e incrivelmente saudável, como se ele tivesse acabado uma partida de golfe ao sol de Palm Beach. Degenerou em vermelhão, mas o nosso herói continua heroico e, mais ainda, imune ao vírus. O próprio corona ter-se-á sentido mal depois de infetar o Presidente e circulou para pastagens mais simples de contaminar, infetando não apenas a Casa Branca como o Pentágono. O líder do mundo livre é agora o maior superspreader de Washington, contribuindo para aumentar as cifras de infeção. Tudo o que sobe é bom.

Algures em Pequim, a nomenclatura chinesa teve um ataque de riso que ainda dura, riso até às lágrimas. Mal sabem o que os espera. E algures em Moscovo, o grande Putin, na sua bolha de plástico, onde recebe convidados borrifados com lixívia, afirmou aos íntimos que o Trumpovski era mais fácil de envenenar do que o Navalny, mas não era preciso, o herói é um aliado da grande Rússia. Nunca a América foi tão grande em mortos e infetados.

O eminente Dr. Fauci chorou no recato do lar, quando soube da cura. E quanto à maquilhadora que se enganou na cor, já está infetada. O cabeleireiro também, mas como o Presidente não confia num desses gays liberais que pululam no sector decidiu que o homem das lacas e dos pentes continuava ao serviço, infetado ou não. A estopa tem de se manter firme, como o nosso herói. E o resto? Corona c’est moi. Nem Luís XIV teve um tal poder sobre os elementos e a natureza. O imortal Luís XVI, o homem que inspirou os decoradores da Trump Tower e de Mar-a-Lago quando encomendaram os doirados, os rococós e os brocados. O nosso herói só teve dúvidas sobre a meia de seda e o sapato de fivela da época, demasiado maricón.

Nos episódios desta semana confirma-se o que se suspeitava, que um Presidente com esteroides é o que a América precisa para ser great again! Já tínhamos o capitalismo com esteroides, uma sábia definição, passamos agora para o estádio superior, um Presidente insuflado com química que se sente melhor do que há 20 anos e que afirma aos íntimos, todos infetados, que está a ganhar músculo em lugares inesperados. Os olhos cintilam com a vitória eleitoral que se adivinha, apesar das sondagens. Também Hillary tinha as sondagens a favor e viajou na maionese na noite de novembro em que foi derrotada pelo nosso herói. O homem faz chorar os inimigos, e Biden terá a sua dose de pranto quando as manobras das bases e das milícias armadas nos locais de voto consagrarem o nosso herói como o líder da nação temente a Deus. Já foram encomendados esteroides que mantenham o feelgood factor até ao dia 3 de novembro. Vários republicanos estão também a encomendar a dose, para os energizar para a campanha sem máscara e sem cautelas. O velho Mitch McConnell, a cair da tripeça, quer a receita e tem esperança que lhe afine a voz de sapo. O venal Lindsay Graham, aflito com a sinecura, quer a dose para poder continuar a mentir e a sentir-se como um milhão de dólares. Um assento no Senado não tem preço. Euforia precisa-se.

Quanto ao nosso herói, derrotou todos os snowflakes liberais com a recuperação milagrosa, incluindo os idiotas que lhe desejaram as melhoras. Os flocos de neve não aprendem, não basta vencer o inimigo, há que aniquilá-lo. O nosso herói dispensa a piedade dos fracos. Os snowflakes ainda não perceberam que o nosso herói não é humano. É mitológico. Nasceu de Zeus, o deus dos deuses, o Trump do Olimpo, e de uma perna de vaca com a qual Zeus procriou julgando-a uma deusa disfarçada que a sua luxúria cobiçava. Deste ato nasceu Donald, tal como Hércules nasceu de uma mulher, Alcmena, filha de Electrião, e do deus de todos deuses, noutro inspirado momento de erotismo grego. Hércules, meio irmão de Perseu, sendo também bisavô de Hércules. Os gregos são confusos.

Donald é o Hércules da televisão, o Hércules do Twitter, o Hércules da construção civil. Pelo menos, foi a história que o protofascista Stephen Miller contou, antes de cair infetado. O Perseu é quem? Não me chateies com pormenores, não te armes em doutor, quero lá saber do Perseu, ninguém conhece o Perseu, o herói é o Hércules. E isso da perna de vaca, substitui por uma loiraça tipo páginas centrais da “Playboy”, uma mulher nota 10. Não vou ter como mãe a perna da vaca, já basta aquele livro da minha sobrinha a inventar coisas sobre a minha mãe ser uma bruxa má. Põe lá um mulherão na minha árvore genealógica, se tem de ser. A Melania não vai gostar.

Stephen prometeu podar a dita árvore enquanto media a febre. Até o Giuliani parece que está com o bicho, deu uma entrevista à Fox News em que se fartou de tossir enquanto esperava os resultados do teste. Fracotes. O nosso herói nunca tossiu, nunca teve febre, tirando as bilhas de oxigénio e as misturas de esteroides e antivirais não comercializados e que só são dados aos vip. Na verdade, o nosso herói nunca esteve doente. O resto, são danos colaterais, infeções acidentais. Os deuses e heróis gregos também matavam uma data de gente da própria família.

Algures em Pequim, o Presidente Xi Jinping continua a enxugar os olhos quando lhe contam as novidades. Fica exausto de tanta gargalhada e contente pelas boas notícias da América e de Hong Kong. A vida não podia correr melhor. Não eram precisas estratégias nem iniciativas para derrotar os americanos, derrotavam-se a eles mesmos. Os conselheiros e demais membros do Politburo acenaram com a cabeça, sufocando o riso.

Não sabem o que os espera. O Pompeo prepara um ataque a Wuhan. E os 200 e tal mil mortos? O nosso herói encolhe os ombros. Deixaram que o vírus dominasse as suas vidas. Deixaram que fosse o corona a mandar. Ora a positividade manda que uma pessoa permaneça positiva. Positiva enquanto positiva, no bom sentido. O nosso herói é positivo, duplamente positivo, resiste a tudo. Passem o corticoide. Está inflamado.»

Clara Ferreira Alves