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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Como Trump fortaleceu a China

Posted: 19 Oct 2020 03:46 AM PDT

«No dia 21 de Setembro, num comício em Dayton, Ohio, proclamou Donald Trump: “Se Biden vencer, a China vence. Se nós vencermos, vence o Ohio e, com plena justiça, vence a América.” É oportuno perguntar que o pensam os chineses do assunto. Não é saber se Xi Jinping “vota Trump” ou “vota Biden”. É a sua percepção dos quatro anos da presidência de Donald Trump.

Resume Yan Xuetong: “Trump arruinou o sistema de alianças dos Estados Unidos” e deu lugar ao “período de melhor oportunidade estratégica para a China desde o fim da Guerra Fria”. Cito Yan porque é um dos mais escutados especialistas chineses, na Ásia e no Ocidente, decano do Instituto de Relações Internacionais Modernas, da Universidade Tsinghua, de Pequim, e presidente do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy.

Explicitou numa entrevista: “A China tem a oportunidade de reduzir a diferença de poderio em relação aos EUA. (…) O Presidente Trump confirmou claramente que a liderança global é um fardo ruinoso para os EUA.” Note-se que Yan não pensa que Pequim esteja a caminho da hegemonia nos próximos tempos: “Só quando a comunidade internacional reconhecer que a China é um Estado mais responsável do que os EUA, a China será capaz de substituir os EUA na liderança do mundo.”

Diz um documento oficial do Partido Comunista Chinês (PCC): “Apesar de os regimes ocidentais parecerem deter o poder, a sua vontade e a capacidade de intervir nos assuntos mundiais está em declínio. Os Estados Unidos já não podem ser o garante da segurança global e da prosperidade, pelo contrário, prosseguem uma política externa unilateral e inclusive nacionalista.”

Esta opinião não é unânime dentro das elites chinesas. Mas está largamente difundida. “Muitos chineses anónimos desejam que Trump vença, porque pensam que ele destruiu o sistema americano e as suas alianças”, diz à Time Wang Yiwei, director do Instituto de Assuntos Internacionais da Universidade Renmim, de Pequim. “Se Trump continuar a fazer o mesmo pode haver novas oportunidades para a China.”

A percepção chinesa do declínio americano não se deve apenas à errática política chinesa e asiática de Trump. Pequim olha atentamente as vicissitudes domésticas americanas e, em particular, o estrondoso fracasso na luta contra a pandemia da covid-19. Encara os EUA como uma nação dividida, decadente e em risco de crise institucional. Esta percepção não é apenas chinesa. Preocupa também, e muito, os ocidentais. “Por razões de orgulho ou estratégia pode ser correcto entrar em confronto com a China”, escreve Janah Ganesh, analista do Financial Times. O problema é isso coincidir “com a mais fracturante época na vida nacional desde há meio século”. Consequência? “Uma América dividida não pode competir com a China num duelo de superpotências.”

Equívocos estratégicos

A percepção que uma potência tem da força ou fraqueza dos rivais é determinante na sua estratégia. A actual e mais agressiva política externa chinesa reflecte em larga medida a sua análise da América. Ao mesmo tempo que falam no declínio americano, os líderes chineses crêem que os EUA tentarão desesperadamente conter a ascensão da China. Daqui as discussões em torno da chamada “nova guerra fria” e o risco de um choque entre as duas potências.

Donald Trump chegou ao poder propondo-se “meter a China na ordem”, em nome do slogan America First. Ao fim de quatro anos, há uma geral percepção de que os Estados Unidos estão a perder influência, enquanto a China promoveu o seu estatuto internacional. A relação bilateral entre Washington e Pequim é a mais importante do mundo de hoje, não afecta apenas as duas potências mas o futuro da ordem internacional.

O conflito sino-americano não é uma invenção de Xi e Trump, é algo de natureza estrutural e longa duração, que se desenvolve em distintas etapas desde o início do século. Novos líderes não vão alterar a natureza irremediavelmente competitiva da rivalidade entre as duas potências. Mas podem regulá-la. Para a China, continua a ser primacial anular a supremacia americana na Ásia. Para os EUA, isso está fora de causa.

Teóricos de estratégia americanos apontam pesados erros à Administração Trump. Um artigo de Lawrence D. Kaplan no Washington Post, significativamente intitulado “How Trump is losing Asia” ("Como Trump está a perder a Ásia"), resume esses argumentos. Trump abandonou a Parceria Transpacífico enquanto a China acelerava a Nova Rota da Seda; e pôs em causa as garantias de segurança aos seus aliados, em especial o Japão. Não é apenas Pequim que ganha margem de manobra na Ásia, são os aliados que perdem a confiança nos Estados Unidos. Escreve Kaplan: “Pela primeira vez, desde a II Guerra Mundial, o Presidente dos EUA abalou a essência dessa confiança. A China está a promover uma visão, certamente imperfeita e coerciva, enquanto os EUA nada têm para oferecer.” Sem aliados e apoio local, os Estados Unidos não podem permanecer uma potência influente na Ásia.

Diga-se, de passagem, que a grande perturbação lançada por Trump deriva em grande parte dele reduzir a política externa a instrumento da política doméstica. Isto é patente desde a sua campanha eleitoral de 2016 e tem efeitos perversos.

Melhor do que Xi

O sinólogo britânico Steve Tsang, director da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), de Londres, declara ao FT: “Desde que Trump se tornou Presidente, fez mais do que ninguém, incluindo Xi, para tornar a China grande de novo, dando a Xi o que ele desejava para a promoção global da China. A balança de poder no mundo oscilou mais a favor da China.”

Que expectativas há em Pequim sobre o desfecho da eleição americana? Chen Zhiwu, da Universidade de Hong Kong, diz ao mesmo jornal que haverá uma diferença de estilo entre Trump e Biden. “Uma Administração Biden pode facilitar a vida à China durante um ou dois anos, mas a longo prazo levantará desafios mais duros à China.”

O analista Yu Jie, do think tank Chatham House, de Londres, faz uma distinção: “Uma vitória de Trump pode ser temível para a China mas também um presente político para Xi. Quanto mais os EUA demonizarem a China, mais os cidadãos chineses – mesmo os que discordam da liderança de Xi – se unirão à sua volta.”

Sublinhado final: outro problema preocupante é o risco de a China calcular mal a dimensão do “declínio americano”. Mas não é a matéria desta análise. Aguardemos os resultados do 3 de Novembro.»

Jorge Almeida Fernandes

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sobre as apps covid: “La technologie est la société rendue durable”

Posted: 18 Oct 2020 03:59 AM PDT

«A polémica com as aplicações móveis para rastreamento digital de contactos continua com a recente proposta de tornar a sua instalação obrigatória. A intenção do Governo tem tanto de inaceitável como de compreensível. Perante o aumento de casos, e a mais que previsível sobrecarga dos serviços de saúde, o Governo esgota todas as alternativas. Não para evitar o que parece inevitável, mas provavelmente para justificar e preparar a população para um novo estado de emergência. Quanto estivermos novamente confinados, com tudo o que isso significa em termos económicos e sociais, o Governo poderá sempre dizer que a instalação massiva da app teria evitado um mal maior.

Tal como escrevi aqui em Maio, o principal obstáculo às aplicações covid-19 não é a segurança ou a privacidade, mas sim a sua utilidade numa lógica de cidadania. Uma aplicação que se instala sem ter qualquer interactividade não permite que os utilizadores criem um bom modelo mental sobre o seu funcionamento. O célebre episódio de Rui Rio tornou pública a dúvida que persiste em grande parte das pessoas, incluindo as que acham que a instalação do StayAway Covid é um acto de cidadania digital. Todos criamos modelos mentais a partir das nossas crenças e usamos esses modelos para nos orientarmos no mundo que nos rodeia. Os computadores usam modelos mentais de ficheiros, pastas, tampos de secretária e baldes de lixo para permitir que as pessoas possam lidar facilmente com conceitos complexos dos sistemas informáticos como sistemas de ficheiros, permissões, dispositivos de armazenamento, etc. Infelizmente, as app de rastreamento não desenvolvem qualquer modelo mental. Ficam suspeitamente ligadas (ou não) até que algo aconteça!

As apps de rastreamento digital foram desenvolvidas com base em duas premissas erradas. Primeiro, que o principal objectivo seria servir as autoridades de saúde ajudando-as a refazer os processos tradicionais de rastreamento. Segundo, foram desenvolvidas por equipas de engenharia muito competentes nos algoritmos de segurança e privacidade, mas sem qualquer competência em interacção. O resultado é uma aplicação tecnicamente impecável, mas completamente incompreensível para o comum dos cidadãos (e admito que para os próprios profissionais de saúde). Ao desenvolver uma solução focada na autoridade de saúde criaram-se expectativas erradas sobre a sua eficácia. Ao não apostar na adopção, na interactividade e no feedback aos utilizadores (tal como fazem as aplicações de exercício físico), alimentam-se todo o tipo de especulações e aproveitamentos políticos.

Provavelmente, o grande contributo destas apps será o debate público sobre a cidadania digital. Esta questão fez-me lembrar a célebre frase de Bruno Latour (sempre ele) sobre a agência dos objectos inanimados: “La technologie est la société rendue durable.” No exemplo clássico de Latour, é o chaveiro pesado que se encontrava em muitos hotéis e que induzia os hospedes a deixar a chave na recepção. O chaveiro de Latour é assim um exemplo de um objecto inanimado que transporta simbolicamente uma regra. O desconforto de carregar um pesado chaveiro para fora do hotel é muito mais eficaz do que qualquer mensagem escrita. O valor desta inovação é claro, mas naturalmente tem um preço. Primeiro, o hotel tem que se aliar a quem consegue produzir a inovação que, por sua vez, se tem que aliar a quem sabe fazer chaveiros pesados e desconfortáveis. Segundo, a regra “deixe a chave na recepção” deixa de ser uma regra para passar a ser um acto muitas vezes não intencional nem consciente dos clientes.

O que torna o exemplo de Latour interessante é que antes da introdução da inovação apenas o gerente do hotel estava interessado em que os clientes deixassem a chave na recepção. Com a introdução das chaves pesadas e desconfortáveis, o gerente e os clientes passaram a concordar que o mais conveniente para todos seria que as chaves ficassem na recepção. Ao contrário do exemplo de Latour, as apps de rastreamento digital acabam por não servir as intenções do Governo e das autoridades ao não criarem o movimento necessário para que os cidadãos, por conveniência ou utilidade, decidam contribuir sem serem obrigados.

P.S.: Uma palavra de apreço à equipa do INESC-TEC pelo esforço e competência e ao Rui Oliveira pela coragem de assumir que não concorda que a aplicação seja tornada obrigatória.»

Nuno Jardim Nunes

Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico; Presidente do Instituto de Tecnologias Interativas do LARSyS

Um cão a dançar na chuva

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 17/10/2020)

Ontem fiquei feliz a ver um cão dançar na chuva. Sei que o meu ontem não é o vosso ontem, mas ontem é um conceito elástico e sendo um e outro ontem diferentes, não passam do mesmo. O tempo covid está dissolvido na água dos dias iguais. Ontem, portanto. Era um vídeo do WhatsApp e o cão dançava ao som de ‘Singing in the Rain’, de Gene Kelly. Uma canção do tempo em que importávamos felicidade da América. O cão saltava e parecia brincar com as gotas de chuva grossa num bailado de felicidade e liberdade. Felicidade é o que nos falta, tornou-se um bem proibido. Não podemos consumir um instante de alegria sem que venha a suspeita. Não podemos abraçar os pais e os filhos, não podemos abraçar os amigos, beijar os amantes, ou ter amantes, não podemos, nas palavras melífluas e orwellianas dos vigilantes, confraternizar. Nem com a família. Nem beber álcool fora de horas. Nem dançar na chuva ao som de uma canção. A polícia pode pensar que nos embriagámos. Deixem-se disso. Talvez pela mesma razão que um cão a dançar na chuva nos emociona, as prédicas de mestre-escola têm efeito por causa do grau de infantilização a que estamos remetidos.

Quando digo nos emociona, no plural, em vez de me emociona, sei o que digo. Reenviei o cão a dançar na chuva a meia dúzia de amigos e todos expressaram, por palavras breves ou emojis, a sua alegria. Aquilo tinha-lhes feito bem. O emoji com dois corações no lugar dos olhos foi o mais utilizado. Estou a falar de adultos com vidas profissionais completas, uma educação superior, experiência de vida e o cinismo protetor que a acompanha. Quando passámos a utilizadores em vez de cidadãos, sendo utilizador o update de consumidor, passámos a usar as partes menos complexas do cérebro. Em vez de articular uma frase, grande trabalho, podemos usar uma careta amarela e engraçada e assim demonstrar as nossas emoções. Crianças, portanto. Crianças com signos simples e evidentes, mais fáceis de combinar do que um brinquedo da Lego.

Tudo foi simplificado para nos neutralizar, equalizando as emoções individuais num emoji coletivo, para normalizar no mínimo tempo e espaço disponíveis. Na sociedade em que vivemos, economizar tempo é mais importante do que economizar dinheiro, e quando nos sobra tempo podemos gastá-lo a colecionar mais cães a dançar na chuva, gatos furibundos e outros bonecos e vídeos das redes sociais, que têm uma hierarquia de popularidade. Em todo o caso, prefiro o cão feliz a dançar na chuva do que um sul-coreano a dançar gangnam, que foi outrora e durante um bater de pestanas o mais popular vídeo da internet. Visto por milhões, o selo da qualidade.

Infantilizámos. Passámos de ser uma sociedade europeia que privilegiava o pensamento e a racionalidade, a filosofia e a literatura, ou a literatura como filosofia moral, a uma sociedade de crianças grandes que brincam umas com as outras ou mutuamente se agridem com furor por coisas sem importância. A agressão tem como contrapartida a lisonja, propiciada por fotografias idiotas em pose e dando a ilusão da beleza e da viagem, ou do luxo e da intimidade, do erotismo empacotado. É um filme inofensivo de banalidades que nada acrescenta nem diminui, serve de sintoma da infantilização.

As sociedades ditatoriais são sociedades infantilizadas, onde as ordens são para cumprir e a opinião é censurada ou, como tudo o resto, relativizada ou neutralizada. A selfie não é perigosa. Nas sociedades asiáticas ditatoriais ou semidemocráticas, quase todas, as massas não têm o poder de contraditar os poderes, o partido, o rei, a nomenclatura, o politburo, a corte, os generais, a tradição, o costume, com todos os acessórios da ditadura tosca ou da ditadura centrada e inteligente. Nessas sociedades, como qualquer viagem num transporte público pode atestar, as pessoas veem bonecos no telemóvel o tempo todo. Manga, posts, fotografias, vídeos, desenhos ou grafismos de qualquer ordem. As massas consomem imagens, não consomem discursos, porque não os podem contraditar. Livros e filmes são censurados quando quebram um tabu nacional ou local. Talvez venha desta obediência o êxito destas sociedades no combate à pandemia. Do mesmo modo que se diz a uma criança cala-te e obedece porque sim, diz-se a um povo, faz o que te mando porque sim. Se aliarmos a este diktat a tecnologia e a riqueza e disponibilidade dos recursos, temos a receita para eliminar a covid sem danos. É isto ou o isolamento total, que estará condenado no dia em que se abrir a primeira janela para deixar entrar o ar fresco. Caso da Nova Zelândia.

No meio de mensagens vagas ou contraditórias, avançamos como crianças com medo do escuro. Nem ousamos perguntar se este modo de abordar a pandemia será o certo, o racional, o útil e o eficaz. Os governos comportam-se como crianças caprichosas e assustadas, decretando quarentenas, novas regras e confinamentos de um dia para o outro, destruindo indústrias e milhões de empregos, assustando as pessoas e usando a esmo profissionais e peritos, alguns de última hora e mais peritos do que seria desejável, quase todos com ameaças e profecias de charlatães. Salva-se meia dúzia. No escuro, jaz o vírus e aquilo que não nos é dito. Como são tratadas as pessoas no hospital? Qual o perfil dos internados e dos mortos? Quais os medicamentos que estão a ser usados? Quantos recuperados estão doentes e com sequelas? Como mata e quanto debilita o vírus, ao certo? A estatística não cobre as nossas dúvidas, mas a estatística diz-nos que uma pequeníssima percentagem de pessoas morre. O que interessa é saber como e quanto se recupera. É das sequelas que as pessoas têm medo. E sobre isso sabemos pouco. E quantos mortos continuam a fazer as doenças do costume, aquelas de que ninguém fala e que não estão a ser tratadas? Mais. Muito mais.

As dúvidas são legítimas porque já nos foi dito tudo e o seu contrário. Desde as máscaras não serem úteis e serem perigosas à obrigatoriedade de máscaras na rua e ao vento.

Infantilizados, coagidos, aprisionados em regras que não entendemos, aterrorizados por mensagens e contagens, abdicámos de pensar pela nossa cabeça. Estamos proibidos não apenas de fazer o que queremos, estamos proibidos de pensar o que queremos porque nada sabemos. Eles é que sabem. E cenas como as de Trump, a criança mal-comportada que contamina com o vírus da estupidez tudo o que toca, não ajudam à clareza.

Quando sairmos deste pesadelo, e este quando é opcional, estaremos mais tristes, mais irritados, mais agressivos, mais violentos, muito mais doentes do que quando entrámos. E infinitamente mais pobres. E talvez um dia possamos perceber como é que um cão a dançar na chuva se tornou na nossa alegria.

domingo, 18 de outubro de 2020

Stay Away

Posted: 16 Oct 2020 03:37 AM PDT

«Na entrevista que deu ao "Público", o epidemiologista sueco Johan Giesecke deixou alguns avisos interessantes. Não vou escrever sobre a “via sueca”. Como o próprio diz, saberemos no fim se com a sua estratégia terão números semelhantes aos nossos, sempre com o cuidado de não tentar fazer transposições para realidades económicas, sociais, institucionais e culturais muito diferentes.

Interessa-me o que Giesecke disse sobre a coerência do discurso e das medidas das autoridades suecas: “As restrições e recomendações foram instituídas em Março e não foram muito alteradas. Isso é importante para a forma como o público vê as recomendações e restrições. (...) Vários países impuseram o confinamento, depois abriram o confinamento e a seguir instalaram outra vez o confinamento. Isso confunde as pessoas.” Não há nada mais desgastante do que o confinamento intermitente e espero que nunca cheguemos a esse desnorte que alguns médicos, incapazes de compreender a gestão da psicologia coletiva, já propõem.

Sem ter voltado a confinar, a coisa mais evidente no discurso público tem sido o ziguezague. Inicialmente compreensível (seguimos todos esse estado de espírito), pela ignorância geral. Agora, é inaceitável. Só que a emotividade geral, que salta da euforia para a depressão, marca a nossa forma de estar no espaço público. Como canta Sérgio Godinho, vivemos “entre o granizo e a combustão”. E há, acima de tudo, pouca confiança nas instituições. E as instituições são, elas próprias, fracas. São fracas porque não confiamos nelas, não confiamos nelas porque são fracas. Tanto dá. Esta falta de confiança faz com que sejam elas a acompanhar os humores dos cidadãos. Não sei se a forma de estar dos escandinavos será excessivamente obediente, mas alguém imagina Portugal a aguentar o número de mortes que teve a Suécia e, mesmo assim, confiar no caminho que está a ser seguido? Nem durante uma semana.

A comunicação social contribui para esta impossibilidade. É absurda a rapidez com que se chega ao cume da histeria, com telejornais a anunciaram o caos com 135 pessoas internadas em UCI, em todo o país. Também não ajuda a overdose de covid. Mais uma vez, cito Johan Giesecke sobre os anúncios diários de número de infetados: “É demasiado aberto ao acaso. Os números sobem num dia e pensamos que fizemos algo de errado; noutro descem, também por acaso, e pensamos o contrário. Por isso, fazem-se associações aleatórias na narrativa. Seria melhor termos números uma vez por semana.”

Giesecke tem razão quando defende uma constância nas medidas de prevenção, que não salte do “vão todos para a praia” para o “vamos repensar o Natal”. Que mantenha medidas mínimas e praticáveis, suportáveis pela comunidade durante muito tempo, em vez das exigências irem acompanhando os estados de pânico ou de otimismo da opinião pública. Mas para isso ser praticável era preciso que não sujeitássemos as pessoas a um massacre psicológico diário a que qualquer comunidade acaba por sucumbir e que as pessoas confiassem nas instituições. Ainda assim, podemos tentar. Pedir o possível, mudar pouco, cumprir o pouco possível que é pedido. E baixar os índices de ansiedade.

É no contexto desta fraqueza das nossas instituições, da dificuldade em preparar o SNS e as escolas para a segunda vaga e de um ziguezague entre a dramatização e a desdramatização que surgem as propostas de ontem, com o regresso ao estado de calamidade. Elas seguem o tal movimento incoerente criticado por Giesecke. Era inevitável que o discurso da responsabilidade individual, que corresponde ao discurso da desresponsabilização do Estado, acabasse com o Estado a fazer o que lhe resta: controlar a responsabilidade de cada um.

Para mostrar serviço, chegássemos aos limites do exibicionismo desnorteado. As máscaras obrigatórias na rua, de necessidade discutível, até se tornaram secundárias perante a obrigatoriedade de uso da “Stayaway Covid”. Talvez tenha sido essa a sua função. Nenhum governo democrático pode tornar obrigatória a instalação de uma aplicação nos telemóveis de cidadãos, mesmo que seja em contexto laboral ou escolar, como foi anunciado que se vai propor na próxima quarta-feira. O facto da imposição ser impraticável na sua aplicação e fiscalização, não a torna menos grave. Torna-a apenas mais estúpida. Cria ruído sobre as medidas essenciais, banaliza a lei e viola princípios democráticos sem sequer conseguir mais eficácia por isso.

Mostrar-me-ão muitos números, fazendo por falar mais dos infetados do que dos óbitos. E eu responderei que morreram três mil pessoas nas Torres Gémeas e morrem muitos milhares de pessoas em todo o mundo às mãos de criminosos. E eu não deixo de combater os Bush e os Bolsonaros que por aí andam. Nem uma coisa nem outra me fazem abandonar valores democráticos fundamentais em nome da eficácia. Na sociedade livre onde eu quero viver, ninguém pode ser obrigado a instalar localizadores nos seus telemóveis. E não venham falar das apps que as pessoas voluntariamente instalam. Porque, lá está, é voluntário. Há limites para o show-off para conter danos políticos que qualquer governo sofre com esta pandemia. Esses limites são as portas que abrimos e que, diz-nos a História, nunca mais se fecham.»

Daniel Oliveira

A voo de pássaro

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 17/10/2020)

Pacheco Pereira

"Uma sociedade que troca um pouco de liberdade por um pouco de ordem acabará por perder ambas, e não merece qualquer delas"

Thomas Jefferson a Madison



Numa altura em que não há verdadeira crítica mas muita intriga, ou seja, falsa crítica pelas costas e para as costas, num país pequeno, onde toda a gente depende de toda a gente, ou, como eu costumo dizer, “somos todos primos uns dos outros, a fome é muita e os bens são escassos, por isso a democracia é difícil” (perdoe-se a extensa citação mas a frase saiu bem), vale a pena voltar a Camilo, e aos seus textos polémicos, para respirar melhor. E como hoje vou fazer um daqueles artigos que se escrevem quando não apetece nenhum dos temas correntes, vou acantonar-me na velha expressão francesa de a vol d’oiseau e andar por cima das coisas e supostamente a direito. E que Camilo me guie para que o vol d’oiseau não se torne no voo de pássara.

Começo na pássara. Leiam o texto magnífico e corrosivo, machista até ao limite, que Camilo escreveu, num tom muito moderno usando a imaginação poliglota das palavras, para castigar um livro mau, escrito pela Princesa Ratazzi sobre Portugal “de relance”, como foi traduzido o a vol d’oiseau. Como hoje não há livros maus, porque ninguém diz que eles são maus para não irritar as múltiplas pequenas cortes culturais que dominam o que sobra dos suplementos “culturais” e os vários grupos de pressão associados, fico-me pela sombra do pássaro sobre a pássara.

Que vejo eu no meu voo? O tema que estava predestinado para este artigo era a intenção governamental de nos obrigar a ter por força de lei a aplicação StayAway Covid no telemóvel. Mas como várias pessoas disseram tudo sobre o carácter inconstitucional e violador de direitos que tal obrigação representa, não vale a pena acrescentar mais nada. Tudo estava e está mal feito nessa intenção, de tal maneira que sou capaz de enumerar dezenas de perguntas sobre tal obrigatoriedade cuja resposta é muito complicada de dar, ou mesmo impossível. A proposta também foi feita de “relance”. Acrescento que esta evidente falta de bom senso revela como no Governo prevalece uma forma pervertida de tecnocracia, que acha que tudo se pode resolver com aplicações de telemóvel, sem a mínima preocupação com direitos, liberdades e garantias, que acham que são do mundo pré-Internet.

Afirmo por isso que nunca, jamais, em tempo algum, usarei a dita aplicação, nem que isso signifique ter de deixar de andar de telemóvel. De facto, a pior ameaça nos dias de hoje aos direitos individuais e à privacidade vem de devices e aplicações que usam o actual instrumento de controlo mais eficaz, o telemóvel, até porque está colado ao nosso corpo. Como o relógio de bolso ou de pulso nos impôs o tempo industrial, o telemóvel inseriu-nos na rede de controlos que usam a Rede, uma forma moderna do mundo kafkiano do Processo, onde K. caminha até à morte sem nunca ter acesso a saber o que se passa com ele, quem o acusa, quem o julga, quem o condena.

Ele não teve o poder do voo de pássaro, hoje o verdadeiro poder dos poderosos, perdoe-se o excesso, que é não o de estar na “rede”, que é o destino dos que não têm poder, mas o de a poder ver de cima, qual o sentido e direcção das diferentes teias e, mais do que isso, poder tecê-las com algoritmos numa ou noutra direcção.

A StayAway Covid controla-nos de forma cómoda, barata e eficaz, por isso os governos preferem este tipo de mecanismos a gastar mais dinheiro na saúde pública, e aproveitam-se dos preguiçosos, que somos quase todos nós, que não se importam de trocar a sua privacidade por um falso sentimento de segurança.

Aliás, é o que fazem já todos os dias, aceitando aplicações aparentemente grátis em troca de serviços, numa cultura crescente de promiscuidade na rede, que vai do bullying nas escolas com fotografias às fake news. Sabem quem ganha com isto? Quem sabe o que “isto” é: as grandes empresas de tecnologia e os serviços de informação.

Chegados aqui, estamos no mesmo sítio. Pássaro, pássaro, levanta-te! Mostra-me o mundo lá de cima! Pois sim! O objectivo do voo era escapar do StayAway Covid e não é que o malvado pássaro nos ensina que não voa quem quer, mas quem pode, e me deixou a falar do mesmo que eu não queria falar. Em 700 palavras, só se pode voar como a pássara Ratazzi, baixinho. Acho, mesmo assim, que a vou enviar para aconselhar os nossos governantes a pensarem duas vezes antes de nos colocarem um chip como aos cães.