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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Pelos mínimos não vamos lá

Posted: 24 Nov 2020 03:51 AM PST

«As administrações do Hospital Beatriz Ângelo (PPP) e da Linha Saúde 24 estão a oferecer vales de compras do Pingo Doce para aliciar os seus trabalhadores a fazerem horas extra. Vales de compras!

Em outubro, o concurso para 435 médicos de família deixou 148 vagas por preencher. Uma vez que estes internos passaram para especialistas, o saldo no SNS voltou a agravar-se: tem agora menos 1029 médicos que em janeiro, antes da pandemia. O concurso para a contratação de especialistas hospitalares ainda não está concluído, mas a situação deverá piorar: a manter-se a tendência atual, dos 1000 internos, o SNS vai reter 700.

A falta de profissionais é de tal forma grave que o decreto presidencial que enquadrou a última declaração de estado de emergência permite proibir os profissionais de se despedirem do SNS. Mas, em contramão, o Hospital de Braga e outras instituições entregaram cartas de não renovação de contrato a dezenas de temporários que esgotaram as duas renovações de quatro meses permitidas pelo Governo.

Às debilidades estruturais do SNS, tem-se acrescentado confusão e falta de planeamento. Porquê? Porque é que em vez de carreiras reconhecidas, salários dignos e condições de trabalho, o Estado se permite promover o Pingo Doce e propor aos profissionais um esquema público-privado de angariações? Depois do caos instalado, ¬¬¬¬-finalmente o Governo admitiu conceder aos hospitais autonomia para contratarem alguns profissionais fora do esquema precário por quatro meses. Esta norma (lançada aliás no mesmo dia em que o PS chumbou a proposta do Bloco para dar autonomia de contratação aos hospitais) limita-se porém a algumas especialidades e vigora apenas durante um mês.

Em todas as áreas, a resposta do Governo tem sido fraca e tardia, sempre sob pressão e na estrita medida do mínimo indispensável. Dizem-no todas as análises oficiais sobre a proposta de Orçamento do Estado: Conselho de Finanças Públicas, Conselho Económico e Social, Unidade Técnica de Apoio Orçamental, todos garantem que, se o Orçamento não agrava a crise, também não serve para a contrariar. O FMI identifica Portugal entre os países que menos investe a compensar os efeitos da pandemia. A Comissão Europeia diz que, sem as ténues medidas extraordinárias, o Orçamento seria mesmo de contração, ou seja, agravaria a crise. Segundo a OCDE, Portugal é dos países europeus onde a pandemia motivou menores gastos adicionais em Saúde. E tudo isto porquê, para quê? Para poupar uns pontos de dívida? Agora? De que servirão, se a economia ficar arrasada e o SNS não se levantar?

Vivemos a maior crise das nossas vidas. Se não é agora que se justificam as medidas mais fortes, quando será? As prioridades do Governo estão erradas. E cada dia aumenta o preço que o país pagará por este desacerto.»

Mariana Mortágua

A democracia e os seus inimigos

por estatuadesal

(Daniel Vaz de Carvalho, in Resistir, 25/11/2020)

1 – Os ataques à democracia

A extrema-direita que agora toma abertamente posição política é mais uma consequência da persistente crise capitalista e do agudizar das suas contradições. É o resultado em termos ideológicos de anos de calúnias contra tudo o que mesmo com leves traços progressistas pusesse em causa privilégios do grande capital e de paranoia anticomunista. Os que puseram em prática políticas de direita e neoliberais, contra os interesses populares e a soberania nacional, andaram chocar o "ovo da serpente" fascista.

Em nome da "economia de mercado" ou da "democracia liberal" foi dada liberdade praticamente total ao grande capital, reprimindo os trabalhadores, atacando o sindicalismo das formas mais soezes, promovendo o corporativismo da "concertação social" que se pretende colocar acima do parlamento. Tudo isto evidencia a tendência do neoliberalismo se encaminhar para formas fascizantes.

A linguagem do ódio, da intolerância, do racismo visando outros povos e emigrantes – proletariado fugindo à miséria e ao caos provocados por ações diretas ou apoiadas por países da NATO – sugestionam camadas populares despolitizadas e frustradas devido às políticas a favor da oligarquia.

Os pruridos democráticos do chamado centro caem pelo apoio ou silenciamento perante os neofascismos que se desenvolvem na UE e na Ucrânia, com glorificação de ex-nazistas e colaboracionistas, a supressão de elementares regras democráticas, disseminação do racismo e xenofobia. Caem com o reconhecimento de Guaidó e de outros golpistas na América Latina, caem enfim com o alinhamento com a agenda conspirativa e belicista do imperialismo.

Na ONU, os EUA e a Ucrânia são os únicos a oporem-se a uma resolução da Assembleia Geral, adotada anualmente para "Combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada".

Determinadas ONG, não passam de extensões de serviços secretos, assumindo formas legais, alegadamente defensoras da democracia e direitos humanos. O seu objetivo é a desestabilização social e a fabricação de bem pagos "democratas" ao seu serviço, dramatizando quaisquer problemas existentes ou ficcionados, fazendo campanha contra despesas sociais do Estado, anunciando cataclismos que resultariam de medidas socializantes ou consideradas como tal.

Uma das ONG mais relevantes nestes processos de colocar o poder ao serviço da oligarquia e do imperialismo é a NED (National Endowment for Democracy). Esta Fundação subsidia organizações que distribuem dinheiro no exterior, disponível para associações e membros da classe dominante, partidos da direita, social-democratas e mesmo formações que se pretendem de esquerda.

As consequências destas atividades, são visíveis nos dramas das "revoluções coloridas" colocando no poder verdadeiros ditadores mascarados de democratas, alinhados com à extrema-direita, como no golpe fascista da Ucrânia. As intervenções militares, no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Somália, Iémen, alegadamente para impor a democracia provocaram milhões de vítimas, permitiram a consolidação de organizações terroristas e o drama dos refugiados.

O controlo da opinião pública para apoiar ou não reagir perante estas situações é garantido pelos principais media, veiculando falsas notícias e calúnias com que o império procura diabolizar os que não se lhe submetem como se fosse verdade absoluta e comprovada, abdicando de confirmar factos ou veicular o contraditório, tornando-se assim agentes da conspiração e da subversão. Além disto, nas redes sociais proliferam pro-fascistas difundindo o ódio, deturpando, mentindo sem escrúpulos, atacando a democracia e os democratas.

A CIA controla os principais media dos EUA desde 1950. Os media não fornecem notícias, fornecem explicações de acordo com a oligarquia, garantindo que notícias reais não interferem nos seus objetivos. O livro Jornalistas comprados: Como os políticos, os serviços secretos e a alta finança dirigem os meios de comunicação social alemães ( Gekaufte Journalisten ) do jornalista alemão Udo Ulfkotte mostra que a CIA também controla a imprensa europeia. [1]

O financiamento de candidatos favoráveis aos interesses da oligarquia constitui também um grave ataque à democracia. As eleições nos EUA são disto um gritante exemplo: em 2016 os bancos despenderam 2 mil milhões de dólares a favor dos "seus" candidatos. Em 2020 mais de 3 mil milhões. [2]

2 – A "democracia" oligárquica

Sob o domínio da oligarquia a democracia assemelha-se a O retrato de Dorian Gray . Tal como a oligarquia, Dorian persegue objetivos amorais, egoístas, porém a sua imagem regista todo mal que pratica. Também a degradação ética e a corrupção das práticas oligárquicas agravam as suas contradições e crises.

Sem qualquer espécie de escrúpulos as elites do dinheiro não hesitam em atacar pela calúnia e pela perseguição quem possa por em perigo os seus privilégios. No Reino Unido foi levado a cabo durante anos uma campanha para destruir o ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn que se propunha reverter o neoliberalismo propondo algumas nacionalizações e fazer regressar o partido à sua matriz tradicional sindicalista.

A universidade de Princeton publicou um estudo , evidenciando que os Estados Unidos funcionam muito mais como uma oligarquia do que como uma democracia. Um sistema que, como as recentes eleições comprovam, de tão corrupto apodreceu.

Para ser considerado democrático pela chamada "comunidade internacional" (EUA, UE e aliados) basta que um povo "pratique a democracia à maneira dos EUA e não tenha nada melhor para fazer do que aceitar a liderança de Washington". (de Gaulle, Memoires de Guerre III, Livre de Poche, p. 245). A democracia obtida desta forma é definida pelos interesses imperialistas e oligárquicos, fundamentalmente dos EUA, fazendo uso dos instrumentos ao seu serviço como o FMI, BM, NATO. O resultado são obscenas desigualdades e clara disfuncionalidade social.

Nos EUA apenas três homens (B. Gates, J. Bezos, W. Buffet) possuem tanto como metade da população. A camada oligárquica detém 79% da riqueza do país . A nível mundial os 26 mais ricos supostamente valem tanto quanto a metade de todas as outras, ou 3,8 mil milhões de pessoas. E isto num mundo em que o rendimento da metade mais pobre da humanidade continua diminuindo.

A outra face desta moeda é a pobreza, no país dito "mais rico do mundo": em 2020, estima-se que 11,9 milhões de crianças, 16,2% do total, vivam abaixo da linha oficial de pobreza; 36% de todas as crianças vivem em famílias pobres ou "quase pobres", com rendimentos inferiores a 150% da linha de pobreza. [3]

Existem 2,3 milhões de presos nos EUA [4] , taxa de encarceramento de longe a mais alta do mundo. Segundo o Washington Post, 1 004 pessoas foram mortas a tiro pela polícia em 2019, o grupo Mapping Police Violence registou 1 099. Um total de 10 310 960 prisões foram feitas nos EUA em 2018. [5] Sessenta por cento dos presos pertencem a minorias (negros e hispânicos) [6]

O grande capital controla as relações de produção, define e impõe a ideologia que justifica o seu domínio sobre o Estado, sobre a economia, sobre toda a sociedade, sendo os seus desmandos justificados em nome da "economia". Na UE o lóbi Business Europe, que reúne Bayer, BMW, Google, Microsoft, Shell, Total, entre outras, realizou 170 reuniões em três anos com a elite da Comissão Europeia. [7] Os Estados colocam-se de joelhos perante o grande capital, alavancado pelas privatizações, PPP, subsídios e isenções, obtendo lucros de monopólio.

3 - A "democracia" contra a soberania popular

A democracia é – ou deveria ser – o governo do povo, pelo povo, para o povo. A ideia contida nesta frase sofre de uma dificuldade, uma contradição, é que o "povo", o conjunto dos cidadãos, é uma entidade dividida em classes sociais com interesses e poderes distintos, mesmo antagónicos, para além do que os possa unir numa mesma nação.

Os mecanismos da alienação potenciados pelos media, incluindo a propaganda do consumismo, são um meio do povo perder o controlo sobre as instituições democráticas e seus representantes. Isto explica por que camadas sujeitas à exploração, pobreza e perda de direitos, votem em forças que promoveram e promovem aquelas situações. Essas forças alinhadas à extrema direita conseguem chegar ao poder mentindo, escondendo suas reais intenções ou com golpes de Estado militares ou jurídicos (Brasil, Paraguai, Honduras).

A democracia parlamentar formal tem a sua expressão no rotativismo político de partidos que defendem os mesmos modelos económicos e sociais, equivalentes a um partido único com várias facções (o "centro"). É este o sentido do pluralismo político dependente dos interesses da oligarquia.

Este modelo de democracia é o limite superior considerado aceitável pelo grande capital. Tudo que vá para além disto ao nível da democracia social é combatido. Nestas circunstâncias, se os resultados eleitorais não servirem os seus interesses, isto é, falhando a "cenoura" da sua democracia, usa o "pau" do fascismo, de que as "revoluções coloridas" são uma variante. E se estes processos não se concretizarem, o "mundo livre" aplica sanções, financia conspirações e intervenções armadas. Aliás, mais de 70% das ditaduras existentes no mundo recebem ajuda dos Estados Unidos. Um recorde estranho para uma nação que justifica as suas intervenções no estrangeiro visando "promover a democracia e os direitos humanos" .

Marx referiu-se ao "cretinismo parlamentar, a forma não de dar expressão à vontade do povo, mas de bloquear essa vontade". O parlamentarismo reduzindo a democracia a uma retórica de que o povo é alheado por representantes que renegam praticamente tudo o que prometeram antes de eleitos. As formalidades democráticas, não impediram que os detentores da riqueza se transformassem em novos senhores feudais aos quais quase tudo é permitido em nome dos "mercados", de "dar confiança aos investidores" ou dos "riscos sistémicos".

A UE é um exemplo de como a democracia formal se opõe à soberania popular. O sistema está montado para que eleições não possam em alterar o status quo oligárquico e imperialista ou opor-se aos tratados existentes. Os exemplos sobram nos referendos (Grécia, Irlanda, França) e ameaças de sanções a Portugal se uma efetiva política de esquerda fosse levada a cabo. No PE, 751 deputados – sem real poder – e 10 mil funcionários, ignoram e são ignorados pelos cidadãos. Uma imensa burocracia que vive da propaganda, da chantagem sobre os povos e dos impostos dos cidadãos. Uma democracia submetida a burocratas que se sobrepõem às políticas dos governos e se orgulham de não estarem sujeitos a escrutínio popular.

4 – A democracia, uma conquista sempre precária

A democracia não é uma conquista definitiva, muito menos uma dádiva, mas uma condição que há que permanentemente vigiar e mesmo lutar pela sua preservação, tantos são os seus inimigos e os desvios a que está sujeita. A social-democracia, tarde e a más horas, por vezes acaba por descobri-lo.

Será preferível falar em democratização, a democracia como processo, cidadãos participando não apenas em eleições, mas na gestão da vida coletiva abarcando os diversos aspetos da vida política, económica e social.

Não há democracias perfeitas, são realizadas por seres humanos imperfeitos, existem em sociedades imperfeitas, com interesses contraditórios e têm de se defender dos ataques dos seus inimigos.

Pode dizer-se que os inimigos da democracia são a corrupção, a indiferença e a estupidez, em tudo o que tem a ver com o social, fontes da calúnia, do ódio racista e anticomunista. Tudo isto são consequências de uma democracia falseada ou inexistente dominada pela burocracia e pelo grande capital.

A democracia também é profundamente destruída pela concentração da riqueza , por desigualdades alheias à contribuição de cada um para a sociedade. Acresce ainda um dos principais inimigos da democracia: o imperialismo. Governos democráticos respeitando a vontade popular são submetidos a formas de ingerência e agressão, no sentido de serem revertidos esses processos.

O imperialismo aprofunda as crises que os povos vão suportando, impede saídas realmente democráticas, promove a intimidação, convulsões sociais e insatisfação generalizada, desagregação social, empobrecimento e submissão das camadas trabalhadoras. Perante o poder imperial os cidadãos têm cada vez menos direitos cívicos (designadamente sindicais) e sociais. O pensamento livre é reprimido. Recrudescem as crendices, a superstição e as seitas fundamentalistas. A cultura reflete um profundo declínio, com obras superficiais que renunciam à crítica social centrando-se no psicologismo e no drama individual, basicamente cópia de modelos e êxitos comerciais anteriores.

Tão importante como analisar a forma de governo existente, há que verificar como são respeitados os desejos, as aspirações das camadas mais vastas da população. A democracia envolve subordinar a dinâmica financeira às necessidades do desenvolvimento, económico e social penalizando o rendimento rentista, estruturando no domínio público os sectores básicos e estratégicos.

A democracia tem de se alargar a todos os domínios possíveis da sociedade: nas funções sociais, direitos laborais nas empresas, democracia económica. As privatizações opõem-se a tudo isto. Quem dirige a sociedade são os "interesses económicos" - a oligarquia e os credores financeiros. A dita "democracia liberal", eufemismo para oligárquica, é refém destes agentes.

Uma medida tão evidente como taxar as transações financeiras e controlar os paraísos fiscais, mesmo não pondo em causa o sistema capitalista é combatida tenazmente como "radical", ao mesmo tempo que os países são atacados pelos défices públicos, precisamente pelos que se aproveitam deste sistema iníquo.

Em resumo, tudo isto mostra como a via reformista já não pode ser seriamente considerada – se é que alguma vez o foi. Ao proletariado, para a superação destas contradições, resta a via das transformações tal como o marxismo definiu e preconiza.

O socialismo tem de ser considerado uma livre opção democrática, concretizada na soberania do Estado e no aprofundamento da democracia e em todas as suas vertentes: política, económica, social e cultural. Sem a participação consciente e ativa dos cidadãos neste sentido, a democracia corre o risco de se tornar uma ficção política e as diatribes parlamentares não irem além de uma competição por lugares ao serviço da oligarquia.


1 - Paul Craig Roberts www.informationclearinghouse.info/55571.htm
2 - Cris Hedges, resistir.info/eua/requiem_americano.html
3 - The Shame of Child Poverty in the Age of Trump By Rajan Menon
5 - www.informationclearinghouse.info/55196.htm
4 - The US Spends More Than $80 Billion a Year Incarcerating 2.3 Million People
6 - johnjay.jjay.cuny.edu/nrc/NAS_report_on_incarceration.pdf
7 - Liliane Held-Khawam. Coup d'État planétaire, Bernard Gensane, www.legrandsoir.info/liliane-held-khawam-coup-d-etat-planetaire.htm

Confinamento fofinho não salva nem o Natal nem a economia

por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 20/11/2020)

Consegue-se ferver água a baixa temperatura? Quando se trata de bactérias (neste caso vírus), as nossas intenções são inúteis. Ou há eficácia, ou não há. As regras da natureza são claras. E esta é a principal razão porque é ineficaz tentar salvar vidas com boas intenções. O vírus não entende essa linguagem e está a progredir através de todas as brechas.

A política é a arte de gerir expectativas e o primeiro-ministro tem-se esforçado para manter o país a funcionar com a liberdade possível e sem gerar uma despesa ilimitada no futuro. Mas este é um momento decisivo. Há uma luz ao fundo do túnel - a vacina. Trata-se agora de aguentar o Inverno com o menor número de vítimas possível.

Esqueçamos de vez a contrainformação e o nevoeiro dos que transformam a doença em política. Da mesma forma que o terror sobre a primeira vaga era excessivo, a displicência nesta segunda é assinalável. Só que a realidade não oferece qualquer dúvida: basta ver-se os números dos cuidados intensivos. Não há falta de oxigénio no sangue por razões psicológicas. Como abandonar os doentes covid sem cuidados médicos instantâneos? Como não priorizar doenças de socorro imediato (covid e outras) face a doenças de evolução mais lenta? Estamos num contexto de catástrofe mundial... Exigimos o impossível, depois de anos a desguarnecer o SNS.

Face a isto, e infelizmente, o confinamento ainda é a estratégia mais eficaz para impedir uma progressão exponencial do vírus. É altamente rudimentar e repleto de danos colaterais, mas funciona hoje como funcionou há séculos. Afinal nós, seres humanos do século XXI, continuamos igualmente vulneráveis aos vírus, tal como os nossos antecessores - vítimas da peste negra, da peste bubónica ou da pneumónica.

O Governo tenta, a medo, que este atual regime de confinamento a meio gás reduza os números. Mas, a este ritmo, a diminuição do contágio não está à vista. Pior: este sistema é a versão "soft" do que foi praticado entre Março e Junho. Por se tratar de uma segunda edição da mesma coisa, é muitíssimo destrutivo para alguns sectores económicos - volta a fazer recair sobre os mesmos os custos da paragem. Ou seja, restauração, cultura, em boa parte o comércio e, inevitavelmente, o turismo, estão outra vez debaixo de água.

Paralelamente, a indústria, a construção e a grande distribuição ficaram sempre de fora. É um tabu por causa dos custos?

Não seríamos mais eficazes com paragens gerais nos concelhos críticos? Foi isso que ontem no Infarmed se discutiu: diminuir a mobilidade das pessoas. Ora, porquê atingir sempre a mesma "metade" de pessoas e empresas?

Para o Governo agir mais depressa, precisa de abdicar de duas ideias-feitas.
- A primeira, a de que as escolas têm de se manter sempre abertas. O princípio teórico está certo, a inflexibilidade não. Qual seria o problema se as escolas fechassem duas semanas, entre os feriados do 1 e 8 de Dezembro, ou mesmo o mês de Dezembro todo? Porque a questão é: o contágio não sucede nas escolas, nem nos transportes, nem nos restaurantes, nem nos shoppings... Não acontece em lado nenhum... Mas a covid continua...
- Segundo ponto: o Governo pressupõe que confinamentos curtos, mas de choque, são piores para as empresas. Na verdade, não são. Sem um verdadeiro choque nas cadeias de transmissão, ou seja, uma paragem total de todos os sectores não essenciais, com indústrias e construção incluídas, congelando a mobilidade de pessoas, não será possível obter resultados em pouco tempo. Todas as regiões críticas da Europa acabaram por fazê-lo.
Daí ser uma pena perder-se a hipótese de duas semanas de paragem rigorosa e geral, entre 28 de Novembro a 9 de Dezembro, pelo menos nos concelhos em estado crítico. É a janela temporal mais barata e eficaz que temos à mão para abrandar significativamente a propagação. São cinco dias úteis que valem 11 - e as empresas que não podem continuar a laborar em teletrabalho deveriam excecionalmente suportar este custo (muitas delas parariam pela primeira vez).

É urgentíssimo. Estamos perante a tempestade perfeita. Além do risco de colapso do SNS, sabemos que as pessoas vão querer celebrar o Natal. A natureza humana é gregária. Deveríamos começar a dar sinais de que o Natal se deve fazer de forma menos alargada porque sabemos que as pessoas não vão querer ficar sozinhas. No entanto, não há forma de manter máscaras à mesa nem de separar avós e netos. Com que números vamos lá chegar? Com cinco ou sete mil casos por dia? Numa situação dessa gravidade, comemorar o Natal em família como habitualmente, representará o momento de maior risco em toda a pandemia covid.

Aliás, para evitar ainda mais consequências quanto ao Natal, deveríamos igualmente confinar entre 24 de Dezembro e 3 de Janeiro (de novo 11 dias) porque na prática, só 3 são dias completamente úteis (28, 29 e 30 dezembro) em muitas indústrias e serviços. Estes três dias poderiam entrar a desconto de férias de 2020 ou 2021 - seria um contributo nacional de todos. Dessa forma, o ambiente familiar ficaria em "bolha", evitando a multiplicação exponencial de casos no pós-Natal. E, claro, infelizmente, nem vale a pena falar-se de reveillón...

Com clarificação e antecipação, as empresas e os trabalhadores podem saber com o que contam: quando podem fazer compras e em que horários; como organizar o trabalho em casa; quando se pode fazer uma viagem de Natal e para onde.

Pelo contrário, o atual confinamento fofinho deixa-nos em lume brando, semana após semana. Isso mata mais postos de trabalho do que gerar momentos-choque e, depois, deixar a vida correr, com a normalidade possível neste contexto.

Abrir-fechar-abrir-fechar. Com eficácia e noção de que o vírus não vai desaparecer. Estancar mobilidade. Abrandar o contágio, sabendo que depois ele subirá de novo. Gerir psicologicamente o estado anímico da população. Evitar-se o confinamento infinito como o da primeira vaga.

Estamos no momento decisivo para limitarmos uma hecatombe humana em Portugal, tal como sucedeu em Itália e Espanha. Aliás, se soubéssemos que haveria um bombardeamento nazi sobre a nossa cidade durante três meses, mas que a guerra acabaria logo depois, não nos manteríamos a pão e água num bunker durante esse tempo?

E neste caso, nem bunker, nem pão e água, nem bombas. Bom... talvez não sejamos da mesma fibra dos nossos avós.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Quando o silêncio é uma forma de cumplicidade

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 22/11/2020)

Em 46 anos de democracia nunca assisti a uma campanha tão bem orquestrada e eficaz contra o PCP como aquela que os média, os partidos concorrentes, as redes sociais e os fascistas ressuscitados organizaram de forma demolidora, e mantêm em marcha.

Em política não há gratidão, mas exige-se pudor nas atoardas, um mínimo de decência nos ataques e alguma verdade no combate democrático. Podem esquecer-se os militantes que morreram nas masmorras da Pide, os combatentes contra a ditadura, os torturados, assassinados, demitidos da função pública e deportados; pode esquecer-se o seu sofrimento, o contributo do PCP para a arquitetura democrática do Portugal de Abril, para o equilíbrio partidário da democracia oferecida pelo MFA; pode esquecer-se a sua participação na elaboração da CRL, na organização sindical dos trabalhadores e no combate democrático; o que não se pode negar ao PCP ou a qualquer outro partido é o direito de reunião.

As reuniões partidárias não podem ser proibidas pelo Governo, como pretende o bando de agitadores ignorantes que o acusa de permitir aos comunistas o que não permite a outros portugueses. Simplesmente não pode. É a Constituição que o impede. Qualquer jurista explica isso a quem está de boa fé. É uma mentira útil, que ataca o PS e o PCP.

A restrição de direitos individuais que a AR, pluripartidária, tem votado não engloba as reuniões dos partidos. A suspensão da atividade partidária, quiçá dos partidos políticos, e da própria democracia é o desejo que nasce, cresce e se reproduz no lamaçal fascista que intoxica as mentes e corrói a democracia.

Os salazaristas, perdida a memória e a vergonha, esquecidos dos crimes praticados pelo ELP e MDLP contra a democracia, voltaram agora a conspirar e a quererem suprimir os direitos de quem lutou por eles. Aos comunistas não conheço, depois da normalização democrática, já lá vão 45 anos, a mais leve tentativa de conquista do poder pela via revolucionária, uma única proposta de lei contra a democracia, qualquer tentativa de destabilização política ou embrião de atividade conspirativa, ao contrário de outros partidos.

Quando o silêncio mata, cada um de nós que se cala torna-se cúmplice de uma traição à democracia, a esta democracia liberal que a pluralidade partidária mantém viva, mesmo nas horas amargas e incertas que estamos a viver. Perante a obscena perseguição ao PCP, a lembrar a ditadura fascista, é meu dever deixar aqui a minha solidariedade ao partido que encontrei na luta contra a ditadura e contra a guerra colonial.

Não queremos um mero regresso ao normal, queremos mais e melhor

Posted: 23 Nov 2020 03:55 AM PST

«A pandemia de covid-19 já roubou a vida a mais de um milhão de pessoas em todo o mundo. Para além destas trágicas consequências, evidenciou também as desigualdades e as fragilidades a que a sociedade se encontra sujeita no século XXI.

Segundo as Nações Unidas, iremos experimentar a maior recessão económica de que há memória desde a Segunda Guerra Mundial. Estima-se um crescimento dramático da pobreza extrema e portanto o regresso da fome. Portugal é um dos países que poderá sofrer um maior nível de destruição económica.

No segundo trimestre de 2020, segundo dados do Eurostat, o país teve a quarta maior contracção do PIB da União Europeia e desde Fevereiro já perdeu 180 mil empregos, segundo dados do INE. Inversamente, Portugal é o quarto país que menos despende nas medidas de combate à pandemia num conjunto das 38 economias ditas avançadas - cerca de 3,2% do PIB. Somos, portanto, um dos países que mais sofrem a nível económico e aquele em que o Governo menos investe para travar as consequências da crise pandémica.

É necessário reconhecer que os desafios que vivemos seriam difíceis para qualquer governo, mas o esforço que está a ser feito parece ser insuficiente, sobretudo no que respeita ao sectores mais precários da sociedade. Travar o apoio directo às famílias e às pequenas e médias empresas enquanto se aguarda a chegada dos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência é como pensar salvar uma planta cuja raiz já secou, despejando sobre ela um enorme balde de água. O défice público que tanto se pretende conter só tenderá a derrapar com a quebra do consumo e o aumento dos encargos do Estado com prestações sociais.

Mobilizar a sociedade em torno do futuro implica manter a sua vitalidade, dialogar colectivamente sobre as estratégias adoptadas e planear uma transição que não deixe vidas suspensas. Pelo contrário, assistir à degradação das suas condições é entregá-la de mão beijada ao desespero e às sementes onde germina o fim da democracia.

Sabemos que a resposta à Grande Depressão implicou o maior esforço de equalização social de que há memória através de uma intervenção pública robusta. Reduziram-se as desigualdades e a concentração de capital, formaram-se os Estado-Providência, consolidaram-se os direitos sociais e regulou-se o funcionamento do mercado. É necessário, por isso, que este Plano de Recuperação e Resiliência seja acompanhado por uma alteração de paradigma muito maior.

É urgente repensar o panorama de políticas públicas e canalizar os investimentos no sentido de resolver simultaneamente as assimetrias que se sedimentaram no quotidiano e no território. Por um lado, solidificando as condições básicas da existência, induzindo as acessibilidades a uma habitação digna, a um salário justo e a um contrato de trabalho seguros, à qualificação e à saúde universais, a um ambiente saudável. Por outro, interrompendo um modelo de desenvolvimento territorial baseado na competitividade e especialização em prol do mercado global que resulta num país polarizado, pouco coeso e pouco resiliente.

O impacto da pandemia em Lisboa e no Porto demonstra de forma evidente as vulnerabilidades desta opção. Se estas cidades não se tivessem tornado num mero produto comercializável, se a sua economia fosse mais diversificada, se a habitação não se tivesse transformado num mero activo financeiro ou num apêndice da actividade turística, se não se tivesse optado pelo desaparecimento do seu tecido social talvez estes centros urbanos estivessem hoje em muitos melhores condições para resistir aos impactos desta crise.

O Governo promete através dos fundos europeus investir 1633 milhões de euros para reestruturar o parque de habitação social e criar a bolsa nacional de alojamento urgente. É uma boa notícia, mas os sinais são contraditórios. No Rossio foi aprovada recentemente a transformação de um quarteirão inteiro num enorme centro comercial, os preços da habitação continuam a subir embora a menor ritmo e os programas de incentivo ao arrendamento de longa duração não constituem mais do que uma benesse aos proprietários, financiada com os nossos impostos para compensar a quebra colossal da procura turística. Situação ainda mais perversa quando a indústria do alojamento local é precisamente aquela que é mais facilmente convertível.

Em síntese, necessitamos de repensar o papel do Estado e de abandonar definitivamente o modelo em que o mercado é o grande soberano dominando sobre todas as esferas da vida, da economia, da política ou do ambiente (como já nos alertou o filósofo Karl Polanyi), transitando para um modelo baseado na cooperação, na reciprocidade, na participação e numa verdadeira sustentabilidade. O mundo do mercado desregulado é o cenário das grandes divisões sociais, dos conflitos geoestratégicos, da ascensão do fascismo e das grandes catástrofes ambientais. Como diria Thomas Paine, “these are times that try man’s souls” e é por isso que não nos devemos deixar vencer pelo cansaço. Agora que já é possível imaginar o fim da pandemia, devemos exigir não o regresso a uma vida normal, mas a viagem a um futuro capaz de a transcender largamente.»

Sebastião Ferreira de Almeida