Translate

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Ainda há vida além do Orçamento

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 27/11/2020)

Quando escrevo estas linhas, ainda não se conhecem as votações finais do Orçamento. Mas parece evidente que o Governo tem maioria para o aprovar, mesmo que a sua fragilidade tenha estimulado uma catadupa de alterações cuja coerência é nula e cuja aplicação será episódica, preservando a condição de Costa: só se mexe no que for provisório, o que for estrutural é recusado. Em todo o caso, vale a pena perguntarmo-nos sobre a vida que vem depois deste Orçamento de manta de retalhos.

CRISE POLÍTICA NÃO HÁ, MAS HAVERÁ

Era óbvio desde há semanas que o Governo não tinha condições para precipitar uma crise. É certo que não foi sempre isso o que prometeu. Numa entrevista ao Expresso a 21 de agosto, o primeiro-ministro jurou a demissão se não tivesse maioria orçamental. Em setembro ainda andou pelas bocas do mundo a hipótese de forçar uma dissolução do Parlamento para eleições no Natal, ideia que o Presidente terá destroçado de uma penada. Em todo o caso, a ameaça durou menos de dois meses, e o próprio primeiro-ministro deu o dito por não dito e, a 19 de outubro, garantiu que “não viro as costas”. A jogada seria demasiado arriscada, ficando um Governo de gestão pendurado durante muitos meses e nem sendo certo que o Presidente aceitasse a inevitabilidade de eleições.

Desde então, os ministros anunciam e desanunciam intermitentemente uma crise, que se tornou uma espécie de bordão ocasional. O facto é que não haverá crise política neste inverno. Mas, como já conhece a forma como o Governo gere a coisa, percebeu que a ânsia de um terramoto salvífico está inscrita nas estrelas desde a noite daquele domingo de outubro de 2019, quando as televisões anteciparam o resultado eleitoral e confirmaram que o PS não tinha maioria absoluta. Por isso, o Governo preparará uma crise no fim de 2021, logo depois das autárquicas, se o puder fazer. Não é defeito, é feitio.

UM ANO DE ORDEM OU DE DESORDEM?

Tudo adiado por um ano, então. O problema é que o tempo é um padrasto amargo e não corre a favor desse jogo. A primeira razão funesta é a aproximação entre o PSD e o Chega, que Rui Rio abençoou na primeira ocasião. Em consequência, deixou de haver espaço para o bloco central e, se vai a eleições neste preparo, a direita ‘cheguificada’ fica incapaz de disputar a vitória. Entretanto, a vítima colateral é o PS, que, sempre longe da maioria absoluta, só poderá governar se fizer um acordo com a esquerda. Tudo o que recusou agora vai entrar pela porta principal. Pode provocar uma crise em 2021, que só volta a esta casa de partida.

Na verdade, o PS não cedeu agora em nenhuma das propostas essenciais da esquerda, mas já admite que terá de as negociar. Um exemplo é a constituição de carreiras de profissionais de saúde, a única forma de os ir buscar ao privado. A resposta até hoje foi que nunca isso acontecerá, mas também esta semana apareceu a promessa de se pensar no assunto, naturalmente desde que nada se faça para já. Outro é o caso das leis laborais. Na entrevista da semana passada a este jornal, Ana Catarina Mendes foi taxativa: “O PS tinha dito que [essas leis] não são para mexer, porque a legislação do trabalho não pode ser mexida todos os dias.” O “todos os dias” é aqui uma graça, algumas das medidas em causa têm 17 e outras 8 anos. Mas, no Parlamento, o PS já prometeu abrir a porta a mudanças nalgum dia, porventura esperando minimizá-las. Só que o desemprego e a falta de médicos vão ser cruéis para este tabu em cada dia de 2021, e não vejo como o PS governará no futuro se não abdicar dele.

Há ainda uma segunda razão para notar que o tempo não ajuda. Está registada no gráfico ao lado, com dados do relatório da Comissão Europeia da semana passada. Diz a Comissão que só há três países — Portugal, Bélgica e Finlândia — cujo Orçamento para 2021, retirando as medidas provisórias, opera um “impulso negativo” ou uma contração. Todos os outros aumentam o Orçamento estrutural, como é razoável numa situação de crise. Portugal volta a ser o bom aluno, e isso não é boa notícia. Vai sentir-se todos os dias nos serviços de saúde e nas limitações do investimento ou das políticas sociais. O facto é que mesmo o truque deste Orçamento, muitas medidas provisórias para depois chegarmos à austeridade, já está a ser testado pelo improviso e desleixo da resposta à segunda vaga da pandemia.

E HÁ O MONSTRO NO ARMÁRIO

Finalmente, há aquilo de quem não se pode dizer o nome, a banca. Nada de novo nas promessas: em novembro de 2008, Teixeira dos Santos dizia que “não é de esperar que haja impactos significativos a nível orçamental devido à nacionalização do BPN”, já lá vão mais de 5000 milhões; em agosto de 2014, Passos Coelho garantiu que “a solução anunciada pelo Banco de Portugal para o BES é aquela que oferece maiores garantias de que os contribuintes portugueses não serão chamados a suportar as perdas”, foram logo 4900 milhões; em março de 2017, António Costa garantia que a venda do Novo Banco à Lone Star “não terá impacto direto ou indireto nas contas públicas nem novos encargos para os contribuintes”, já lá vão cerca de 3000 milhões. Crescerá a fatura em 2021, e será preciso solucionar o Montepio, talvez decidir sobre fusões ou vendas de outros bancos. Sem proteger a banca, o Governo viverá em sobressalto.

Por isso, o Orçamento não precisava de uma panóplia de promessas, exigia soluções para a saúde e garantias de que não somos atropelados pelo desemprego. É precisamente onde falha. Se o Governo ou os partidos não percebem que a covid é um novo mundo, é melhor que olhem para as urgências dos hospitais e percebam onde não têm o direito de falhar.


O planeta, agora é que é?

Depois da desilusão, a ilusão. Biden tinha nomeado para a sua equipa um lobista do petróleo, levantando um coro de críticas, mas anunciou depois que o enviado especial para o clima será John Kerry, ex-secretário de Estado de Obama que assinou o Acordo de Paris. Os movimentos ambientalistas ficaram na expectativa. Mas é cedo para entusiasmos.

O problema é que a poluição não constitui um erro, é antes um sistema. O que move as indústrias poluidoras, em particular as mais poderosas, é a capacidade de imporem regras que facilitam a rentabilidade da produção no curto prazo. Não é de supor que abdiquem desses lucros. Por outro lado, há uma parte oculta da poluição. Segundo o “The Economist”, as 250 maiores empresas do mundo controlam as unidades mais poluidoras, que geram 86% das emissões, com destaque para os agentes financeiros globais (por exemplo, a BlackRock seria responsável por 10% desse total, a Vanguard por 6% e a State Street Capital por 3%). Acontece ainda que estes dados podem ser imprecisos. Ora, somente 4% dos ativos geridos pelo sistema financeiro são de atividades em que há registo de emissões. Dos outros não se sabe. Para mais, as empresas que aceitaram recorrer a modos alternativos de produção têm pouco peso: no índice S&P 500, só três empresas se dedicam a produção de energia renovável e, juntas, não chegam a 1% da capitalização total representada no índice.

Acresce que, mesmo quando foram impostas novas regras a alguns dos grandes poluidores na pandemia, não é certo que tenham impacto significativo. O Governo francês, por exemplo, determinou que a Renault e a Air France-KLM só teriam acesso a fundos de apoio se aceitassem um compromisso de redução de emissões. A Alemanha fixou regras parecidas. Só que se está para ver o que acontecerá quando a atividade normal for restabelecida. Ora, se é assim com estas empresas, como será com a finança mundial, que vive da absorção de rendas e não aceita a sua redução? Veremos se Biden quer impor novas regras e se Kerry as negociará com outros Governos. Até agora, só se tem perdido tempo.

Aprenda a aldrabar com os médicos pela verdade

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/11/2020)

Daniel Oliveira

aqui escrevi sobre esse grupo que usa a megalómana mas reveladora denominação de “Médicos pela Verdade”. De como, sem serem especialistas da área, se entretêm a lançar suspeitas sobre o que diz quem realmente investiga o coravírus ou trabalha de forma mais direta com a pandemia e, com o grau de segurança possível, vai dando ao Estado a informação para que tome decisões. Como enganam milhares de pessoas nas redes sociais, lançando a confusão e a dúvida fora dos lugares onde se faz o debate científico e vão convencendo os incautos que o contraditório científico se faz em posts no Facebook. Mas, acima de tudo, de como estes médicos, psicólogos, dentistas e enfermeiros têm o atrevimento de, apesar de meterem a foice em seara alheia, se atribuírem a propriedade da “verdade”, insinuando que os especialistas da área andam a enganar os cidadãos.

A Ordem dos Médicos, com a lentidão que é comum quando não estão em causa as lutas políticas e corporativas do seu bastonário, lá avançou com um processo disciplinar para quem, tendo deveres deontológicos, espalha desinformação nas redes. Desinformação que, no meio de uma pandemia, pode custar vidas. Mas era inevitável que a coisa acabasse por ir mais longe. E foi: uma das fundadoras dos Médicos pela Verdade foi apanhada, no Telegram, a “prescrever" uma forma de ludibriar os testes, para darem negativo.

Maria Margarida Gomes de Oliveira é mesmo médica (tem dado a cara pelo movimento) e, perante uma mãe cujo filho de 22 anos foi chamado para fazer o teste de rastreio do SARS-CoV-2 porque tinha contactado com uma pessoa infetada, disse-lhe para ele recusar fazer o teste PCR e, “se a pressão pidesca" fosse muita e o jovem não conseguisse escapar, usar a tal receita para que o teste desse negativo. Apesar de se defender com sigilo profissional, não há defesa possível. A “informação” foi dada com várias pessoas a ler. Se aquilo era uma consulta, a violação do dever de sigilo foi da própria. A verdade é que a “receita” foi replicada por muitas pessoas. E até foi repetida a uma grávida, que pretendia garantir que medidas de segurança não fossem tomadas, afastando-a do recém nascido – o que, na realidade, não está previsto. Alguns especialistas ouvidos dizem que a “receita” da anestesiologista é pouco eficaz. Como recordou Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, este comportamento pode ser punido pelo artigo 283.º do Código Penal.

Da parte criminal tratarão os tribunais, se isto lá chegar. Da parte disciplinar, tratará a Ordem, que também já abriu um processo a esta médica.

Mas seria interessante que o bastonário, no intervalo do seu trabalho sindical e político, condenasse de forma clara e audível estes irresponsáveis, contribuindo para os desautorizar aos olhos dos cidadãos. Há médicos a usar o título que lhes é garantido pela Ordem para ensinar pessoas a falsear testes no meio de uma pandemia. Bem sei que é politicamente mais promissor fazer guerrilha contra quem, mal ou bem, a tenta combater.

Até já há promessas de carreira autárquica. Mas, apesar de tudo, a Ordem dos Médicos ainda tem a função de regular a atividade médica. E isso faz-se por via disciplinar e tomando posições públicas. A forma descarada como estes médicos espalham desinformação mostra que não temem o poder disciplinar da Ordem ou o julgamento dos seus pares. Lá saberão porquê.

Se é “pela verdade”, comece por desconfiar

Posted: 25 Nov 2020 03:57 AM PST

«Nas profundezas das redes sociais, trava-se uma guerra. Há relatos de batalhas sangrentas no Twitter, das quais poucos escapam ilesos. Repórteres de guerra infiltrados em grupos de WhatsApp dizem ter avistado homens adultos a marcar sessões de porrada. Tudo por causa de um vírus que parece uma esfregona. Já fui apanhada numa escaramuça provocada por um bocado de tecido manhoso com caveiras ou patinhos que mede aproximadamente 9,5 por 17,5 centímetros, vulgo máscara, mais conhecida entre os mais radicais como “focinheira” ou “mordaça”, o símbolo máximo da subjugação da “carneirada” à narrativa oficial do medo. Afiançaram-me que existem estudos sobre os efeitos neurológicos irreparáveis causados pelo seu uso. Manifestada a minha preocupação com a possibilidade de ser operada por alguém que passa uma boa parte da sua vida com a ela colocada, garantiram-me ser a sua substituição pela abertura de janelas nos blocos operatórios recomendada pelos melhores cirurgiões.

Por mais tentador que seja tratar por igual todos os que contestam a opção tomada para gerir a pandemia, não consigo apelidá-los em bloco de “covidiotas” ou “negacionistas”, mesmo se os há pelo meio. Muitos estão genuinamente preocupados com as consequências que as políticas seguidas podem deixar no equilíbrio complexo entre liberdade e segurança. Sou inclusive obrigada a reconhecer uma forte tentação em atirar-me para os braços do negacionismo sempre que oiço “na China é que resolveram bem o problema”. Também se deve reconhecer a importância de vozes dissonantes que, desde março, chamam a atenção para a dimensão dos danos colaterais - na economia, na nossa sanidade mental e até no próprio serviço nacional de saúde, todo ele direcionado para os doentes covid.

Onde se torna difícil acompanhar muitos dos que clamam ser “pela verdade” está na sua frequente posição de superioridade em relação à “carneirada”, que não questiona nada e aceita tudo. Esses carneiros, que não tiveram tempo para tirar um curso acelerado em medicina com especialização em epidemiologia e virologia, mais um bacharelato em matemáticas aplicadas e estatística e uma pós-graduação em gestão dos sistemas de saúde, enfiaram uma máscara no bolso e foram à sua vidinha o melhor possível. Em última análise, se alguém nos vai safar, na saúde e na economia, são eles.

Suspeito que muitos dos agora agarrados à narrativa da Grande Ilusão sentem tanto medo como os “covideiros” que não largam a máscara nem para dormir. Enquanto estes últimos estão piamente convencidos que se todos cumprirmos as regras o vírus desaparece - o que é pouco provável -, aqueles procuram uma escapatória na recusa do perigo. O seu negacionismo é só uma outra maneira para conseguirem fazer o mais difícil nesta epidemia: sair de casa e navegar na incerteza.

Se só fosse assim, não vinha grande mal ao mundo. Mais, até tem vantagens. Se ninguém questionasse as grandes opções, talvez não fossem tantos a insistir que todas as medidas devem conseguir o máximo controle do contágio com o dano mínimo na economia. E também podíamos assistir a um baixar da guarda na necessária vigilância perante o apetite voraz do Estado em regular ad infinitum a vida em sociedade em prol do bem comum.

Mas existe um ponto em que se torna necessário chamar a atenção e pedir cautela. No meio desta azáfama em fazer ver enfim a verdade aos seus semelhantes, acontece não raro conseguirem apenas baralhar ainda mais quem está a tentar fazer o melhor possível para conseguir resolver a gincana em que foi enfiado. Por existir o medo tantas vezes denunciado, exige-se muito cuidado quando se oferece aos outros uma narrativa de negação do perigo. Em pleno cansaço pandémico é demasiado apetecível baixar a guarda. Ora, qualquer que seja a sua posição na guerra do covid, ninguém minimamente sério nega passar uma grande parte da solução pela responsabilidade individual. Será sempre contraproducente dar uma desculpa para que esta diminua.

Da próxima vez que depararem com um vídeo ou texto proveniente de uma qualquer associação que se autoproclama “pela verdade”, comecem por verificar melhor a sua origem e a sua credibilidade. Recorram ao mesmo critério usado perante um país que se apresenta como “democrático”: se o fosse mesmo, talvez não precisasse de o apregoar logo no nome.»

Eugénia Galvão Teles

Hoje é Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres e o PSD é nosso inimigo

por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 25/11/2020)

Focando-nos em Portugal, em 2020 foram assassinadas 30 mulheres: 15 em relações de intimidade. Desde 2004, já foram assassinadas 564 mulheres. Sabemos que na esmagadora maioria dos femicídios a violência não acontece num ato isolado, ela é histórica, prolongada e, pior, conhecida de terceiros, que nada fazem. A tragédia de tantas histórias cheias de violência histórica deixou para trás, só este ano, 21 crianças órfãs. A história de cada uma dessas crianças está na sua memória que certamente condicionará a possibilidade do futuro.

Não morremos por acaso. A dimensão de género no femicídio é evidente. Ninguém usa da sua voz pública para quebrar o coro unívoco contra o rio de sangue que todos os anos corre em nome da misoginia. Mas não morremos por acaso. Não somos espancadas, humilhadas e torturadas psicologicamente por acaso.

A violência doméstica, o femicídio, repousam numa permissão histórica: essa de, por defeito, serem os homens que mandam, que podem, que ditam, que têm e que definem.

É por isso que quebrar o ciclo infernal da nossa morte começa, de facto, na educação para a igualdade. O sexismo pode ser desconstruído. A escola tem o dever constitucional de o fazer, já que concretiza, como já escrevi, uma Constituição não neutra em relação à igualdade de género, como de resto à não discriminação racial ou à não discriminação em função da orientação sexual. E, já agora, todas estas (não) discriminações andam de mãos dadas. Os nossos corpos, as nossas existências, sobrevivem de forma diversa consoante os fatores históricos de discriminação se cruzam numa mesma pessoa e a lei ainda não está preparada para responder à mulher que, por exemplo, é pobre, negra e lésbica.

A permissão histórica que referi foi-nos ensinada num contexto português mal acordado de 48 anos de menorização das mulheres não votantes, propriedade dos maridos, adúlteras penais, inibidas em várias profissões, subjugadas aos “chefes de famílias”. Um contexto, assim, até 1974, legalmente sexista e também violentamente homofóbico e racista. A revolução não revolucionou tudo e todos, não varreu mentalidades, não demitiu juízes, pelo que as pessoas da minha geração, nascidas já em democracia, aprenderam direitinho a aceitar a desigualdade como o estado natural das coisas.

As antecâmeras da nossa morte foram experienciadas por todas nós, isto é, a raiz da misoginia que mata, a tal miséria que felizmente agora se despromove, com esforço, nas escolas precisamente educando para a igualdade. Mas eu, como tu e tu e tu, aprendi por defeito a mudar de passeio quando me diziam na rua “comia-te a cona toda”, nunca me ocorreu queixar-me, não é? Aprendi a viver a violência sobre o meu corpo devidamente objetificado perguntando da porção da minha culpa naquilo: então não ouvimos todas as perguntas sem simetria “porque é que lá foste” ou “porque é que subiste” ou “porque é que o deixaste entrar”? Aprendi a falar baixo para não passar por histérica, fiz a escola toda da subjugação estética para agradar os homens ou para parecer respeitável, aprendi a admirar muito, mas muito, homens e mais homens, não nos davam referências femininas e o espaço público era e é o que é. Aprendi a ser inquirida sobre o que fiz e o que não fiz, homens cheios de virilidade convictos de que estavam no direito de averiguar da pureza do meu percurso, confirmando o binómio das putas e dos garanhões.

É por isso que tenho a certeza que podia ter morrido. As mulheres que morreram este ano e nos últimos anos não são abstrações. São mulheres concretas que amaram como nós, que viveram os anos que viveram num país que ainda está longe de nos ver como iguais.

Temos de destruir as antecâmaras da nossa morte, e isso passou, infelizmente, a ser uma guerra inesperada. A ciência sabe que a igualdade só se conquista, após séculos de opressão, se a aposta começar cedo, na educação. Da linguagem aos papéis de género, tudo, mas tudo tem impacto no número de mulheres que em cada ano constam de uma lista infernal.

Acontece que esta simplicidade, de que depende a sobrevivência dos nossos corpos, é negada não apenas por maluquinhos, por Bolsonaros e afins, mas por um novíssimo PSD, que se juntou numa proposta de alteração ao OE2021 ao Chega (e ao inexistente CDS) para a realização de uma “inquirição” sobre a alegada existência de “ideologia de género” nas escolas, ou seja educação para a igualdade.

Se o PSD é Damares e Ventura, em nome das nossas vidas, bem como das pessoas racializadas e LGBT, passou de adversário a inimigo.

Uber Eats: na pandemia, travar os vampiros

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/11/2020)

Daniel Oliveira

Os liberais de lombada, que abundam neste país, enchem a boca com o papel regulador do Estado, mas recusam que ele exerça essa função. Quando chegamos aos debates práticos entregam-se à ilusão infantil de que o mercado se regula sozinho e tende naturalmente para o equilíbrio. O Estado regula para impedir a imposição de condições laborais que, aproveitando margens de desemprego mais altas, deixam os trabalhadores no limiar da pobreza. Regula para impedir que o poder de um ou poucos operadores esmague concorrentes, num processo de concentração que tem efeitos nefastos para toda a economia e consumidores. Regula para impedir que o poder de uns poucos lhes permita impor condições injustas a fornecedores, levando à concentração dos ganhos na distribuição. Quem se opõe a este tipo de regulação não é liberal. Limita-se a representar interesses privados específicos.

Num tempo de pandemia, em que o Estado impõe restrições à atividade económica (algumas pouco racionais), esta regulação tem de ser mais apertada. Num momento em que é o próprio Estado a limitar o normal funcionamento do mercado, é natural que se impeçam horários absurdamente alargados aos hipermercados, que nenhum espaço de menor dimensão poderia acompanhar. Só assim se evita que a pandemia sirva para destruir toda a concorrência às grandes superfícies. Ao contrário do que ouvi de alguns, esta limitação nada tem de ideológico. Não por acaso, a exigência veio de Fernando Medina e Carlos Carreira. É nestas crises que os grandes esmagam os pequenos. E o papel regulador do Estado, ainda mais quando ele próprio cria, por razões sanitárias, limites ao funcionamento, é impedir que isso aconteça.

Imagino que, nas próximas semanas, o lóbi da Uber e restantes distribuidoras voltará a fazer sentir a sua influência junto de diretores, editores, jornalistas e colunistas, perante a próxima polémica: a limitação de poder de empresas como a UberEats, Glovo e Takeaway. Tentarão criar uma narrativa em que qualquer coisa que belisque nos seus interesses é um ataque à economia e à liberdade económica (que está parcialmente suspensa). Na mobilidade, a Uber já o conseguiu, ao ponto de pôr o Governo a fazer-lhe uma legislação à medida. Mas a coisa é simples: uma empresa que, por via de uma aplicação sem outro investimento relevante, fica com mais de um terço do que pagamos por uma refeição está a abusar da sua posição dominante. Como podemos ver pelo Facebook, Google ou Amazon, o mundo digital favorece essa posição dominante a uma escala nunca antes vista. E é por isso que a regulação, pelo menos onde ela pode ser feita, tem de ser mais apertada.

Como me explicou uma amiga que tem um restaurante, depois destas plataformas lhe levarem 30% (ela trabalha com a Takeway, que até cobra menos que outras) e o IVA sobre essa percentagem, fica com uma margem tão ridícula (em alguns casos, os restaurantes ficam mesmo com nada) que mantém as portas abertas para financiar a Uber, a Glovo ou Takeway. Muitos restaurantes preferem fechar ao fim de semana, porque não compensa. Enquanto isto era um mero complemento ao negócio, tudo bem. Mas quando os restaurantes têm de estar fechados, a entrega ao domicílio é a única forma de chegar à esmagadora maioria dos clientes e a distribuição garantida por cada um destes restaurantes não tem escala para ser rentável, o Estado tem de intervir. Porque nenhum destes restaurantes tem como concorrer sozinho com multinacionais que lhes impõem margens de assalto. Estas multinacionais estão a aproveitar as imposições do Estado durante a pandemia para entrarem em mercados que não tinham, cobrando taxas impensáveis.

Segundo sei, a Câmara Municipal de Lisboa tentou pressionar estas plataformas a baixar as taxas e encontrou um muro pela frente. O negócio, que retira dinheiro da economia local do país e cria apenas emprego desqualificado e muito mal pago, vai de vento em popa. À custa de pequenas empresas nacionais que deixariam cá todo o dinheiro. A Câmara de Matosinhos já está a criar um serviço próprio de entregas, tendo começado por fazer um acordo com a cooperativa local de táxis. Fernando Medina avançou com uma queixa junto da Autoridade para a Concorrência contra empresas como a UberEats, contra as margens que impõem aos restaurantes, e anunciou que vai apoiar financeiramente o sector para ele lançar uma alternativa sem custos adicionais para os restaurantes. Veremos as condições dessa aplicação e se vem a tempo. E se o associativismo da restauração se mostra à altura do desafio. Mas o princípio está certo.

Quando perguntaram ao presidente da Câmara de Lisboa se isso não destruiria o negócio destas plataformas, Fernando Medina respondeu com uma heresia para este tempo: “Não tenho particular preocupação com a sobrevivência desses negócios." O papel dos políticos não é defender os negócios, é defender a economia que garante riqueza e bem-estar àqueles que os elegeram. Se os negócios são bons para a economia e para a comunidade, devem ser defendidos. Se estrangulam as restantes atividades económicas e o bem comum, devem ser contrariados. E, como sabemos, mesmo que tenham prejuízos durante anos estas multinacionais não fecham, porque se financiam por via bolsista. O que lhes permite resistir durante anos até destruírem a concorrência.

Se este passo for dado, a restauração não sairá do estado de coma. Mas fará a diferença a muitos pequenos restaurantes e será um passo legitimo que explica a estas multinacionais que nenhuma economia tem de ser sua refém. Muito menos no momento como este.

Quando se fala destas margens, há sempre quem diga que é o mercado a funcionar. Que eles apenas as impõem porque podem. Que nenhum discurso moral deve ser feito sobre o assunto. Mas quando o Estado faz alguma coisa para o contrariar deixa de valer essa mesma regra: que o Estado o faz porque pode. Aí, passam a falar-nos de princípios. Que o Estado, podendo, não o deve fazer. E passa a valer um qualquer princípio político que favorece a ausência de princípios dos agentes económicos e prejudica o conjunto da economia.

A UberEats cobra 35% aos restaurantes, esmifrando-os como um vampiro. Porque pode. Uma autarquia financiará uma aplicação que não cobra nada aos restaurantes, contornando um negócio que vive do abuso de posição dominante. Porque pode. A diferença é que há muito mais agentes económicos a ganhar no segundo caso.