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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Foi você que falou de “cancelamento”?

 


Posted: 25 Feb 2021 03:43 AM PST



 

«O “cancelamento” de figuras públicas por causa de opiniões consideradas menos corretas é muito popular nos Estados Unidos. Ondas de julgadores usam as redes sociais e o espaço público para banirem alguém por alguma coisa que disse ou defendeu, obrigando-o a ceder, a mudar de posição ou a fingir que mudou. Ou a calar-se. A conversa é mais difícil do que parece. Qualquer pessoa tem o direito a reagir a uma opinião que lhe desagrada ou repugna. A democracia vive disso. Quando isso passa a ser viral os efeitos podem ser devastadores. E, no entanto, cada um dos que reage não faz mais do que usar a sua liberdade de expressão. Cabe-lhe distinguir se participa num linchamento que serve para criar medo de falar ou num debate livre com contraditório.

Também não é indiferente a função da pessoa que é contestada. Se for alguém que ocupa um cargo de relevância política, o escrutínio das suas opiniões é inerente à sua função. Exigir que as pessoas não avaliem as suas opiniões é querer amputar a democracia de conteúdo. Os políticos não são meros gestores. O que pensam e dizem conta. É o que mais conta, aliás.

Para se vitimizarem, sectores mais conservadores da nossa sociedade importaram de forma bastante amplificada as dores das vítimas da cultura de cancelamento nos EUA. Mas basta passear pelas redes sociais para perceber como o debate é um pouco deslocado. Sim, há uma cultura de trincheira que se instalou em todo o lado, onde a persuasão foi substituída pelo julgamento, a opinião livre pelo tribalismo e o argumento pelo insulto. À esquerda e à direita. Mas, tirando em alguns nichos no Twitter e alguns artigos de jornais, o “politicamente correto” é um produto gourmet de consumo limitado em Portugal. Mesmo na Academia, é quase irrelevante. Se há madraças políticas neste país, são as faculdades de economia, onde pontos de vista ideológicos são impostos como se de ciência exata se tratasse. Ainda recentemente tivemos sinais da dificuldade que essas faculdades têm em ver o seu nome associado à livre expressão do pluralismo.

Na semana passada, os mártires do “politicamente correto”, com posição hegemónica no espaço de opinião, dedicaram-se a rasgar as vestes por causa do escrutínio a posições que o novo presidente do Tribunal Constitucional deixou escritas sobre assuntos de relevância constitucional. Não escrevi sobre o tema porque nem ele me aquece muito nem, no início, achei que um artigo escrito há onze anos tivesse relevância suficiente. Quando todos os artigos surgiram ficou evidente um padrão de opinião. Legitima e livre, mas nem por isso irrelevante quando tem relação com o cargo que o jurista agora ocupa. Respeitar a liberdade de expressão não é tornar as opiniões inconsequentes. Isso é, aliás, desrespeitá-la. Quando são públicas e se relacionam com a função num determinado cargo público, devem ser debatidas e escrutinadas.

Enquanto as supostas vítimas do “politicamente correto” se queixam de qualquer crítica feita em qualquer rede social, sem qualquer consequência que não seja a legítima manifestação de discordância de cada um, acontecem coisas realmente graves neste país. Verdadeiras tentativas de cancelamento, mas em versão musculada.

Trinta mil pessoas assinaram uma petição, que levarão ao Parlamento, propondo a deportação de um cidadão português por ter chamado criminoso de guerra a Marcelino da Mata. A contestação é esta afirmação é legítima e livre, a consequência que propoem é reveladora. Não sei quantos xenófobos haverá em Portugal. Mas trinta mil já são seguros. Porque quem acha que um português que nasceu noutro país merece pena diferente pelo uso da sua liberdade de opinião do que quem nasceu em Portugal assume-se sem margem para dúvidas como xenófobo. Acha que há cidadãos de segunda, com liberdades de segunda e opiniões de segunda, dependendo do lugar onde nasceram.

Comparar o escrutínio, absolutamente natural em democracia, de posições sobre matérias constitucionais de um presidente do Tribunal Constitucional aos apelos de deportação por delito de opinião é um insulto à nossa inteligência. Defender a liberdade de expressão não é defender a indiferença perante a opinião. É defender que o escrutínio se faz dentro das regras democráticas.

Na mesma semana, André Ventura espalhou um vídeo de uma aula à distância, captado ilegalmente, para acicatar o ódio dos seus apoiantes contra um professor devidamente identificado, sem qualquer instrumento de defesa, que referiu uns factos que ele acha que não podem ser referidos nas aulas. Apesar de tudo, não nos podemos queixar. Por cá, ainda não se prendem rappers pelo conteúdo das suas músicas.

Há uma total dessintonia entre a vitimização de um sector político da sociedade e o seu comportamento. Perante qualquer critica, queixam-se do cancelamento e da censura do “politicamente correto”. Mas para os que se atrevem a confrontar as suas posições exigem processos disciplinares e deportações. O objetivo da vitimização militante e da intimidação agressiva é o mesmo: ficarem a falar sozinhos. Foi sempre o que fizeram na História. Até chegarem ao poder e usarem meios mais eficazes. Não é que nos escondam ao que vêm. A deportação é, como foi no passado, o mais simpático que têm para oferecer.»

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guerra colonial: um passado que não passa?

Posted: 24 Feb 2021 03:52 AM PST

 


«A morte de Marcelino da Mata veio relançar o debate sobre a guerra colonial. Na verdade, ele nunca deixou de aqui estar. O facto de se manter uma amnésia induzida sobre este acontecimento histórico faz com que ele regresse sucessivamente, e de formas nem sempre expectáveis.

A guerra é uma recordação difícil. Decorreu no quadro de uma ditadura que fez um forte investimento na legitimação ideológica da sua presença colonial, ao mesmo tempo que censurava a opinião e prendia opositores. Não se consegue entender a longevidade da guerra sem se ter isso em mente. Como não se pode perceber a mudança introduzida na sequência do 25 de abril, marca fundacional do regime democrático, sem se remeter para a guerra e, mais concretamente, para o papel que tiveram os militares do MFA – e os movimentos de libertação – na queda do Estado Novo e no fim do colonialismo.

Só isto bastaria para tornar problemáticas as palavras do PR e do ministro da Defesa na sequência da morte de Marcelino da Mata, bem como o teor do voto de pesar no Parlamento. A natureza burocrática do texto é um sintoma das suas omissões: ao remeter no abstrato para a “coragem e bravura individual” do comando, esquece a tradução concreta de certos atos macabros, que o próprio fez em várias entrevistas, e que configurarão crimes de guerra. O argumento formalista, que consiste no elenco das condecorações, omite que foram dadas por um regime cujo derrube, justamente no quadro de uma derrota política na guerra, é a razão da democracia que temos. Inadvertidamente ou não, tratou-se de uma reencenação da heroicidade colonialista do Estado Novo, tingida de silêncios sobre atos que em alguns casos (a Operação Mar Verde é um exemplo) mereceram explícita condenação das Nações Unidas.

Não é correto dizer, como se ouviu por estes dias, que na Guiné se cometeram atrocidades “dos dois lados”. Essa equivalência não só ilide o contexto colonial em que a guerra se processa, como não resiste à prova histórica. Não quero transformar este texto num cortejo de horrores, mas já existe muita informação – inclusive testemunhos de ex-combatentes – que comprova isso mesmo. Basta querer conhecer. Por outro lado, e se é verdade que a guerra é a guerra, também não é certo considerar que todos aqueles que nela participaram se regiam pela mesma bitola ou tiveram os mesmos comportamentos. Boa parte dos ex-combatentes foram levados para África para combater numa guerra da qual tentaram sair ilesos. Por causa dela, vários deles sofrem, ainda hoje, sequelas físicas e psicológicas, por vezes estendidas às suas famílias, e vão morrendo sem grande atenção pública. Também por isso, a guerra é uma recordação difícil.

Há dois outros elementos a sublinhar. Em primeiro lugar, o corte com a ditadura fez-se instaurando um peculiar pacto de silêncio sobre a guerra, optando-se por não enfrentar um passado, então recentíssimo, no qual se haviam cometido as atrocidades típicas de uma guerra em solo colonial, com massacres de populações, tratamento brutal a prisioneiros e uma efetiva ligação entre o Exército, as tropas especiais e a PIDE/DGS. Em segundo lugar, esta violência incomoda porque entra em contradição com a narrativa lusotropicalista que o Estado Novo promoveu e que permanece fortemente enraizada na memória pública. Se Portugal não tinha colónias, se a presença em África foi ampla e amigavelmente acolhida pelas populações locais, como enquadrar a guerra neste discurso?

Com efeito, a guerra colonial foi o desfecho tardio de um império já anacrónico. É um dos capítulos desta vasta história europeia que, encerrada em termos políticos, vai teimando em manter-se viva como imaginário nacional e nas suas distintas reverberações sociais, de que o racismo é uma das suas faces mais visíveis. Foi com a consciência de que seria necessário enfrentar essa página da história que Macron encomendou um relatório para se fazer um inventário sobre a colonização e a guerra na Argélia. Na sua sequência, o conceituado historiador Benjamin Stora entregou, no mês passado, um conjunto de 22 recomendações ao Presidente francês, entre as quais se contam várias iniciativas memoriais conjuntas entre os dois países: de entre elas, o esclarecimento de alguns massacres e crimes cometidos; a abertura de arquivos e o impulso a investigação comum sobre este passado; a renovação dos programas escolares; a promoção de exposição e colóquios sobre a guerra nas suas múltiplas faces, incluindo a recusa da guerra, e sobre as independências africanas.

Como é óbvio, não advogo nenhuma cópia a papel químico do conjunto destas recomendações. A questão é outra: o que é que Portugal pretende fazer para enfrentar, de forma cabal, os persistentes silêncios sobre este passado?»

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Há uma diferença entre um “irritante” e um criminoso de guerra

 

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 23/02/2021)

O PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta.


No dia 23 de janeiro de 1973 a Assembleia Nacional viveu uma sessão tumultuosa, coisa rara num fórum de partido único, tradicionalmente conformado à obediência à ditadura. O facto é que alguns deputados, os da chamada “ala liberal”, criticavam o regime, abandonadas as vãs esperanças na sua renovação, sobretudo depois de terem perdido a batalha por uma nova lei de imprensa, o momento da sua primeira desilusão. Mas foi o caso da Capela do Rato que constituiu a gota de água que transbordou. Três semanas depois da prisão de alguns dos participantes nessa reunião, o deputado Miller Guerra, médico, bastonário da Ordem, levantou-se para condenar a repressão daquele protesto contra a guerra colonial. Casal-Ribeiro, um dos tenores da ditadura, insurgiu-se - e contam as atas o que então se passou:

“O Sr. Casal-Ribeiro: – Eu estava a perguntar a V. Ex.ª se acha bem e se concorda que na Igreja, ou em qualquer outro sítio, se discutisse ou se discuta a legitimidade da presença de Portugal no Ultramar.

O Orador (Miller Guerra): – Ora aí está uma pergunta objetiva e concreta e a que eu respondo também objetiva e concretamente: Acho, sim senhor. Não só na Igreja, como em qualquer outra parte.”

A assembleia agitou-se, houve a devida berraria, mas Miller Guerra prosseguiu, era um homem corajoso. Uns dias depois deste confronto, Sá Carneiro renunciou ao mandato de deputado. Miller Guerra faria o mesmo no início de fevereiro.

Miller Guerra viria depois a aderir ao partido de Mário Soares que, no seu exílio, prosseguia uma campanha de condenação da guerra colonial, e foi deputado constituinte pelo PS. Sá Carneiro fundou e presidiu ao PSD. Houve portanto um tempo em que figuras de referência do PS e do PSD não se coibiam de recusar a guerra colonial e que o faziam com valentia.

A denúncia da ditadura e da guerra não era para eles uma questão de opinião, uma espécie de jogo floral para ser apreciado em salões. Era uma questão essencial da democracia e do reconhecimento do seu próprio país. Quando Manuel Alegre, na Rádio Argel, condenava a guerra que tinha sofrido, era Portugal que se defendia da ditadura. Terá sido por isso que a democracia sempre reivindicou esta memória do processo que determinou o 25 de Abril. E houve quem não o esquecesse: como lembrou Manuel Loff, em 1992, quando o governo de Cavaco Silva aprovou um louvor ao inspetor-adjunto da PIDE Óscar Cardoso, “por serviços excecionais e relevantes” (Cardoso tinha sido o criador de um corpo africano de tropas especiais em Angola, e, mais tarde, organizou a defesa da sede da polícia política contra as forças armadas no 25 de Abril, tendo depois fugido para a Rodésia e África do Sul), o advogado Francisco Sousa Tavares, monárquico e antifascista, um dos que tinha ido para a porta do comando da polícia exigir a libertação dos presos da Capela do Rato, descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós”.

Chegados a 2021, o PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta: o texto da homenagem ao comando que combateu na Guiné usa três argumentos notáveis, que nunca foi ferido, que teve muitas medalhas e que assinou o telegrama dos oficiais spinolistas contestando o Congresso dos Combatentes do Ultramar em 1973, este para simular um laivo de antifascismo.

Para descer mais baixo, só faltaria explicitar o argumento displicente de muitos dos defensores da medalhação de Mata, o de que, tendo sido um criminoso de guerra, o que foi aliás confessado pelo próprio com gosto, teria sido também um herói. Sobre o mérito, Mário Cláudio, que foi ao tempo jurista no quartel-general de Bissau, conta que instruiu diversos processos-crime contra Mata, “pelo comportamento ilícito, e por vezes atrozmente delitual”, ou “de extrema gravidade”, e que estes terminaram sempre em arquivamento sumário, “por ordem superior sem rosto”, o que diz tudo. Talvez não imaginasse é que o PS e o PSD se juntam hoje para continuar a proceder a esse arquivamento sumário.

Parece razoavelmente óbvio que a agitação do CDS, primeiro, e do PSD, depois, precipitando-se para esta vertigem homenageante, tem unicamente que ver com a sua concorrência com o Chega, que naturalmente corre a ocupar o espaço da reivindicação da guerra colonial como glória nacional. Que isto contamine o PSD já é preocupante, considerando a traição a Sá Carneiro; que mobilize o PS, exceto alguns deputados que votaram contra e outros que se conseguiram abster, é um tremendo sinal dos tempos e não só do esquecimento de Mário Soares.

Mas o que este episódio também indica é que a História é aqui instrumentalizada como se tudo fosse indiferente, como se na guerra todos fossem criminosos de guerra, como se não houvesse lei. Ou que de noite todos os gatos são pardos e a bruma da memória tudo confunde, vítimas e criminosos irmanados numa trica perdida na selva. E isso tem consequências, pois determina o que será uma disputa permanente na nossa democracia, saber se a democracia tem justificação na corajosa recusa da guerra colonial e da opressão nacional, ou se, afinal, foi um abuso de militares cobardes que não queriam continuar a guerra dos Marcelinos da Mata e dos seus comandantes.

Naturalmente, há quem pense que se trata de uma mera questão institucional, cuja polémica durará um segundo. Esta atitude é perigosa. Se o ministro da Defesa, o Presidente e a maioria do Parlamento assim sugerem que isso da dignidade humana, das leis da guerra, da responsabilidade do Estado, das relações com os antigos territórios coloniais, hoje independentes, é tudo relativo à conveniência, Portugal fica diminuído. Haverá mesmo quem se lembre de que, perante um processo judicial que envolvia Manuel Vicente, dirigente angolano, houve autoridades nacionais que moveram mundos e fundos para resolver o “irritante” e fechar o assunto. Tratava-se de Angola (cuja justiça, aliás, agora investiga o mesmo Vicente por corrupção). Mas se for a Guiné e uma história de crimes de guerra, a coisa resolve-se com medalhas e uma homenagem no Parlamento português.

Se a vacina fosse de roer!

Posted: 23 Feb 2021 04:07 AM PST

 


«A máscara dos nossos dias disfarça-nos o sorriso e ajuda a encobrir um país sem dentes para algumas nozes. Literalmente! Por mais que as televisões os escondam - e que até uma produtora tenha pago a dentadura do cidadão Fernando Jorge da Silva dos Santos, a quem chamamos de "Emplastro" -, faltam dentes a mais de metade da nossa população. Discreto, por entre a mórbida contagem dos números da pandemia, o último Barómetro Nacional de Saúde Oral revela que 70% dos portugueses vivem com falta de dentes naturais, e que a onze em cada cem compatriotas faltam mais de seis dentes. Ora, explicando os avós que é pela boca que a saúde começa, aí temos o estado da arte em matéria de saúde pública.

Durante anos bloqueámos a chegada dos dentistas brasileiros. Durante outros tantos, resistimos a integrar a medicina dentária no Serviço Nacional de Saúde, mesmo quando a maioria dos portugueses reclama essa como a mais cara das especialidades médicas. Como nunca é tarde para começar, o plano de emergência que o governo colocou à discussão destina 1,4 mil milhões de euros à área da saúde, no âmbito da chamada "bazuca" ou "vitamina" de 16 mil milhões que Portugal irá receber da União Europeia, através do Plano de Recuperação. O documento de intenções do governo fala em saúde oral, mas não se compromete com metas nem com números. A avaliar pelo que diz a Ordem dos Médicos Dentistas, faltarão mais de 200 destes profissionais para dotar a rede de centros de saúde de condições para a prestação de cuidados primários que começam na boca. A integração está prometida há anos - oxalá seja desta, a pretexto da pandemia.

A máscara dos nossos dias disfarça meio país desdentado e encobre-nos o sorriso, a curva mais bonita do corpo, essa maravilhosa contração muscular para que convocamos espontaneamente lábios e olhos para exprimir emoções, como diversão, alívio ou prazer, e nos desarma em frações de segundos. O sorriso é o nosso primeiro cartão de apresentação. Mas até isso a pandemia nos rouba. Mascarados, evitamos os autorretratos a que chamamos de selfies, e até a história da fotografia há de assinalar o tempo em que deixámos de associar o uso da câmara a momentos felizes, porque ela ajudava a apagar os fracassos e a dor, a editar o passado, muitas vezes para voltar a ele.

Há dias, numa reportagem de televisão, uma enfermeira espanhola, exausta, dizia para a câmara: "No último ano tivemos de ser fortes; vamos ver se até ao final deste conseguimos voltar a ser felizes"... Por ora, com as vidas suspensas na espera da vacina, sonhamos em voltar a sorrir, a mais barata das terapias. E mesmo sem dentes, ao menos que nos sobre o siso.»

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Carta aberta às televisões generalistas nacionais


por estatuadesal

´(Vários signatários, in Público, 23/02/2021)

Como cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia.


Sabemos que há uma pandemia – e que o SARS-CoV-2, em vez de se deixar ficar a dizimar pessoas no chamado Terceiro Mundo, resolveu ser mais igualitário e fazer pesadas baixas em países menos habituados a essas crises sanitárias.

Sabemos que não há poções mágicas – as vacinas não se fazem à velocidade desejada e as farmacêuticas são poderosas entidades mercantilistas.

Sabemos que, mesmo cumprindo os cuidados tantas vezes repetidos – distância física, máscara a tapar boca e nariz, lavagem insistente das mãos, confinamento máximo –, qualquer um de nós, ou um dos nossos familiares e amigos, pode ser vítima da doença e que isso causa medo a todos, incluindo a jornalistas, fazedores de opinião e responsáveis de órgãos de informação.

Sabemos também que os média estão em crise, que sofrem a ameaça das redes sociais, a competição por audiências, as redações desfalcadas, os ritmos de trabalho acelerados impostos aos que nelas restam, a precariedade laboral de muitos jornalistas.

Mas mesmo sabendo tudo isto, assinalamos a excessiva duração dos telejornais, contraproducente em termos informativos. Não aceitamos o tom agressivo, quase inquisitorial, usado em algumas entrevistas, condicionando o pensamento e a respostas dos entrevistados. Não aceitamos a obsessão opinativa, destinada a condicionar a receção da notícia, em detrimento de uma saudável preocupação pedagógica de informar. E não podemos admitir o estilo acusatório com que vários jornalistas se insurgem contra governantes, cientistas e até o infatigável pessoal de saúde por, alegadamente, não terem sabido prever o imprevisível – doenças desconhecidas, mutações virais – nem antever medidas definitivas, soluções que nos permitissem, a nós, felizes desconhecedores das agruras do método científico, sair à rua sem máscara e sem medo, perspetivar o futuro.

Mesmo sabendo a importância da informação sobre a pandemia, não podemos aceitar o apontar incessante de culpados, os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo e da DGS, as pseudonotícias (que só contribuem para lançar o pânico) sobre o “caos” nos hospitais, a “catástrofe”, a “rutura” sempre anunciada, com a hipotética “escolha entre quem vive e quem morre”, a sistemática invasão dos espaços hospitalares, incluindo enfermarias, a falta de respeito pela privacidade dos doentes, a ladainha dos números de infetados e mortos que acaba por os banalizar, o tempo de antena dado a falsos especialistas, as entrevistas feitas a pessoas que nada sabem do assunto, as imagens, repetidas até à náusea, de agulhas a serem espetadas em braços, ventiladores, filas de ambulâncias, médicos, enfermeiros e auxiliares em corredores e salas de hospitais. Para não falar das mesmas imagens repetidas constantemente ao longo dos telejornais do mesmo dia ou até de vários dias, ou da omnipresença de representantes das mesmas corporações profissionais, mais interessados em promoção pessoal do que em pedagogia da pandemia.

Enfim, sabemos que há uma pandemia causada pelo SARS-CoV-2, mas também sabemos que há uma diferença entre informação, especulação e espetáculo. E entre bom e mau jornalismo.

Consideramos inaceitável a agenda política dos diversos canais televisivos generalistas, sobretudo no Serviço Público de Televisão.

Como cidadãs e cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia.


Subscritores

Abílio Hernandez, Professor universitário; Alberto Melo, Dirigente associativo; Alfredo Caldeira, Jurista; Alice Vieira, Escritora; Ana Benavente, Professora universitária; Ana Maria Pereirinha, Tradutora; António Rodrigues, Médico; António Teodoro, Professor universitário; Avelino Rodrigues, Jornalista; Bárbara Bulhosa, Editora; Diana Andringa, Jornalista; Eduardo Paz Ferreira, Professor universitário; Elísio Estanque, Professor universitário; Fernando Mora Ramos, Encenador; Graça Aníbal, Professora; Graça Castanheira, Realizadora; Helder Mateus da Costa, Encenador; Helena Cabeçadas, Antropóloga; Helena Pato, Professora; Isabel do Carmo, Médica; J.-M. Nobre-Correia, Professor universitário; Jorge Silva Melo, Encenador; José Rebelo, Professor universitário; José Reis, Professor universitário; José Vítor Malheiros, Consultor de Comunicação de Ciência; Luís Farinha, Investigador; Luís Januário, Médico; Manuel Carvalho da Silva, Sociólogo; Manuela Vieira da Silva, Médica; Maria do Rosário Gama, Professora; Maria Emília Brederode Santos, Pedagoga; Maria Manuel Viana, Escritora; Maria Teresa Horta, Escritora; Mário de Carvalho, Escritor; Paula Coutinho, Médica intensivista; Pedro Campiche, Artista multidisciplinar; Rita Rato, Directora do Museu do Aljube; Rui Bebiano, Professor universitário; Rui Pato, Médico; São José Lapa, Actriz; Tiago Rodrigues, Encenador; Vasco Lourenço, Capitão de Abril

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico