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quarta-feira, 9 de junho de 2021

 


Como tramar os jovens

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 08706/2021)

É um desastre geracional. Num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado.


Afinal era mesmo inconstitucional, diz o Tribunal, que chumbou a norma que permitiu a duplicação do período experimental para 180 dias, nos casos em que o trabalhador à procura de primeiro emprego já tenha tido um contrato a prazo de 90 ou mais dias. O Tribunal aceitou a opção daquela lei noutras matérias, como sobre a caducidade dos contratos coletivos ou mesmo sobre o período experimental para desempregados de longa duração. Mas a sua decisão, mesmo que somente sobre um dos pilares do ajustamento ao Código Laboral aplicado pelo anterior governo, então apoiado pelo PSD, tem um impacto profundo.

O facto é que esta duplicação do período experimental tem uma história perversa. O Governo estabelecera um acordo com a esquerda sobre alterações ao Código Laboral, incluindo a redução da sucessão de contratos a prazo e outras normas que foram apreciadas como protetoras dos direitos sociais. Festejado o sucesso da negociação ao final de uma tarde prometedora, soube-se no dia seguinte que, pela madrugada ou alvorada do dia, tinham sido acrescentadas algumas medidas negociadas à sorrelfa com as associações patronais, incluindo o nefando período experimental (e a curiosa extensão do tempo para os contratos verbais).

A rutura com a esquerda foi amplificada pela perceção desta má fé negocial. Compreende-se assim porque é que a questão da revisão do Código Laboral, que já era um ponto fulcral das negociações entre o Governo e a esquerda, passou a ter este interdito atravessado: o PS nunca aceitou rever aquele acordo que negociou de madrugada com as associações patronais e alegou mesmo essa razão para recusar um acordo para a legislatura com o Bloco, como lhe foi proposto depois das últimas eleições. A engenharia do trabalho experimental, do trabalho temporário e da precarização tornou-se uma questão de honra para o Governo. Agora, o Tribunal Constitucional determinou que um dos pontos essenciais dessa mudança do Código é ilegal.

O episódio tem uma leitura política e constitucional, mas tem também outra dimensão maior, estratégica, que responde à seguinte questão: é a precarização a forma adequada para garantir emprego aos jovens ou, pelo menos, ser-lhes-ia prejudicial mexer nestas regras? Se bem percebo o argumento de Ricardo Costa, na última edição do Expresso, a sua resposta é que não se deve alterar esta lei, que teria servido a criação de emprego, ideia retomada por muitos comentadores e decisores. Escreve ele que “a generalização da precariedade nos serviços e a uberização do trabalho são mudanças brutais mas que só podem ser combatidas com inteligência e um forte crescimento económico. Quem acha que altera isso numa lei está enganado. Mais grave: pode prejudicar os jovens, que foram os mais castigados nesta crise”. Pergunta por isso, de modo retórico, “se a recuperação do emprego a partir de 2014 se fez com esta legislação, qual é o sentido de a mudar agora?”. O argumento é óbvio, não mexam nas leis do trabalho.

O problema é que os factos não parecem conviver bem com qualquer proposta situacionista. É evidente que, sendo a uberização e plataformização uma mudança violenta, somente o crescimento económico cria emprego. Só que, se o trabalho continuar a ser precarizado, esse caminho trama os jovens. Os dados publicados na semana passada pela Fundação José Neves demonstram esse perigo. Estudando os anos desde a crise da dívida soberana, incluindo portanto cinco anos de recuperação económica até 2019, os resultados são constrangedores: os jovens qualificados, com ensino superior, perderam 17% de salário. E, depois de tanto crescimento de emprego, foram postos de lado: têm agora uma taxa de desemprego de 19,4%, o triplo do desemprego médio nacional. A “recuperação do emprego a partir de 2014, com esta legislação” não lhes serviu. Acresce que 15% dos jovens licenciados estão a trabalhar abaixo das suas qualificações. Para as mulheres, pior ainda, o fosso salarial agravou-se com o progresso da sua formação: o desnível salarial entre homens e mulheres é, segundo a Fundação, de 21%, mas chega a 32% no caso das mulheres com mestrado.

É um desastre geracional. E é um processo consolidado pela precarização: num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado. Os empresários que esfregam as mãos de alegria pelas margens de curto prazo geradas por esta devastação social, ou o Governo que apregoe este sucesso, não compreendem o vazio que estão a criar. Ou compreendem bem demais.

 O Continente, o ludismo e como pôr a tecnologia a trabalhar para todos

Posted: 08 Jun 2021 04:02 AM PDT

 


«Foi anunciada, com grande excitação, a abertura de uma nova loja do Continente totalmente tecnológica, sem caixas. Ou seja, com menos trabalhadores. Essa é a sua verdadeira modernização. Boa para os acionistas, não sei se com grande vantagem para os clientes (pensem o que ganhámos com o atendimento automático telefónico, sem contacto com pessoas, no apoio ao cliente). Não há nada de surpreendente aqui. Depois da mecanização do trabalho fabril, este é o tipo de emprego que vai desaparecer: os trabalhos repetitivos de baixo rendimento, em que a tecnologia parece ser mais barata do que a mão de obra. Os trabalhos de custo baixo e menos repetitivos – como a limpeza de quartos de hotéis ou algum trabalho de minúcia na agricultura – são mais baratos quando feitos por imigrantes sem direitos do que o investimento que seria exigido em tecnologia.

A formação marxista que recebi na juventude livrou-me de um discurso moral sobre este tipo de dinâmicas que alguma esquerda adota para falar de “especuladores” ou “empresários sem escrúpulos”. E é por isso que, quando um empresário me diz, para parecer um bom samaritano, que ao contrário de mim criou imensos empregos, só consigo sorrir. Um empresário cria tantos empregos como um trabalhador que mantém a empresa sustentável e produtiva. Não é um ato benemérito. O empresário cria os empregos necessários para produzir o que o mercado parece querer ou poder consumir. Se criar um a mais ele vai desaparecer. Quem cria emprego em atividades que visam exclusivamente o lucro é o mercado. Eu escrevo neste jornal porque há quem me queira ler (ou anunciantes que não se importam que eles me leiam). No dia em que isso não aconteça deixarei de escrever.

O empresário diz isto porque quer ganhar superioridade moral num debate que não é moral. Só que eu não acho que um empresário padeça de qualquer inferioridade (ou superioridade) moral por buscar o lucro. Eu nem sequer acredito num capitalismo socialmente responsável ou ambientalmente sustentável. Acredito em políticas públicas, desenvolvidas pelo poder político, que levam a que ele se torne uma e outra coisa. Porque o poder político é moralmente superior ao poder económico? Não. Porque os eleitos representam o conjunto da sociedade e o seu dever é zelar pelos interesses da grande maioria com critérios de Justiça. Quando não o fazem, aí sim, há uma falha moral. O dever dos gestores é servir os interesses dos acionistas. Mesmo quando, conhecendo-se a sua alarvidade social e laboral, fingem que estão preocupados com o país, como faz o senhor da Ryanair. Os que não o fazem, dentro dos limites da lei, estão em falha profissional.

Os empresários querem reduzir custos. Desse ponto de vista, o seu objetivo é criar menos emprego, não mais. Mesmo que percebam que uma sociedade sem emprego não consome os seus produtos, nenhum vai pôr a sua empresa a cumprir esse papel. É por isso que a ambição pessoal, sem regulação pública, não tende para o equilíbrio, mas para o caos. Cabe ao Estado pensar no bem comum e até na sustentabilidade da economia. E é por isso que é absurdo transformar os empresários, por mais competentes que sejam, em oráculos da nação para políticas públicas. É como esperar que um pasteleiro seja dietista. Não é bondade ou maldade, competência ou incompetência. É perceber a função de cada um.

Resumindo: não tenho qualquer crítica moral a fazer a um gestor que decide abrir uma loja sem trabalhadores para poupar dinheiro aos acionistas ou provar que esse caminho tem sustentabilidade. São os acionistas que ele defende, não os trabalhadores. Muita gente reagiu à notícia dizendo que não vai usar estas lojas. Podem não o fazer no início, acabarão por o fazer no fim. Como fazem com a Via Verde e com imenso trabalho mecanizado em que já nem pensam. A resistência à mecanização como discurso político tem um nome: ludismo. Um movimento que, nos primórdios da industrialização e antes de os socialistas terem dado à resistência uma perspetiva mais sistémica, se dedicava à destruição de máquinas em protesto. Não resultou então, não resultará agora.

Mais uma vez, o debate não é moral. A tecnologia não determina as escolhas políticas, apenas as condiciona. É a forma e os objetivos como é usada que decidirá quem perde e quem ganha. Ela tende a acentuar as derrotas e as vitórias que já existem, a não ser que o Estado, que todos serve, atue. Não estava escrito em lado nenhum que a tecnologia que permitiu a Uber servisse para contornar as leis laborais. Como se vê em decisões recentes de tribunais, como no Reino Unido, é possível travar esse caminho. É a ausência de lei ou leis feitas à medida da Uber (a do governo português, por exemplo) que o permitem.

Cabe ao Estado e aos políticos pensar na forma de os desenvolvimentos tecnológicos beneficiarem o conjunto da população, e não apenas os donos das empresas. Que sirvam para trabalharmos todos menos horas e ganharmos mais, e não para criar uma massa de desempregados e uma população que concentra em si horas absurdas de trabalho para o desenvolvimento tecnológico que já atingimos.

Há quem defenda que os impostos sobre o trabalho passem a ser impostos sobre a tecnologia. Não acho que seja o caminho. É uma forma dissimulada de ludismo. Apenas atrasa o desenvolvimento tecnológico dos países que façam essa opção. É, a prazo, insustentável. A ideia mais interessante que ouvi, desenvolvida por António Brandão Moniz (sociólogo especialista nestes temas), foi a de beneficiar as empresas que conjugam desenvolvimento tecnológico com investimento em formação e reconversão profissional, prejudicando as que não o fazem. Uma política fiscal que sirva para a expansão e modernização e para acrescentar valor ao que se produz, e não apenas para reduzir custos. Porque é mau reduzir custos? É excelente, se servir mais gente. E não basta dizer que reduzir custos baixa preços ao consumidor. Isso de pouco serve se ficarmos todos desempregados.

A mecanização deste trabalho não é má, por si só. Ninguém sonha ser caixa de supermercado ou estar numa fábrica a fazer trabalho repetitivo. O ideal até seria que esta tecnologia nascesse, porque já ninguém aceita ser caixa de supermercado. A questão é se ao libertarmos os humanos desse trabalho conseguimos dar-lhe outro melhor, beneficiando-o. Para isso, é preciso uma política fiscal que desvie o dinheiro que apenas serviria para concentrar ainda mais a riqueza nuns quantos (é o que está a acontecer) e desemprego noutros para reconverter trabalhadores para trabalho mais qualificado, para reduzir horários ou criar um novo mercado de trabalho social e público. A questão não é como travar a tecnologia. É como pô-la ao serviço de todos - e não apenas de alguns. E isso cabe à política.»

terça-feira, 8 de junho de 2021

Pedro Nuno Santos vs. Ryanair

por estatuadesal

(In Expresso, 07/06/2021)

O ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, justificou hoje a reação às críticas da Ryanair sobre a ajuda estatal à TAP com o facto de não gostar de "deixar ofensas ao Estado português e ao Governo sem resposta".


"Eu não gosto de deixar ofensas ao Estado português e ao Governo sem resposta. Nem todos compreendem que um Estado e um Governo também têm de se dar ao respeito. Mas isso é a forma como nós cada um de nós encara a vida política", afirmou Pedro Nuno Santos à margem da apresentação do novo navio da CV Interilhas "Dona Tututa", que decorreu no Estaleiro Navaltagus, no Seixal, distrito de Setúbal.

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No passado dia 26 de maio, durante uma reunião, por videoconferência, com o ministro das Infraestruturas, o presidente do grupo Ryanair, Michael O'Leary, lamentou que o Governo português esteja a "desperdiçar" o dinheiro dos contribuintes na TAP, defendendo que deveria ser aplicado em escolas, hospitais e outras infraestruturas, como o aeroporto do Montijo, em vez de numa "companhia aérea falhada e com preços elevados".

O ministério de Pedro Nuno Santos reagiu em comunicado, nesse mesmo dia, afirmando não aceitar "intromissões nem lições" da Ryanair. Garantindo que o investimento na TAP é "estruturante", lamentou que a companhia irlandesa esteja a aproveitar-se de uma "situação difícil" e vincou que a "Ryanair é uma empresa privada e que não tem de interferir nas decisões soberanas tomadas pelo Governo português".

Já hoje, quando questionado pelos jornalistas sobre este tema, o ministro salientou que um país como Portugal "não se pode dar ao luxo de perder empresas que exportam 3.000 milhões de euros", como é o caso da TAP.

"Nós não somos a Suíça, nem a Noruega, para podermos, sem esforço, dar-nos ao luxo de perder empresas com esta dimensão. Nós somos um país com grandes dificuldades em matéria de balança de pagamentos, não podemos perder uma empresa que exporta 3.000 milhões de euros num ano normal. E é esse esforço estamos a fazer", sustentou.

Rejeitando que ao injetar capital na TAP o Governo esteja "a gastar dinheiro", Pedro Nuno Santos disse tratar-se, antes, de "um investimento numa empresa que é fundamental para a economia portuguesa e que liga Portugal ao mundo".

"A TAP é a primeira companhia aérea europeia - não é só portuguesa, europeia - a ligar a Europa ao Brasil e a mais de 10 países da África Ocidental. Este é um esforço que nós estamos a fazer conscientes de que aquilo que a TAP dá à economia nacional é muito mais do que aquilo que nós estamos a investir nela", defendeu.

Para o ministro das Infraestruturas e da Habitação, os portugueses deviam ter "mais orgulho" no seu país: "Não podemos aceitar ligeiramente que um empresário, mesmo que grande empresário, possa dizer o que quer sobre um Governo e esperar do mesmo Governo o silêncio. Isso não é um país dar-se ao respeito. Nós seremos mais respeitados no mundo se nos dermos ao respeito", considerou.

Relativamente às críticas internas, no seio do PS, quanto à forma como se dirigiu à Ryanair, Pedro Nuno Santos escusou-se a "alimentar essa discussão", afirmando apenas ser "incapaz de criticar em público um camarada". 


Ryanair: ser capacho não é estratégia económica

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 07/06/2021)

Daniel Oliveira

Não é sobre o apoio do Estado à TAP que quero escrever. Sobre esse assunto e sobre a importância da TAP para a sobrevivência de um “hub” em Portugal – sem o qual o turismo levará uma pancada brutal – já falei vezes que cheguem. É sobre o bate-boca entre o ministro das Infraestruturas e a Ryanair.

Existe a ideia de que foram as low-cost, sem qualquer intervenção política, que contribuíram para o desenvolvimento do turismo. Como se sabe, o negócio das low-cost tem uma grande componente de apoio público. Porque têm, graças aos seus preços, um grande impacto no turismo de massas, as suas rotas são fortemente subsidiadas, sobretudo na fase inicial. A Ryanair recebe apoios do Estado para voar para o Porto, Açores e Faro, por exemplo. Só no ano passado, por causa do Covid, teve 29 rotas apoiadas para o Porto – o que não a impediu de fazer cortes e despedimentos no Porto. Estes subsídios públicos a rotas comerciais, com os nossos impostos, não incomodaram o “liberalíssimo” Cotrim Figueiredo, quando dirigia o Turismo de Portugal.

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Com toda a legitimidade, a companhia irlandesa recorreu ao Tribunal Europeu para travar a ajuda à TAP. Não é caso único. Há processos semelhantes com Air France, Austrian Airlines, Finnair, KLM e SAS. A Ryanair tem sido a grande promotora destes processos e ainda este fim de semana anunciou mais um, contra o governo italiano. As decisões do tribunal têm sido diversas. No caso da TAP, o apoio está apenas suspenso e Portugal tem de o justificar.

A lei europeia não aceita que o acionista Estado seja igual aos outros. O da Ryanair pode queimar milhões para manter rotas deficitárias (é o que está a fazer), o acionista público não o pode fazer. Ou só o pode fazer se a sua empresa fosse saudável antes. É um ponto de vista ideológico – que geralmente se aplica de forma diferenciada a países periféricos e centeais – que se impôs na União Europeia sem nunca ter ido a votos. Mas o foco excessivo nas regras de concorrência europeia acaba por prejudicar a competitividade externa das empresas comunitárias. Sem estarem constrangidas pelas suicidas regras europeias, as companhias extracomunitárias, nomeadamente as norte-americanas, estão a receber grandes envelopes financeiros. No fim, vão estar mais fortes do que as nossas. Não é um problema para a Ryanair, que não concorre com elas.

O objetivo dos processos que a Ryanair vai pondo é aproveitar a crise para limpar a concorrência. É uma estratégia compreensível para uma empresa privada. Assim como é compreensível que um Estado tente impedir que isso aconteça, porque isso colocará Portugal nas mãos de interesses estratégicos que não controla. Estranho é que haja políticos portugueses que, mesmo podendo achar que salvar a TAP não seja a melhor solução, estejam disponíveis a colaborar com esta estratégia de terra queimada, que reforçará a capacidade de chantagem destas empresas exigirem dinheiro público para manterem rotas fundamentais que passarão a controlar. A Ryanair acabou de o fazer em Faro, onde as low-cost têm um grande peso. Fazem-no sempre em aeroportos que dominam.

Como é natural nas relações do Estado com empresas, o ministro das Infraestruturas pediu uma reunião com o queixoso. Não sei se o encontro teve alguma utilidade, mas, saído da reunião, a Raynair lançou um comunicado inaceitável (esse sim, pouco habitual) para qualquer Estado: “três mil milhões dos escassos fundos dos contribuintes portugueses não devem ser desviados de investir em escolas, hospitais e outras infraestruturas para subsidiar uma companhia aérea falhada”.

Perante este comunicado (e esta sequência tem sido ignorada por muitos), ele sim inusitado, Pedro Nuno Santos respondeu, também em comunicado, que "não aceita intromissões nem lições de uma companhia aérea estrangeira". E recordou que a empresa tem de respeitar a legislação portuguesa, coisa que reiteradamente se recusa a fazer, sobretudo no campo laboral, fazendo assim concorrência desleal às outras companhias a operar no país. Muita gente ficou incomodada porque, vivendo bem com os recorrentes abusos verbais de Michael O’Leary, acha que o Estado português será mais respeitado se ficar calado. Aproveitando mais este momento, e no comportamento oposto ao que tem com o seu catastrófico ministro da Administração Interna, António Costa fragilizou a posição portuguesa lançando novo ataque para dentro do seu próprio governo. O “fogo amigo” veio, desta vez, por interposta pessoa: a líder parlamentar do PS, que parece estar mais preocupada com as lutas internas no partido do que com a defesa do governo perante um ataque de um CEO de uma empresa estrangeira.

Michael O’Leary tem todo o direito a falar de apoios a concorrentes, mas extravasa o seu papel quando decide comportar-se como um jogador político nacional, comentando a política orçamental do Estado português. E mesmo no que toca aos apoios públicos, não tem grandes autoridade: a companhia já foi várias vezes condenada a devolver ajudas de Estado por essa Europa fora. Dinheiro francês ou irlandês que foi para as suas mãos em vez de ir para escolas e hospitais.

Dirão que, operando em Portugal, a Ryanair tem tudo a ver com o que se faz no país. Só que a Ryanair quer ser portuguesa nos direitos e estrangeira nos deveres. Com sede em Dublin, opera em Portugal desde 2008, mas apenas em novembro de 2018 aceitou que a lei a vigorar para os seus tripulantes baseados em Portugal fosse a portuguesa. E, mesmo assim, nunca o aceitou realmente.

Apesar de não ter sede em Portugal, a Ryanair recebeu os apoios públicos do Lay-off durante a pandemia. Para isso, é portuguesa. Mas, nas restantes relações com os trabalhadores, insiste em comportar-se como se fosse uma empresa estrangeira. Apresentou propostas ilegais aos seus tripulantes de cabine, que obrigava a abdicar dos créditos laborais anteriores a 2018, acompanhado pelo assédio laboral que sempre fez parte da cultura da empresa. A alguns trabalhadores, com mais de dez anos na casa, propôs que fossem vinculados com salário de 548€, abaixo do salário mínimo nacional em Portugal. Teve de ser condenada para pagar subsídios de férias e de Natal e por não respeitar os 22 dias de férias da legislação nacional. Apesar de receber apoios do Governo Regional dos Açores, pressionou os trabalhadores da base de Ponta Delgada a assinarem reduções salariais, perda de créditos laborais e a não-compensação pela mudança de base. Quem não aceitou viu os contratos suspensos. Nos últimos dois anos foram detetadas pela ACT 376 infrações na empresa, com 36 coimas. Mas dá lições de moral sobre quanto o Estado português paga a enfermeiros e professores, tentando que o populismo faça uma empresa conhecida pela sua selvajaria laboral parecer defensora dos direitos dos trabalhadores.

Para receber o dinheiro do Lay-off ou opinar sobre os salários pagos a funcionários do Estado, a Ryanair é portuguesa, mas quando teve uma greve em casa contactou várias tripulações com base noutros países da UE para substituírem os grevistas portugueses, chegando ao ponto de ameaçar com despedimento quem não aceitasse vir para Portugal e violando de forma grosseira a lei da greve. Quando recebe dinheiro do Estado éuma empresa em Portugal, quando há uma greve deixa de o ser.

Mas não é só com os trabalhadores que a Ryanair tem problemas. Apesar de se preocupar com os impostos dos portugueses, não se preocupa em fazer-lhes companhia. Em 2019, a Autoridade Tributária continuava a exigir que a Ryanair emitisse faturas com o número de contribuinte aos portugueses, coisa que evitava fazer. A maioria das reclamações dos clientes, que não conseguiam o que até um cliente de um café consegue, vieram dos Açores e da Madeira, por causa do subsídio de mobilidade. Há casos em que a Ryanair até conseguiu que um tribunal arbitral lhe desse razão, como a recusa em pagar IVA das raspadinhas vendidas a bordo. Para isso a empresa é irlandesa.

O estilo de O’Leary é conhecido, mas instalou-se a ideia que quem tem dinheiro nunca deve ter resposta. Quando se debatia o impacto ambiental do novo aeroporto do Montijo, que a Ryanair exige que seja imediatamente construído com o dinheiro dos outros, o presidente da Ryanair disse que tinha a solução: "É só pegar em duas shotguns e o problema dos pássaros resolve-se". Há quem acredite que a subserviência traz investimentos. Se existirem negócios em Portugal, a Ryanair ficará, diga o ministro o que disser. Ser capacho não é uma estratégia económica. É um mau hábito de que os investidores abusam. 

 As Odemiras dos bairros de Lisboa

Posted: 07 Jun 2021 04:00 AM PDT

 


«Há umas semanas, o país encolhia-se de horror perante as imagens de miséria que chegavam de Odemira. A indignação tolheu governo e deputados e nenhum responsável, político ou outro, deixou de lado a opinião alimentada pela consciência de que o caso dos imigrantes a viver em condições sub-humanas não podia admitir-se. Houve quem lembrasse que não era caso único nem sequer recente, enquanto a maioria rasgava as vestes e declarava a situação insuportável.

Como todos os outros, o caso de Odemira passou, ao fim de uns dias, de assunto de Estado a palha para engordar a longa lista de temas que queimam e se extinguem demasiado depressa - como os horrores vividos pelos moçambicanos às mãos de jihadistas, o descontrolo nas festas dos adeptos de futebol, a marquise de Cristiano Ronaldo e outros temas que por diferentes motivos despertam a indignação coletiva. Raras vezes duram tempo suficiente para encontrar responsáveis e soluções. Antes servem de combustível para alimentar causas próprias.

Sobre Odemira, disse Fernando Medina no seu espaço de comentário semanal que muito daquela história se contava pelo "desequilíbrio ambiental e dos serviços" - educação e saúde - e que "o ideal seria nunca ter deixado crescer a agricultura intensiva ao nível que cresceu". Porque, naturalmente, a avidez de produzir mais e mais, e a falta de portugueses que queiram trabalhar nos campos, combinadas com a deficiente fiscalização, haviam resultado naquela situação indizível.

Há, porém, outras Odemiras. E a muitas não pode apontar-se o crime da agricultura. Como aquela que se desenvolve debaixo do nariz do presidente da câmara de Lisboa, empurrando dezenas de nepaleses, bangladeshianos, senegaleses, guineenses e outros imigrantes que aqui chegam com parcos meios e ainda menos perspetivas para se alojarem em quartos de 15 metros quadrados. Divisões cortadas a pladur em que partilham o espaço à meia dúzia, a pagar mais de 100 euros por uma cama e tempo limitado de casa de banho. É o que têm de fazer para conseguir trabalhar nas mercearias e lojas de souvenirs que vão sobrevivendo à pandemia e garantir que o pouco dinheiro que fazem vai chegando às suas famílias, lá longe.

Também em Lisboa o problema não é novo ou desconhecido: foi identificado num estudo completado há uma década. Mas pouco se alterou nesta que é cada vez mais a realidade de bairros como a Mouraria, o Martim Moniz, o Intendente. Nem foi atalhado há um ano, já em tempos de pandemia, quando a polémica do dia eram as 170 pessoas retiradas de um desses edifícios, em plena Morais Soares, tendo 136 delas acusado positivo para a covid. Ou quando nos assaltaram dezenas de casos semelhantes por toda a cidade, prédios sobrelotados, sem condições, recheados de imigrantes a depender da ajuda de associações locais - que apontam para mais de um quarto dos estrangeiros em Lisboa a viver nessas condições. Para esses, não há alojamento digno à vista. Tão-pouco uma daquelas 6 mil casas prometidas por Medina há quatro anos, a renda comportável por quem não tem hoje acesso à cidade (parte delas chumbadas pelo Tribunal de Contas, menos de 400 feitas).»