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sábado, 12 de junho de 2021

 10 de Junho

Posted: 10 Jun 2021 06:59 AM PDT

 


Este post regressa quase todos os anos. Por mais tempo que passe, nunca deixará de ser, para mim, o tal «Dia da Raça», já que não consegui apagar da memória o que era até ao 25 de Abril. 

Assinala-se hoje o dia em que Camões foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1880. Feriado nacional desde os anos vinte do século passado, a data ganhou um novo significado em 1944, quando Salazar a rebaptizou como «Festa de Camões e da Raça». Fê-lo por ocasião da inauguração do Estádio Nacional, que ocorreu com grande pompa, em cerimónias a que terão assistido mais de 60.000 pessoas e que foram filmadas por António Lopes Ribeiro (vídeos aqui e aqui). Linguagem inequívoca: «Às cinco horas, chegou o chefe: Salazar. Salazar, campeão da pátria, era o atleta número um, naquela festa de campeões.»

Mais graves, e bem mais trágicos, passaram a ser os 10 de Junho a partir de 1963. Transformados em homenagem às Forças Armadas envolvidas na guerra colonial, eram a data escolhida para distribuição de condecorações, muitas vezes na pessoa de familiares de soldados mortos em combate (fotos reais no topo deste post).

Entre 1975 e 1977, o Dia de Portugal foi 25 de Abril e, de 1974 a 1976, não houve comemorações do 10 de Junho. Até que um militar presidente da República as ressuscitou em 1977, primeiro como «Dia de Camões e das Comunidades» e, a partir de 1978, também como «Dia de Portugal». Mas continua-se a distribuir condecorações – outras, por motivos diferentes e eventualmente louváveis. No mínimo, talvez fosse possível escolher outra data para o efeito, já que, pelo menos no que me diz respeito, sou incapaz de não associar qualquer distribuição de medalhas neste dia às trágicas imagens do Terreiro do Paço, em tempo da guerra colonial.

 


Objectos destinados a vencer

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 11/06/2021)

António Guerreiro

Uma regra de prudência e de reflexão auto-crítica convida-me a uma prévia advertência: este texto cai na armadilha que ele próprio pretende nomear e analisar. O objecto armadilhado é um livro do jornalista José Gomes Ferreira intitulado Factos Escondidos da História de Portugal. Nem precisamos de avançar para além do título — igual a tantos outros animados pela mesma intenção — para percebermos que se trata de matéria fraudulenta. Noutro tempo, não muito afastado do nosso, este livro existiria apenas no seu lugar próprio, não conseguiria transpor o seu território e suscitar qualquer olhar — muito menos um discurso crítico de denúncia — por parte de historiadores e gente da ciência e da crítica. Ainda mais: à sua volta, os colegas do autor ergueriam à volta do livro um cerco para defenderem o seu capital mais preciso, o prestígio e a credibilidade. Ora, hoje, tal livro consegue mobilizar os esforços críticos de historiadores (neste jornal, Rui Tavares dedicou-lhe uma crónica no dia 2 de Junho), mobiliza notas de divulgação crítica nas páginas dos jornais “de referência” (como se diz actualmente), e aqui estou eu, em flagrante contradição, a dissertar sobre as suas manifestações sintomáticas e de tudo o que o rodeia.

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Trata-se de um exemplo eloquente dos mecanismos culturais e dos efeitos dos actos mediáticos, para os quais não há nenhuma resposta crítica eficaz: se os historiadores sentiram necessidade de descer ao mundo demasiado profano desse livro é porque sentiram que são fracas as defesas que temos contra este objecto (como demonstra a velocidade e a eficácia com que se difundem hoje as teorias da conspiração), que tem as características viscosas que permitem a sua irradiação. Uma dessas características, a principal, é a sua matéria esotérica, as ideias e os factos que não precisam de verificação para suscitar a adesão de círculos de adeptos. O seu discurso é o das superstições, das verdades ocultas e ocultadas por poderosos complots (assim se alimenta um neo-fascismo esotérico). O ocultismo, escreveu Adorno com muita pertinência num dos fragmentos de Minima Moralia, é a metafísica dos imbecis.

Mas porque é que é hoje tão difícil lidar com objectos como este? Porque num tempo de completo hibridismo cultural, quando a cultura de massas se tornou detentora dos mais poderosos mecanismos de difusão, declarar a falsidade ou apostar na inexistência de um dos seus produtos tem sempre como resultado confirmá-lo. Não há saída para isto: um livro chamado Factos Escondidos da História de Portugal, da autoria de um jornalista que tem ao seu serviço a máquina mediática que, por sua vez, se serve dele, tem um enorme poder de difusão. Não se confronta com o silêncio nem tem de se preocupar com a autenticidade das suas teses. Está sempre a ganhar, quer se diga que elas são falsas ou verdadeiras. Basta-lhes estarem impregnadas de uma visão da história para crentes e satisfazer preconceitos que reenviam para a dimensão do segredo. Quem acredita nos Protocolos dos sábios de Sião também não quer saber de questões de verdade e falsidade. Os complots não precisam de ser confirmados, só têm de ser colocados numa perspectiva que os torna uma eventualidade plausível para um público sempre em construção. Eis a prova de que vivemos, em geral, sob um regime mediático que, nas suas características fundamentais, tem um funcionamento que o aproxima das sociedades mafiosas.

Funcionamento semelhante, no sentido em que também não há defesas eficazes que permitam neutralizá-la, é o da estupidez. É muito difícil combatê-la porque tem a resistência das duras protuberâncias. Declarar-lhe guerra, como já Flaubert percebeu, é chocar contra uma pedra dura de onde não saímos ilesos. Ou cheios de sangue, ou impregnados de estupidez — aquela, precisamente, que queremos combater.

Tal como acaba por ser estúpido denunciar a estupidez, também se presta um bom serviço aos Factos Escondidos da História de Portugal dizendo que é uma fraude. Expor o funcionamento desta máquina fraudulenta que não conseguimos deter, apreendê-la em flagrante delito nas suas várias extensões e cumplicidades, é o máximo que podemos fazer.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

 


Fogo amigo

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/06/2021)

Daniel Oliveira

(Haja alguém que diga a António Costa que a monarquia terminou em 1910. E por isso os sucessores não se escolhem por via uterina. Estátua de Sal, 09/06/2021)


Depois do caso de Ihor Humenyuk, Eduardo Cabrita passou de ministro incompetente a ministro morto. Foi por isso que Magina da Silva se atreveu a ir a Belém apresentar a sua reforma das polícias e não foi demitido. É por isso que o SEF está paralisado, pronto para sabotar uma reforma dirigida por quem não dirige coisa alguma. Foi por isso que os “proprietários” da ZMar conseguiram mobilizar os meios mediáticos para sacarem mais uns cobres ao Estado. Sabiam que a fragilidade política do ministro faria a opinião pública vacilar. E é por isso que cada episódio que envolva a polícia acaba em exigências de demissão a que António Costa responde sem se rir: “Tenho um excelente ministro.” Cabrita tem três qualidades que ele preza: é seu amigo, não tem ambições e nunca existirá sem ele.

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Compare-se este comportamento com o que tem com o ministro das Infraestruturas, com o dossier da TAP, o mais explosivo deste governo. Quando a decisão de nacionalizar foi tomada – porque Costa percebeu que era a única alternativa à falência e perda do “hub” –, desautorizou o ministro no meio de um inevitável braço de ferro com o principal acionista, que não queria partir sem levar o que pudesse do Estado. Voltou a fazer o mesmo quando o ministro quis levar o plano da TAP ao Parlamento, para não ter – como terá – dissabores mais tarde. Esperou dias para tomar posição, garantindo que a desautorização vinha com estrondo.

Há poucas semanas, num pequeno gesto revelador, foi ainda mais deselegante. Confrontado por manifestantes da Comissão de Trabalhadores das Infraestruturas de Portugal, em Valença, respondeu-lhes: o Pedro Nuno Santos pode ouvi-los. E virou as costas, deixando-o sozinho perante manifestantes e jornalistas e abalando com toda a delegação. Costa faz tudo às claras, como nunca algum primeiro-ministro fez com um ministro do seu partido. De forma a que todos percebam, a começar pelo alvo, esperando que assuma o confronto e abandone o Governo. Porque é um mau ministro? Foi quem lhe segurou a geringonça, travou uma greve dos camionistas que levaria o país ao colapso e carrega nos ombros a escolha do Governo salvar a TAP – compare-se com as minúsculas crises que Cabrita agiganta. Costa não o quer como sucessor e não hesitará em dinamitar um dossier com as dimensões estratosféricas da TAP.

António Costa tem um candidato à liderança do PS: o que não for Pedro Nuno Santos. Por fortes divergências políticas? Talvez haja algumas, mas Costa não é um homem de convicções ideológicas fortes. Há questões de temperamento. Há a dificuldade em lidar com um dos poucos ministros e figuras do PS que tem autonomia política em relação ao chefe, coisa pouco apreciada na cultura partidária portuguesa. Mas, como acontece muitas vezes, há coisas mais pequenas: Costa não esquece um congresso levantado perante o discurso de Pedro Nuno Santos. E recusa-se a aceitar que não seja ele a escolher o seu sucessor. A vaidade é o motor da ambição e o lado mais mesquinho do poder.

Sendo claro que o seu mais que tudo, Augusto Santos Silva, não tem perfil de líder, e que a Fernando Medina falta partido, eleitores e carisma, a sua enésima escolha é Ana Catarina Mendes. A sua ida para a "Circulatura do Quadrado", nomeada pelo aparelho encarnado em pessoa, o saudoso Jorge Coelho, teve a função de lhe dar mais notoriedade e estaleca. Reconstruir a dirigente que perdeu a liderança da JS para Jamila Madeira, que é coisa que não se deseja a ninguém. Com a ajuda de Pedro Nuno Santos, é bom lembrar.

Em vez de fazer, como tem feito, as despesas da casa, Costa delegou em Ana Catarina Mendes um cerco de que é suposto ser a benificiária futura. Não se pode dizer que o tirocínio no combate interno tenha sido auspicioso. Cumpriu a ingrata missão de tomar partido contra um ministro quando ele reagia a um insulto ao governo português vindo de uma das figuras mais boçais do mundo empresarial europeu. Sendo líder parlamentar, não o terá feito sem o apoio de Costa. A direita rejubilou, duvido que os socialistas tenham adorado.

Se o objetivo fosse ganhar os militantes do PS, atacar um ministro quando o CEO da Ryanair insulta o Governo e ataca os interesses de Portugal em Bruxelas não seria a melhor estratégia. Só que o objetivo não é preparar o confronto, é encher o caminho do opositor de minas para que ele entre em rutura com o primeiro-ministro, atirando-o para o limbo da oposição interna a um governo popular, lá para onde mandou, à direita, Francisco Assis. O cerco vai ser feroz. Muito maior do que julgo que Pedro Nuno Santos imagina. O problema é que, com isso, Costa e Mendes fragilizam o Governo e, mais importante, os interesses de Portugal. A TAP é um dossier demasiado caro para este tipo de jogos.


Comemorar 50 anos de democracia

por estatuadesal

(José Vítor Malheiros, in Facebook, 09/06/2021)

José Vítor Malheiros

Os comentários críticos vindos da direita e da extrema-direita (é cada vez mais difícil distingui-las) sobre a nomeação de Pedro Adão e Silva para comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril apresentam duas ordens de “razões”: 1) Trata-se de um socialista 2) Vai ser pago (e bem pago) por esse trabalho.

A primeira “razão” deveria morrer de vergonha antes de sair da boca de Rui Rio, Rodrigues dos Santos ou Ventura se algum tivesse uma réstia de honestidade intelectual. A direita nomeou correligionários aos magotes, uns com competência e muitos sem ela, para todos os lugares imagináveis sem que estes recentes arautos da independência partidária emitisse um ai. Nesses casos, o facto de serem uma escolha partidária pareceu-lhes uma qualidade. O comentador João Miguel Tavares foi nomeado presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho do ano passado sem que esta direita se inquietasse minimamente com o despautério da nomeação ou com as tolices do seu discurso. Que esta mesma direita critique Adão e Silva é, por isso, ridículo. Adão e Silva é de facto socialista mas é, além disso, um profissional cuja competência, inteligência e rigor são reconhecidos por todos os que não estejam afectados pela cegueira ideológica - a começar pelo Presidente da República. E é, o que convém nestes casos, alguém cujo apego à democracia que nasceu do 25 de Abril não é susceptível de dúvidas e cujo conhecimento do país que nasceu dessa democracia é de uma particular solidez. Por outras palavras, não é um João Miguel Tavares. Sabemos que isso custa à direita, mas ter uma direita tão avessa à cultura e ao pensamento não devia ser motivo de orgulho para ninguém.

A segunda “razão” tem ainda menos racionalidade.

Penso, e sempre defendi, que o trabalho deve ser pago. Defendi isso quando se tratava do meu trabalho e quando se tratava do trabalho dos outros. Penso que toda a gente está de acordo com a frase tal como a enunciei, mas penso que o problema não está aqui. O problema está no facto de que, para a direita populista (hoje é toda a direita) o trabalho intelectual não é trabalho e, por isso, não merece pagamento e os intelectuais e académicos, como Adão e Silva, são elites a abater.

Goering puxava da pistola quando ouvia falar de cultura. Milán-Astray pedia a morte da inteligência. A direita portuguesa ainda não está aí mas para lá caminha. A criada de Alexandre Herculano dizia que o escritor era boa pessoa mas muito preguiçoso, passava os dias a ler e a escrever. Rui Rio, que acha que os debates parlamentares não deixam os políticos trabalhar, acha que as comemorações de 50 anos de democracia devem ser um dia e que organizar comemorações não é trabalho. Daria vontade de rir se não fosse trágico. 

 

O regresso de Schäuble

por estatuadesal

(José Gusmão, in Público, 10/06/2021)

Se a desonestidade de Schäuble é importante de notar e desmontar, pois será disciplinadamente papagueada pelos austeritários nacionais, a sua preocupação com as desigualdades só pode ser entendida como uma piada de mau gosto.


O ex-ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble voltou do seu exílio político, agora como presidente do parlamento alemão, com um artigo publicado no Financial Times, em que pede o rápido retorno à austeridade orçamental, entendido como o “normal” da política económica. No entanto, se o objectivo continua a ser o mesmo – cortar nos serviços públicos, salários e direitos sociais –, os argumentos de há dez anos já não servem.

O aumento da despesa pública alemã para fazer frente à crise económica foi dos maiores do mundo, em torno de 8,5% do PIB, segundo o FMI, tendo sido bem-sucedido na estabilização da economia. A economia alemã sofreu uma queda de 4,9%, com um aumento do défice orçamental similar ao de Portugal, onde o esforço orçamental foi bem mais modesto, mas a queda do PIB muito pior (-7,5%). A Alemanha é, afinal, a prova presente da eficácia das políticas contracíclicas.

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Acresce que os países agora beneficiam de taxas de juro perto do zero impostas pelo BCE. Ora, se os argumentos da frugalidade ou da solvabilidade não fornecem fundamento para a ingerência política, então muda-se o argumento: desta vez o problema está na inflação. Aqui Schäuble dá, mais uma vez, provas de uma desfaçatez de deixar qualquer um de queixo caído. Começa por invocar o economista John Maynard Keynes para tentar subverter as propostas económicas deste, invocando o que escreveu sobre inflação no seu popular panfleto “As consequências económicas da paz”, escrito no pós-I guerra mundial.

É verdade que Keynes alertou em 1919 para as consequências destrutivas de processos inflacionários, sobretudo no pós-guerra, provocadas pelo pagamento de reparações de guerra, pagas em moeda estrangeira indexada ao ouro em países com sistemas fiscais rudimentares, resultando no famoso processo de hiperinflação alemã de 1923.

No entanto, o entendimento de Keynes da moeda e da inflação evoluíram ao longo do tempo: moeda enquanto resultado do crédito bancário, preferência pela liquidez, papel articulado da política monetária e política orçamental em busca do pleno emprego. Schäuble conhece tudo isto, claro, mas abusa de considerações feitas por Keynes em 1919, num contexto ultra-específico, para tirar conclusões monetaristas, colando Keynes àquele que foi o seu maior opositor intelectual no século XX, Milton Friedman.

Assim, defende Schäuble, a expansão monetária de 2020, não tendo como resultado um aumento do PIB na mesma proporção, só poderia resultar num aumento da inflação. Neste raciocínio são ignorados olimpicamente a experiência histórica das últimas décadas, que contraria qualquer relação linear entre massa monetária e inflação, ou o brutal aumento da criação monetária pós-crise de 2008 sem nenhum efeito na inflação.

Mas a inflação não está a crescer? Está, mas na zona euro, pouco, chegando agora ao objectivo do BCE de 2%. As razões para este aumento não têm qualquer relação com um sobreaquecimento da economia provocado pela política monetária e orçamental expansionista. Não só existe um mero efeito de base no crescimento dos preços – o ano passado foi marcado por uma queda de preços, sobretudo na energia – como é sabido que a pandemia trouxe desarticulações nas cadeias produtivas, causando aumentos abruptos de preços em certos sectores, como o transporte marítimo, e mudanças no perfil de consumo que colocam certos sectores sob pressão, enquanto outros se encontram parados.

Mas Schäuble vai mais longe na sua desonestidade, importando os termos da discussão económica norte-americana, onde o Estado expandiu no presente e para o futuro de forma inédita e incomparável com qualquer país europeu, permitindo uma rápida recuperação económica. Blanchard, um dos que se mostrou preocupado com a possibilidade de inflação nos EUA, já se veio demarcar explicitamente, dizendo que não está preocupado com inflação na Zona Euro.

Se a desonestidade de Schäuble é importante de notar e desmontar, pois será disciplinadamente papagueada pelos austeritários nacionais, a sua preocupação com as desigualdades só pode ser entendida como uma piada de mau gosto. Schäuble, que foi um dos obreiros de uma das maiores transferências de rendimento do trabalho para o capital nas últimas décadas, condenando milhões ao desemprego e à miséria, diz-nos agora que ao aumentarem a dívida pública, os Estados estão a favorecer os mais ricos que compram os títulos de dívida. Esquecido é já o argumento, avançado parágrafos antes, do aumento da massa monetária devido ao financiamento dos Bancos Centrais que agora são, de longe, os principais compradores últimos de dívida, a taxas baixíssimas, nulas ou negativas.

Schäuble ignora o papel da política orçamental, agora financiada por dívida, na necessária redistribuição de rendimento, dos lay-offs em Portugal às transferências de emergência praticadas por inúmeros países, incluindo o seu, para omitir a verdadeira causa desse fenómeno de agravamento da desigualdade: sem uma política de crédito dirigida à produção e ao emprego, a expansão monetária alimentou a especulação privada nos mercados bolsistas, inflacionando preços de acções e criando bilionários virtuais a um ritmo nunca visto.

Finalmente, Schäuble é claro nos seus objectivos. A questão é menos uma tentativa de enquadramento ideológico que retome a austeridade orçamental como “normal”, mas sobretudo a ingerência sobre os países do Sul da Zona Euro. Schäuble lamenta que orçamentos equilibrados em países com elevados níveis de endividamento sejam quase impossíveis sem pressão externa.

Referindo-se explicitamente a Itália, a maior economia da periferia, Schäuble defende novos mecanismos de controlo político dentro da UE, seja através de um fundo para o pagamento de dívida onde os Estados coloquem “boas garantias” (empresas públicas? Património natural? A torre de Belém?), seja através do reforço dos poderes da Comissão Europeia, que se está a mostrar cada vez mais afoita nas pressões sobre governos democráticos. Se a intenção é colocar a segunda e terceira economias da Zona Euro nas mãos da extrema-direita, a ideia é perfeita. Já em Portugal isso não é necessário. Por cá, a política normal de Schäuble está plenamente interiorizada e é cegamente praticada, sendo desnecessária a maçada de dar ordens.

A razão para esta ingerência e nova ameaça à soberania nacional é simples: a gestão monetária do Euro só pode servir os interesses da economia alemã. Os restantes países devem obedecer aos ditames de Frankfurt como no início do século obedeciam ao padrão-ouro: um constrangimento externo, limitador da acção do Estado, em nome da estabilidade da esfera financeira. Padrão-ouro que, como sabemos, teve quem como um dos seus grandes detractores? John Maynard Keynes.

Economista e eurodeputado do Bloco de Esquerda