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quarta-feira, 10 de abril de 2024

O destino de centenas de milhares de civis em Gaza está nas mãos da inteligência artificial

estatuadesal

8 de Abril de

(Por Ayse Iram Tiryaki e Irmak Akcan, in Reseau International, 08/04/2024, Trad. Estátua de Sal)

(Este artigo revela toda a ignomínia e maldade de que é capaz a espécie humana, ou pelo menos alguns dos seus membros. Aterrador e revoltante. Desculpem-me, mas quem assim atua não tem perdão. Merece mais e pior que uma morte rápida e indolor.

Estátua de Sal, 08/04/2024)


Os militares israelitas perseguem 37 mil “alvos humanos” identificados pelo programa de inteligência artificial “Lavender”, por alegadas ligações ao Hamas, entre os 2,3 milhões de habitantes de Gaza cujos dados foram avaliados pelo programa.

A comunicação social israelita revelou que o exército está a usar inteligência artificial (IA) para determinar os seus alvos entre a população de Gaza.

Assim, segundo fontes que prestaram declarações aos meios de comunicação israelitas (+972 e Local Call), com sede em Telavive, o programa “Lavender” analisa os dados que recolhe sobre cerca de 2,3 milhões de pessoas de Gaza segundo critérios vagos, avaliando a probabilidade de uma pessoa estar ligada ao Hamas.

Segundo estas fontes, Israel arriscaria pelo menos 20 “vítimas civis” por cada um dos 37 mil “suspeitos”, identificados pelo programa de inteligência artificial “Lavender” como “alvos humanos”, nos ataques a Gaza.

O exército israelita “aderiu integralmente” ao programa, nomeadamente no início da guerra, e os nomes identificados pelo “Lavender” foram, portanto, considerados “alvos”, por pessoal sem controlo e sem critérios específicos, desde que se tratassem de homens, especificam as fontes nas suas declarações aos meios de comunicação em questão.

37000 Palestinianos rotulados como suspeitos

Fontes disseram ao +972 que o conceito de “alvo humano”, que permite matar em propriedade privada mesmo que haja civis no edifício e arredores, anteriormente abrangia apenas “alvos militares de alto nível”, mas depois de 7 de outubro, os “alvos humanos" foram expandidos para incluir todos os membros do Hamas.

Devido ao aumento no número de alvos, notou-se que a inteligência artificial era necessária porque a capacidade de verificar alvos – através de exame e verificação individual por humanos, como se fazia anteriormente -, foi eliminada, e foi relatado que a inteligência artificial rotulou cerca de 37.000 palestinianos como “suspeitos”. O processo foi totalmente automatizado depois que o “Lavender” foi considerado capaz de classificar os palestinianos “em até 90%”.

Matámos milhares de pessoas. Automatizámos tudo e não verificámos os alvos individualmente. Quando as pessoas marcadas entravam nas suas casas, nós as bombardeávamos”, disseram as fontes, confirmando a retirada do controle humano.

O comentário de uma fonte de que era "muito surpreendente que lhe pedissem para bombardear uma casa para matar um personagem menor" foi visto como uma admissão do massacre de civis em Gaza, por Israel.

Luz verde para alvos de alto nível com até 100 vítimas civis

Fontes indicaram que foi permitido um máximo de “20 vítimas civis” na operação contra um “suspeito” de baixo escalão, e que este número foi frequentemente aumentado e diminuído durante o processo, chamando a atenção para o facto de que o “princípio da proporcionalidade” não foi aplicado. Por outro lado, foi afirmado que o número em questão subia para 100, quando se tratava de alvos de alto nível. As mesmas fontes disseram que receberam ordens de “bombardear onde pudessem” e acrescentaram: “Os altos funcionários estavam em estado de histeria. Eles não sabiam como reagir. Tudo o que sabiam era que tinham de bombardear como loucos para limitar as capacidades do Hamas”. “B.”, um militar de alta patente que usou o “Lavender”, afirma que o programa tem uma “margem de erro de cerca de 10%” e que não precisa ser verificado por humanos para evitar perdas de tempo.

Uma pessoa que levava o telefone, identificado como alvo, foi bombardeada juntamente com a sua família

Quando a definição de membro do Hamas foi alargada, a aplicação começou a visar todos os tipos de membros da proteção civil e agentes da polícia. Mesmo que estas pessoas estivessem a ajudar o Hamas, não estavam realmente a pôr em perigo os soldados israelitas”. Destacando as deficiências do sistema, “B.” disse: “Se o alvo desse o seu telefone a outra pessoa, essa pessoa seria bombardeada na sua casa com toda a sua família. Isso aconteceu com muita frequência. Este foi um dos erros mais frequentes do Lavender”.

A maioria dos mortos eram mulheres e crianças

Por outro lado, outro software chamado “Onde está o papai?” rastreia milhares de pessoas simultaneamente e notifica as autoridades israelitas quando elas entram em casa. As casas das pessoas visadas foram bombardeadas usando este software: “Digamos que você calcule que há um membro do Hamas e 10 civis numa casa, geralmente essas 10 pessoas são mulheres e crianças. Portanto, a maioria das pessoas que você mata são mulheres e crianças”.

Este sistema também apresenta erros de cálculo, como explica uma das fontes: “Na maioria das vezes, a pessoa visada nem está na casa que bombardeámos. Portanto, estávamos a matar uma família para nada”.

Bombas não guiadas são usadas para economizar dinheiro

As fontes também disseram que pessoas de baixo escalão foram alvo de “bombas não guiadas” em vez de “bombas inteligentes guiadas”, a fim de “economizar armas caras”, causando muitas vítimas civis à medida que edifícios localizados dentro e ao redor da pessoa visada eram destruídos.

Sobre o uso de bombas não guiadas, uma das fontes disse: “Costumamos realizar ataques com bombas não guiadas, o que significa literalmente a destruição de toda a casa e do seu conteúdo. Por causa deste sistema, os alvos continuam a multiplicar-se”.

A inteligência artificial é usada para encontrar mais alvos, não para reduzir as vítimas civis

Em declarações à Al Jazeera, o professor Marc Owen Jones, que trabalha em estudos do Médio Oriente e humanidades digitais na Universidade Hamid bin Khalifa, no Qatar, disse: "Está a tornar-se cada vez mais claro que Israel utiliza sistemas de inteligência artificial não testados, que não foram avaliados de forma transparente, para ajudar na tomada de decisões sobre a vida dos civis”. Sugerindo que as autoridades israelitas - quando usam sistemas de inteligência artificial delegam a seleção de alvos na inteligência artificial e usam o sistema para “evitar a responsabilidade moral ” -, Jones afirmou que o sistema é usado “para encontrar mais alvos, e não para reduzir o número de vítimas civis”. Alegando que mesmo os responsáveis ​​que operam o sistema veem a inteligência artificial como uma “máquina de matar”, Jones sublinhou que é pouco provável que Israel acabe com a utilização de inteligência artificial em ataques, a menos que “os seus aliados pressionem muito”.Descrevendo o incidente como um genocídio assistido por IA, Jones acredita que “deveria ser discutida e negociada uma moratória sobre o uso de inteligência artificial em guerras”.

“Habsora” (O Evangelho)

Num outro estudo publicado a 1 de Dezembro de 2023, afirma-se que o exército israelita utilizou a aplicação de inteligência artificial chamada “Habsora” (O Evangelho), que é utilizada para identificar alvos durante os seus ataques contra a Faixa de Gaza, para atacar deliberadamente infraestruturas civis, e que sabe sempre quantos civis morrerão nos ataques contra os alvos gerados automaticamente pela aplicação. Enquanto o “Habsora” tem como alvo edifícios e estruturas, o Lavender tem como alvo indivíduos.

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

 

Os “nossos valores” sequestrados

estatuadesal

7 de Abril de

(José Goulão, in Strategic Culture Foundation, 29/03/2024)

No Ocidente os tão invocados “nossos valores partilhados” estão sequestrados, pelo que é fácil subvertê-los e usá-los perversamente como instrumentos para ludibriar e neutralizar o espírito crítico da grande maioria dos cidadãos.


Os nossos dirigentes, tanto os que têm envergadura imperial como os seus súbditos para quem a soberania nacional é coisa arcaica própria de mentes estagnadas, repetem sem descanso, martelando a cabeça dos cidadãos como no método tradicional de ensino da tabuada, que agimos em função dos “nossos valores partilhados”. Nós, o garboso Ocidente, senhores do planeta e dos espaços siderais por mandato divino e usucapião fundado em séculos de expansão e extorsão, assim administrando a “civilização”.

“Nossos valores partilhados” nas bocas dos fundamentalistas ocidentais é todo um programa de dominação, um conceito de ordem mundial assente num único poder centralizado com ambição a tornar-se global e incontestado. Se olharmos o mundo à nossa volta nestes dias assustadores, equipados com lucidez, independência de raciocínio e dose cada vez mais elevada de coragem, concluiremos que a aplicação desses “valores” – a palavra certa é imposição – funciona como um gigantesco exercício de manipulação que transforma princípios universais, humanos, inquestionáveis e comuns a muitas e diversificadas culturas num poder minoritário, de índole mafiosa e níveis de crueldade que vão da mentira institucionalizada à generalização da guerra, passando pelo roubo como forma de governo e de administração imperial/colonial. A este aparelho que pretende impor uma realidade paralela àquela em que vivemos chama-se “ordem internacional baseada em regras”, um catálogo de normas de comando voláteis, casuísticas, não escritas e a que todo o planeta deve obedecer cegamente, sem se interrogar nem defender.

“Ordem internacional baseada em regras” é o código imperial que veio soterrar o direito internacional e transformar as organizações mundiais que devem aplicá-lo em órgãos que rodopiam à mercê das “regras” de cada momento, manipulados, desvirtuados e instrumentalizados segundo as conveniências do funcionamento da realidade paralela.

Liberdade e democracia

Poucos princípios preenchem tanto as prédicas dos dirigentes mundiais e seus apêndices às escalas regional e nacional do que liberdade e democracia.

Uma liberdade para expandir globalmente, porém com uma definição muito específica e padrões limitados pelas “regras” da única ordem internacional permitida.

A liberdade prevalecente, e que condiciona todas as outras, acaba por ser a da propriedade privada e da inexistência de restrições ao funcionamento do mercado. Todas as restantes alavancas que devem fazer funcionar o mundo assentam neste princípio inquestionável que faz da justiça social uma aberração, transforma em servos a grande maioria dos seres humanos, converte as organizações internacionais e a generalidade dos governos nacionais em instrumentos dos casinos financeiros e das oligarquias económicas sem pátria, fronteiras ou limites comportamentais. Uma liberdade condicionada pela ditadura do lucro e a vassalagem ao dinheiro.

Este conceito dominante de liberdade, a liberdade de extorsão própria da realidade em que de facto vivemos, é desde há muitos séculos um alicerce da “civilização” ocidental – a única reconhecida para efeitos de relações internacionais. A ordem “baseada em regras” é extremamente exigente e vigilante em relação a esta mãe de todas as liberdades e, se necessário for, não hesita em recorrer à guerra para a restaurar lá onde estiver ameaçada.

Com a democracia acontece mais ou menos a mesma coisa. Só existe um único formato que permite instituir o “poder do povo”, mesmo que depois o povo em nada se identifique e beneficie com a interpretação da sua vontade que dela fazem os eleitos. É mais ou menos assim, segundo o padrão “representativo” determinado pelo Ocidente: de x em x anos criam-se festivais ditos políticos onde vigoram a violação tácita da igualdade de exposição de opiniões, a manipulação da informação e das chamadas “sondagens” e a divisão ostensiva e “institucionalizada” entre os partidos com “vocação para governar” e os outros; ensinados assim a “decidir”, as maiorias de eleitores escolhem em “liberdade” os seus preferidos, garantidamente aqueles aplicam a doutrina oficial “democrática”, nestes tempos o capitalismo na sua arbitrariedade plena, o neoliberalismo.

Exemplo desta democracia no seu grau máximo de evolução é a União Europeia: neste caso os cidadãos nem precisam de “escolher” os dirigentes máximos da organização, simplesmente nomeados para não haver erros nem desvios à doutrina governativa oficial e única; e supondo que os eleitores “escolhem” directamente o Parlamento Europeu, este tem poderes limitados para não perturbar o trabalho arbitrário dos não eleitos ao serviço dos seus patrões.

Quanto aos Estados Unidos, o paradigma democrático a que deve obedecer-se num mundo unipolar, a escolha imposta aos cidadãos limita-se a dois aparelhos mafiosos de poder que agem em formato de partido único. Sendo esta a democracia que funciona como farol, segundo as sentenças abalizadas dos mestres da opinião única, todas as outras devem seguir tendencialmente o mesmo caminho. Não é opção, é uma ordem “baseada em regras”: a lei do “excepcionalismo” de âmbito planetário gerido pela única nação “indispensável”. E dizem os comentadores autorizados que não existe imperialismo.

Daí que os praticantes da democracia ocidental, a única, tenham ainda como missão fiscalizar os exercícios democráticos dos outros através do mundo. Por isso a União Europeia, por exemplo, arroga-se o direito de “aceitar” ou não os referendos nos quais as populações do Donbass decidiram juntar-se à Rússia. O mesmo acontece em relação às recentes eleições presidenciais russas. O Ocidente declarou-as “falsas” mesmo antes de as realizarem, depois não quis inteirar-se da transparência e da afluência às urnas com que o processo decorreu; tudo isto para, no final, as declarar “fraudulentas”, “falsas”, próprias de um regime “autoritário”

Trata-se, afinal, de aplicar o princípio de reconhecer apenas as eleições e consultas populares que dão os resultados pretendidos pelo Ocidente e rejeitar todas as outras cujos eleitores decidiram de forma não tolerada pelos polícias da ordem internacional, como se tivessem violado as “regras”  -mesmo cumprido os mecanismos processuais das votações definidos como únicos. É à luz desse entendimento discriminatório que os Estados Unidos e os seus satélites não reconhecem resultados eleitorais na Venezuela, na Nicarágua, na Rússia, por exemplo, mas assinam por baixo a legitimidade de fraudes como nas Honduras, de golpes como no Brasil, Paraguai, Bolívia, Ucrânia, Paquistão (só alguns dos mais recentes) ou a designação como presidentes de indivíduos que nem sequer concorreram a eleições – o caso de Juan Guaidó na Venezuela,

A democracia ocidental é, como se prova, bastante elástica em casos que chegam a roçar o absurdo e muito restritiva no reconhecimento de actos eleitorais legítimos, porém menos convenientes para os interesses dos “excepcionalismo”. É uma questão de exercício do poder internacional que o Ocidente julga possuir à luz de “regras” casuísticas determinadas consoante os interesses de uma “civilização” que não envolve mais de 15 por cento da população mundial.

Recorrendo a exemplos recordados ao acaso, eis como a “democracia ocidental” é peculiar no próprio Ocidente. Robert Habeck, ministro da Economia da Alemanha, colosso cada vez mais reduzido a um tapete de Washington, garante que não lhe interessa a opinião do eleitorado, o essencial é que a Rússia seja derrotada pela Ucrânia. E Josep Borrell, o “ministro dos negócios estrangeiros” da União Europeia, que ninguém elegeu, determina que os cidadãos europeus “têm de pagar o preço” necessário para “derrotar a Rússia”. Ora aqui estão “regras” que corrigem a própria democracia padrão.

O mesmo Borrell, espanhol e também socialista, é claríssimo na interpretação dos “nossos valores partilhados”. Considera que na vida internacional há evidentemente “dois pesos e duas medidas”: os nossos, os “correctos”, e os dos outros, que têm comportamentos próprios da “barbárie.

Direitos humanos

Pedra de toque dos “nossos valores partilhados”, os direitos humanos traçam a grande fronteira entre o Ocidente “civilizado” e os outros – 85 por cento da população mundial.

Direitos humanos são, por sinal, valores que ilustram a preceito a tese de Borrell sobre dois pesos e duas medidas: nós sabemos o que são direitos humanos, os outros não.

Os principais acontecimentos da actualidade permitiram até refinar o conceito de direitos humanos a partir da clarificação entre seres humanos e entes sub-humanos – distinção baseada nas práticas de Volodimyr Zelensky, por sua vez inspirada nos conceitos purificadores de Stepan Bandera e seus pares, pais e heróis do regime ucraniano de Kiev, no seu tempo colaboradores dos nazis alemães em massacres de dezenas de milhares de seres humanos – talvez deva escrever-se sub-humanos.

As nações europeias dançam a música tocada por Zelensky segundo partitura das “regras” de Washington, para que os russos do Donbass e os russos em geral, sub-humanos por definição dos nazis que mandam em Kiev, sejam devidamente sacrificados tal como vinha a acontecer, metodicamente, como resultado de uma guerra iniciada há oito anos.

A “democracia ocidental”, apostando a própria vida dos cidadãos por ela regidos para que um regime nazi liquide sub-humanos, é um cenário apropriado para quem defende os direitos humanos acima de tudo? É o aval para a conversão do nazismo à democracia ou, antes de tudo, a demonstração de que a “democracia ocidental” segue na direcção do inferno do fascismo? O que nada tem de ilógico pois foi o fascismo que embalou no berço a ditadura neoliberal que dá forma ao regime financeiro-económico-político dominante em termos internacionais, exercido com ambições globalistas e totalitárias e que, em última instância, dita a “ordem internacional baseada em regras”.

Governantes, comentadores, analistas e outros formatadores da opinião única incomodam-se quando, a propósito da situação no Donbass, se recordam as atrocidades cometidas pelos Estados Unidos e a NATO, ou respectivos braços mais ou menos informais, nas guerras – algumas delas “humanitárias” – levadas até à Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Somália, Líbia, Síria, Iémen. Sem esquecer o caso exemplaríssimo do Kosovo, onde os Estados Unidos e a União Europeia praticaram uma secessão territorial sem qualquer consulta às populações envolvidas e entregaram o governo a terroristas fundamentalistas islâmicos especializados em múltiplos tráficos, todos eles rigorosamente respeitadores dos direitos humanos, como está comprovado.

E que autoridade têm os que condenam a anexação do Donbass, com o presidente norte-americano à cabeça, os mesmos que são cúmplices da anexação de quase toda a Palestina e territórios sírios por Israel, do Saara Ocidental por Marrocos, que esfacelaram o Iraque e a Líbia, que roubam ouro e milhões de milhões de dólares ao Afeganistão, à Rússia, à Venezuela, à Líbia, sem esquecer o petróleo da Síria?

Na sequência natural da definição dos padrões únicos e civilizacionais dos direitos humanos surgem outros direitos tão ou mais invocados como sagrados, por exemplo o de opinião, o de expressão, o respeito pela privacidade de cada um, a liberdade de informar e ser informado.

A situação actual é rica em exemplos de como a “democracia ocidental”, o mundo baseado “em regras” e a partilha dos “nossos valores” andam de mãos dadas com o cinismo, a hipocrisia, a mentira pura e simples e o desrespeito pelo ser humano (para já nem falar nos sub-humanos).

A pressão sobre as opiniões e a liberdade de pensar torna-se cada vez mais asfixiante, intolerante, adquirindo contornos inquisitoriais. Regra geral, a partir sobretudo da implantação do neoliberalismo durante os últimos 40 anos, as opiniões dissonantes da verdade única e tolerada foram desaparecendo da comunicação social, dos espaços de debate público, das instituições de ensino.

O que é silenciado não existe, o comum dos mortais habituou-se a viver com os conceitos que recebe de enxurrada, quase sem tempo para pensar. A individualidade, a faculdade de pensar fundiram-se e dissolveram-se no interior de um imenso rebanho de repetidores de verdades absolutas e incontestáveis que, não poucas vezes, agridem e alienam a sua condição de cidadãos livres e com direitos.

O processo não é estático – evolui no pior sentido, o da agressão de um direito essencial do ser humano, que é o de pensar pela própria cabeça e partilhar as reflexões e conhecimentos com os outros. Os acontecimentos acuais, designadamente a chacina israelita na Faixa de Gaza, a guerra na Ucrânia e o envolvimento profundo e cúmplice do Ocidente institucional no apoio ao regime de inspiração nazi de Kiev, transformou a estratégia de silenciamento das opiniões dissonantes numa perseguição de índole totalitária. Pensar de maneira diferente tornou-se um delito, uma colaboração com entidades maléficas, um atrevimento inaceitável e, por isso, submetido a difamações, ameaças de agressão e às mais rasteiras calúnias públicas. Enquanto a comunicação social se tornou refém da propaganda terrorista.

Nesta “civilização cristã e ocidental”, incapaz de cortar o cordão umbilical com o imperialismo e o colonialismo, sobrevivem reconhecidamente os resquícios inquisitoriais. Que se afirmam com veemência crescente ao ritmo de uma fascização que os horizontes não afastam.

Neste contexto, os “nossos valores partilhados” são cada vez mais instrumentos para criação de uma ficção que arrasta perversamente os seres humanos em direcções contrárias aos seus próprios interesses.

Trata-se de uma armadilha que é, ao mesmo tempo, um esforço desesperado para tentar impedir o fim da era do poder unipolar, que parece inevitável – mas pode ser travado por uma guerra de proporções e consequências catastróficas.

Os “valores partilhados” autodefinidos como um distintivo da pretensa superioridade humanista e civilizacional do Ocidente, e nos quais assenta a arrogância de pretender dar lições a outros povos, culturas e civilizações, são, afinal, universais; não têm donos, proprietários, muito menos polícias e esbirros. E as civilizações não estão hierarquizadas: classificá-las num qualquer ranking entre bondade e maldade, legitimidade e ilegitimidade, correcção e erro é um perigoso jogo de cariz xenófobo – o que parece incomodar cada vez menos os orgulhosos, prepotentes e fundamentalistas praticantes e adeptos da suposta superioridade ocidental,

De facto, no Ocidente esses tão invocados “nossos valores partilhados” estão sequestrados, pelo que é fácil subvertê-los e usá-los perversamente como instrumentos para ludibriar e neutralizar o espírito crítico da grande maioria dos cidadãos.

 

E depois do atentado terrorista em Moscovo?

estatuadesal

6 de Abril de

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 04/04/2024)

O facto da Ucrânia albergar terroristas que cometeram atos terroristas em território russo contra cidadãos russos confere a Moscovo o direito de ir atrás desses terroristas.


As opiniões dividem-se sobre quem terão sido os mandantes do ataque ao centro de concertos Crocus, em Moscovo, no dia 22 de março, que causou a morte de 133 civis. Quando se esperava que desse as condolências e se disponibilizasse para cooperar com as autoridades russas, a embaixada norte-americana em Moscovo centrou a sua ação em ilibar Kiev de qualquer envolvimento, atribuindo de imediato a responsabilidade ao Estado Islâmico – Korasan (EI-K), não tinha decorrido ainda uma hora desde o início do ataque,

Noutro sentido foi a posição russa. Passados quatro dias, na sequência da reunião do Comité de Investigação criado para averiguar a ocorrência, Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Rússia, e Alexander Bortnikov, diretor da agência de informação interna russa (FSB), vieram apontar o dedo a Kiev introduzindo um dado novo e incontornável no debate.

Segundo este último, “a ação foi preparada pelos próprios radicais islâmicos e, claro, facilitada pelos serviços especiais ocidentais [leia-se norte-americanos e ingleses], e os próprios serviços especiais ucranianos têm uma ligação direta a esta situação”.

Os analistas e a comunicação social dividem-se em dois grupos, consoante o campo em que se situam.

Um grupo associa-se à posição norte-americana e afirma que: a Ucrânia não tem a ver com o ataque, atribuindo exclusivamente a responsabilidade ao IS-K; os russos foram informados pelos norte-americanos do ataque, mas foram negligentes; Putin precisava de um pretexto para escalar a crise na Ucrânia.

O outro grupo aproxima-se dos argumentos russos considerando que: os serviços de inteligência ucranianos e de países estrangeiros estão envolvidos, referindo-se aos norte-americanos e ingleses; e a embaixada norte-americana não teria partilhado informação suficiente sobre a ameaça pendente.

O facto de não nos encontrarmos em condições para apontar o dedo seja a quem for, não nos permite descartar qualquer possibilidade, não por uma questão de dúvida sistemática, mas porque há factos que não podem ser desconsiderados e devem, por isso, ser introduzidos na análise.

Alguns analistas referem que o ataque terrorista estava para ocorrer no dia 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, um feriado muito importante na Rússia. A ter sido nesse dia, uma semana antes das eleições presidenciais russas, o efeito político teria sido demolidor. A forte presença policial terá desincentivado o ataque.

Outras fontes referem que o principal impedimento para a realização do ataque nessa data terá sido a demissão de Victoria Nuland, uns dias antes (5 de março). Alguém de peso no Departamento de Estado terá ficado muito preocupado com a gravidade das suas declarações, ao anunciar publicamente uma atribuição de verbas adicional para que Putin viesse a ter “nasty surprises”. Apesar dessa contrariedade, e à revelia de Washington, os ucranianos terão decidido avançar, mesmo tendo a operação deixado de fazer sentido.

Muita coisa não bate certo neste ataque. Os terroristas tiveram um comportamento nada consistente com as práticas dos seus correligionários suicidas do IS-K. Afinal, não eram motivados pelo martírio: mostravam mais interesse nos dólares do que no descanso eterno junto das 72 virgens; não transportavam consigo cintos com explosivos para se fazerem explodir; e deixaram-se prender.

Nesta síntese argumentativa, não podemos deixar de referir a ligação conhecida e pública da Ucrânia a vários grupos jihadistas. Alguns deles combatem em unidades constituídas, inseridas nas forças armadas ucranianas, na linha da frente contra as forças russas. Como se isso não bastasse, Kiev tem dado guarida a conhecidos comandantes terroristas.

Como diz o ditado popular, “não basta a mulher de César ser séria. Tem também de o parecer”. O general Budanov, chefe dos serviços de inteligência militar, anunciou publicamente, em fevereiro de 2024, numa entrevista, ser objetivo da Ucrânia atacar a Rússia na sua profundidade.

Este ataque em Moscovo segue-se à destruição de uma infraestrutura russa – o Nordstream – da mais elevada importância. Tudo se complicará caso se venha a provar ser verdadeira a pista ucraniana. A Rússia terá de apresentar publicamente provas inquestionáveis. Falamos nesta altura da ultrapassagem de duas linhas vermelhas, uma situação intolerável para o Kremlin.

Se, no primeiro caso, Moscovo não fez nenhuma acusação direta, agora foi muito explícito acusando a Ucrânia de mandante, apoiada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. Isto significa uma alteração qualitativa do discurso que não pode ser desvalorizada. Afinal, o Crocus poderá vir a ser considerado como mais um ataque de uma série de ataques terroristas à Rússia.

Entretanto, fomos surpreendidos por uma inusitada entrevista à ICTV, um canal ucraniano de televisão privado, no dia 27 de março, dada pelo General Vasyl Malyuk, chefe do serviço de segurança ucraniano (SBU), em que falou abertamente sobre todas as operações contra a Rússia levadas a cabo pelos seus serviços, reivindicando sem necessidade alguma a autoria dos vários assassinatos perpetrados no interior da Rússia, contra personalidades russas pró-Kremlin, como Darya Dugina, Vladlen Tatarsky, Zakhar Prilepin, etc. Malyuk implicou diretamente a Ucrânia em ações de terrorismo.

Na sequência destas declarações, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia fez um ultimato à Ucrânia exigindo a extradição para a Rússia do general Malyuk e de outros suspeitos, que Kiev rejeitou. Sublinhe-se que esta reação de Moscovo tem lugar depois do atentado terrorista do dia 22 de março, e que não está diretamente relacionada com ele, mas sim com as declarações de Malyuk.

Isto coloca outro tipo de questões. Existem precedentes de países que invadiram outros pelo facto de albergarem terroristas, que cometeram atos terroristas nos seus territórios contra os seus cidadãos. A invasão norte-americana do Afeganistão prende-se com a não extradição de Bin Laden, o que foi considerado um ato de guerra.

Não é o caso da Ucrânia, porque as forças russas já se encontram em território ucraniano, mas tudo indica que caminhamos para um aumento significativo da escalada. O facto da Ucrânia albergar terroristas que cometeram atos terroristas em território russo contra cidadãos russos confere a Moscovo o direito de ir atrás desses terroristas.

A Ucrânia foi sujeita durante cerca de uma semana a ataques aéreos intensos e sistemáticos que se estenderam por todo o território, dirigidos fundamentalmente a infraestruturas energéticas. Ao contrário dos ataques do ano passado, dirigidos à rede de distribuição elétrica, agora foram às próprias centrais elétricas. Os efeitos estão a ser devastadores e a recuperação vai ser tremendamente morosa. Várias cidades estão às escuras.

Apesar de alguns destes ataques terem tido lugar após o ataque terrorista em Moscovo, a sua conceção estava subordinada a um planeamento estratégico com vista à preparação de operações futuras. Não foram uma resposta ao ataque terrorista em Moscovo. A resposta a este último foi bastante modesta e limitou-se à destruição dos quartéis-generais das organizações da inteligência ucraniana em Kiev, assinalando Moscovo estar ciente de quem foram, para ela, os mandantes do ataque terrorista.

Encontramo-nos, pois, num momento de elevada expetativa estratégica. Depois de altos dignitários russos acusarem publicamente a Ucrânia, os EUA e o Reino Unido, o Kremlin tem obrigatoriamente de fazer qualquer coisa. Esse imperativo agrava-se após a entrevista de Malyuk, o ultimato para a sua extradição e a resposta negativa de Kiev. Se não fizer nada, o Kremlin desacredita-se internamente onde muitas vozes pedem que se arrasem os edifícios do poder ucraniano, e, externamente, dando razão àqueles que forçam a ultrapassagem das linhas vermelhas, porque os russos têm medo e vão conter-se.

Está por saber se os russos não falaram de mais. Veremos qual será a resposta de Moscovo. Haverá uma resposta massiva e demolidora ao alegado atrevimento de Kiev? Talvez por isso, começámos a ver o Presidente Zelensky a discursar a partir do bunker. Falta-nos saber o que o Kremlin e a Casa Branca andam a falar por detrás das cortinas e que nós não ouvimos.

sábado, 6 de abril de 2024

O vício das vacas magras

estatuadesal

6 de Abril de

(Daniel Oliveira, in Expresso, 04/04/2024)

Daniel Oliveira

Depois de assentar o programa eleitoral em estimativas fantasiosas, o PSD está preocupado com o foguetório dos cofres cheios. Para além das vítimas diretas, só o PS se pode queixar. O seu castigo eleitoral será o estado de graça da AD. Só que o “país de tanga” é essencial para a direita desnatar os serviços públicos, desqualificar os seus funcionários e abrir caminho à privatização ou contratualização com privados em áreas como a saúde ou a educação. Não é defeito, é feitio.


Entretido com as eleições, o mundo só mudou radicalmente a 11 de março. Parece ter sido nesse dia que começou a guerra na Ucrânia, a instabilidade tomou conta do Médio Oriente, a economia alemã começou a fraquejar, a possível eleição de Trump passou a ameaçar a Europa e a União Europeia desenhou regras orçamentais mais restritivas. A narrativa para nos preparar para o “choque com a realidade” está a funcionar a todo o vapor e Montenegro agarrou-se a ela logo na tomada de posse.

Pouco importa que a economia alemã tenha passado os dois últimos anos à beira da recessão ou que as tais novas regras orçamentais que supostamente irão tornar “mais difícil” o próximo orçamento tenham um ano. Até há quem já fale do risco de Portugal iniciar um “processo por défice excessivo” no ano em que teve um excedente de 1,2%.

O documento do Parlamento Europeu onde era claro que o crescimento da despesa líquida portuguesa seria limitado a 1,8% já era conhecido em junho de 2023. Luís Montenegro sabia de todas estas condicionantes e da incerteza internacional. Nada disso o impediu de assentar todo o seu programa eleitoral numa estimativa de crescimento de 4% no final do mandato. O programa macroeconómico do PSD, do qual Ricardo Reis já se descartou, foi construído não com base em estimativas credíveis, mas para ter um número que pudesse suportar todas as promessas que Montenegro sabia não poder cumprir. Escrevi-o na altura e até previ este discurso depois das eleições, caso a AD vencesse. O problema é que, ganhas as eleições, as fantasias não pagam contas.

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Nada de novo. Nem a estratégia de prometer tudo a todos, nem a “surpresa” do PSD descobrir um mar de dificuldades mal abre a porta de São Bento. Não preciso de falar de Passos Coelho e do que ele conhecia do programa da troika, mas fingiu desconhecer durante a campanha. Durão Barroso fez precisamente o mesmo em 2002. Prometeu um “choque fiscal” na campanha, garantindo que a redução radical dos impostos nos traria níveis de crescimento tão irrealistas como os agora prometidos por Montenegro. E acabou a dizer que encontrara “o país de tanga” para poder aumentar os impostos. Um ano depois o país entrava em recessão, ao mesmo tempo que o nosso maior parceiro comercial, a Espanha, crescia quase 3%.

Também não é preciso ir buscar Marques Mendes, que descobriu as dificuldades do “motor da economia europeia” que tem estado engripado desde 2022, para perceber que estamos a viver o remake do espírito dos governos passados do PSD. Na única intervenção que entre as eleições e a tomada de posse, em Bruxelas, Montenegro criticou o que considerava a “panorâmica demasiado otimista sobre alguns dossiers” que estava a ser dada no país. Criticava os mesmos que, na campanha, acusou de “falta de ambição” nas suas previsões. Mas estava a falar sobretudo do PRR, onde Portugal é um dos dois países que já cumpriu as metas para receber o quarto cheque europeu.

O PSD está preocupado com o “foguetório” que o governo que agora cessa funções tem feito com os “cofres cheios”, começando a lançar suspeitas sobre retenção de pagamentos da dívida ou dividendos antecipados das empresas públicas. É a “dúvida” da semana anterior à tomada de posse, depois de ter ficado claro que a reforma da administração pública inscrita como condição para o quinto cheque do PRR não resultaria no despedimento de funcionários, como andaram a espalhar, mas da concentração dos ministérios na sede da Caixa Geral de Depósitos.

O brilharete bem-comportado de Fernando Medina, passando de bom aluno para obsessivo marrão e deixando aquém do necessário a revalorização salarial em carreiras específicas que garantem serviços públicos essenciais, ajudou a criar a insatisfação que penalizou o PS. O que Medina fez em Lisboa, deixando a Moedas material para a permanente festa de propaganda, fez no país. Nada a apontar a um governo que deixa as contas em ordem para quem vem a seguir, o problema foi o custo social e político.

A direita queixou-se, durante anos, que o PS só lhe deixava contas complicadas para depois assumir o governo nas vacas magras. Mas, na verdade, só sabem governar em períodos de contenção. É o clima que necessitam para justificar o emagrecimento do sector público, a desregulação laboral e a contenção salarial tão apreciadas por um setor empresarial viciado nessa suposta vantagem competitiva.

É por isso que vários economistas próximos da direita já vieram alertar para os supostos riscos do excedente, ao “aumentar a pressão para maiores aumentos salariais na Função Pública”. Conversa que Luís Montenegro repetiu na tomada de posse. O discurso do país de tanga é essencial para desnatar os serviços públicos, desqualificar os seus funcionários e abrir caminho à privatização ou contratualização com privados em áreas como a saúde ou a educação. Não é defeito, como disseram durante a troika, é feitio. É por isso que estão a desgraduar as condições económicas do país. Só assim podem invocar a incerteza para congelar as promessas sociais e aplicar as que verdadeiramente lhe interessam, da redução do IRC ao financiamento dos grupos privados da Saúde.

Ver o PSD revoltar-se com o excedente orçamental mostra como mesmo ricos são mal-agradecidos. Se, para além das suas vitimas diretas, alguém se pode queixar é o PS. Numas eleições decididas por 50 mil votos, (e por mil no distrito do Porto), o garrote orçamental teve tudo para ser decisivo para a eleição de Montenegro. O castigo ao PS será o estado de graça da AD. Só que as clientelas e políticas do novo governo são outras.

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

 

As fogueiras em que arde a liberdade na União Europeia!

estatuadesal

4 de Abril de

(Hugo Dionísio in Strategic Culture Foundation, 03/04/2024)

A União Europeia demonstra todos os sintomas de uma estrutura em crise profunda.


A União Europeia demonstra todos os sintomas de uma estrutura em crise profunda. Tal como outras organizações, no passado, quanto mais tenta fazer passar uma imagem de coesão interna, maiores as fissuras que cria, a partir da exigência, cada vez mais férrea, de cumprimento das regras que tal aparência de coesão exige.

Para conseguir afirmar o seu poder político, Bruxelas é apresentada como um poder, tão distante quanto inatingível, de tal forma superior, que tudo o que dispõe é inquestionável. Colocando-se em tal pedestal, Bruxelas arroga-se de uma sapiência e omnisciência presumidas, apostando num processo de comunicação muito bem montado, assente na ideia de um poder acima de todos os outros, acima dos poderes eleitos, acima dos “governos do povo”: “A UE disse que…”; “a UE diz que não se pode…”; “o governo pediu à UE que…”; “a UE avisou que…”; “o governo foi obrigado, pela UE, a…” Tudo assim, sem questionamento, crítica ou reflexão. Uma espécie de extensão europeia da teoria da “única nação indispensável”.

Se até certa altura, estávamos perante um poder que se impunha por si próprio, que se bastava a si próprio, cuja inatingibilidade era suficiente para desencorajar qualquer ideia contraditória, face à monumentalidade da tarefa que consistia em enfrentar, não um governo, mas “o governo dos governos todos”; atualmente, Bruxelas deixou de se contentar com essa superioridade ontológica, passando a exigir provas inequívocas de lealdade.

Tal significa que aderir, ou não, à “realidade narrativa” apresentada pela burocracia europeia, há muito que deixou de ser um acto voluntário. A lealdade passou a ser demonstrada pelo vigor e rigor com que se interioriza a ideologia “comunitária” – a meu ver trata-se mais de uma idolatria. Houve um momento que funcionou como um sinal para a ativação de mecanismos conformadores das opiniões, à “realidade narrativa” emanada da União. Esse momento está situado em 25/02/2022. Mesmo no Covid, embora já se sentisse a mão de ferro, na circulação de informação que questionasse as vacinas, métodos e políticas desenvolvidas, não assistimos, na Europa, à utilização corrente de meios coercivos diretos, para silenciar, condicionar ou responsabilizar quem não aderia à narrativa.

Mas, nos últimos dois anos e tal como noutros tempos, também bastante inquisitoriais, passou a ser exigida uma prova de lealdade, consubstanciada na adesão a um discurso, a uma narrativa, a uma idolatria. E se é verdade que os poderes deste tipo, ao longo da história, elegeram sempre a “desinformação” e “propaganda” dos inimigos, como semente originária do condicionamento!

Foi, portanto, ao som do trovejar da guerra que começámos a constatar a chegada do “estado de guerra” da UE e a necessidade de prestação de provas de lealdade. Não o noticiaram, não o questionaram ou analisaram. Como em tudo o que caracteriza o poder europeu, nestes dias, apenas constatamos os factos, a sua inexorável existência. Já o discurso, esse, continua a ser o mais luminoso de sempre, ou talvez mais ainda.

Sabemo-lo, por exemplo, quando utilizamos uma ferramenta de Inteligência Artificial generativa de texto, questionando-a sobre “jornalistas perseguidos na União Europeia no quadro do conflito na Ucrânia”. A resposta é invariavelmente a mesma: “corajosos jornalistas perseguidos” só na Rússia, meus caros. Contudo, quando colocamos os nomes de jornalistas como Alina Lipp, Graham Phillips ou Pablo Gonzalez, descobrimos que, afinal, existem jornalistas: acusados de espionagem e preventivamente detidos (Pablo Gonzalez na Polónia, há mais de ano e meio); acusados e sujeitos a pena de prisão até 3 anos, por delito de opinião “apoio à invasão russa” (Alina Lipp da Alemanha); e, pasme-se, acusados de propagandismo e glorificação da “invasão russa e das atrocidades praticadas” (Graham Philips do Reino Unido), ao ponto de ter sido acusado por alguns políticos de ter “cometido crimes de guerra”, apenas por ter entrevistado Aiden Aslin, um mercenário britânico preso em Mariupol, e em consequência integrado numa lista de sanções pessoais que o impedem de reentrar no seu país de origem.

Estes foram alguns dos primeiros casos – nunca assumidos – de violação da prova de lealdade. Como que para dar o exemplo, um punhado de jornalistas experimentaram o peso com que a mão de Úrsula Von der Leyen trata a deslealdade para com a sua narrativa. Nem que seja aquela em que fala de chips de máquinas de lavar que equipam mísseis e economias em pedaços que afinal até crescem mais do que as da UE.

Consequentemente, como em todos os poderes que já não se bastam a si próprios, algures no tempo, a malha ficou ainda mais apertada, deixando de ser apenas os jornalistas e órgãos de grande mediatismo (como as Tv’s russas), a quedarem-se apanhadas nas redes do ministério europeu da verdade. A polícia da idolatria foi lançada ao ataque e fareja debaixo de todas as pedras pelo mínimo sinal de dissidência.

Recentemente, as autoridades checas decidiram perseguir com a entrada na lista de sanções uma entidade com o perfil virtual de “Voice of Europe”, bem como os seus dois responsáveis, acusando-os de pretenderem “minar a integridade territorial, soberania e independência da Ucrânia”, porque, no entendimento destas autoridades, glorificam a “invasão russa da Ucrânia”. Todos temos vindo a aprender que, na UE do nosso tempo, podemos idolatrar nazis, neonazis e até propagar notícias-falsas. É quando o nosso discurso coincide com o de algum russo, por mais insignificante que seja, que somos alvos da ira de Von der Leyen. Como disse, não se trata de “ser, ou não, verdade”; trata-se de lealdade ou traição.

Esta intransigência para com os discursos, mesmo quando proclamados por gente sem exposição mediática, apenas com uma limitada exposição virtual, é em si sintomática de que o nível de tolerância para com o pensamento diverso, crítico ou controverso, está no seu nível mais alto de sempre. Tal fundamentalismo discursivo – e comportamental – está em linha com o que depois nos é dado a ver no mundo real, sobretudo no epicentro da idolatria europeia: Bruxelas.

É em Bruxelas que encontramos o centro simbólico ao qual devemos ser leais. O “projeto ucraniano”, para os idólatras do poder central – e seus seguidores –, que assenta nos órgãos que compõem a União Europeia, tem uma dimensão fundadora, tendo-se tornado o símbolo máximo do regime; um regime que já não se afirma pelo que é, mas por aquilo que defende como símbolo máximo do antagonismo Russo: o apoio ao regime de Kiev. Quanto mais rígido, intransigente e exigente, no apoio a Kiev, mais anti russo se é, sendo essa a prova última de lealdade. Será razão para dizermos que esta UE já não é a mesma. Ou será que… Agora é que é o que deveria ser?

Apresentada como projeto de paz, mas acabando a financiar a guerra, em Bruxelas, mesmo a um qualquer transeunte mais distraído, não passa despercebido o símbolo máximo do regime. Bruxelas passou a ser, especialmente desde 25 de Fevereiro de 2022, uma cidade banhada a azul e amarelo. Dos outdoors às vedações das obras públicas, tudo parece denunciar a verdade única à qual temos de ser leais. A Ucrânia de Zelensky é, de facto, um estado membro da EU! A legitimidade que lhe falta na lei formal, sobra-lhe na manifestação da parafernália simbólica e no frenesim perseguidor com que as instituições europeias abraçam a sua proteção.

Dispensando os usuais trâmites de acesso, os quais apenas visam conferir alguma legitimidade formal a todo um fenómeno (Ucrânia na “fast track” para a EU) observável de facto, a Ucrânia beneficia de todo um altar que constitui o símbolo máximo deste fundamentalismo idólatra e desta adoção de facto materializada.

Nada é mais esmagador do que uma ida à praça central do “Luxembourg”, local em que se situa o Parlamento Europeu, sob um olhar próximo de uma Comissão Europeia vigilante e de um Conselho Europeu amestrado, por poderes bastante mais distantes. O amarelo e o azul são tão intensamente proeminentes nesse local, que parece estarmos simultaneamente no céu e perto do sol. Dizem que são as cores da UE… A sua presença nunca foi tão forte como hoje. Também nas cores a Ucrânia e a UE se confundem.

A imagem de Zelensky sobressai desse mar duo cromático, inundado de mensagens como “stand with Ukraine” ou outdoors dizendo “the brave people of Ukraine, represented by their president (…).” Como que a provar que o que está fora, emana de dentro, o estado ucraniano, sem qualquer respaldo democrático que não seja o gerado pela imensa propaganda que nos inunda os sentidos, tem, inclusive, o seu espaço no próprio hemiciclo do Parlamento Europeu. Para além de todas as cabinas de tradução simultânea, para cada uma das línguas que integram o projeto europeu, também o “projeto ucraniano” tem aí a sua. Mesmo que não tenha eurodeputados.

Até os 50 mil milhões de Euros recentemente aprovados pelo Conselho Europeu, para os 4 anos que faltam do Quadro Financeiro Plurianual (normalmente vai até um ano depois do período nominal, que é 21-27), retirados do respetivo bolo financeiro, parecem reproduzir, mais ou menos, aquilo que receberia um país, com 35 a 40 milhões de habitantes e com um rendimento per capita abaixo da média europeia. Ou seja, nem os fundos faltam para o desenvolvimento das metas da estratégia 2030. Agora, digam lá que a Ucrânia não é já um estado-membro?

Poderíamos também tomar, como exemplo, a guerra que a UE comprou com os agricultores Húngaros, Búlgaros, Romenos, Polacos, Eslovacos, porque inunda os mercados europeus de produtos produzidos sem cumprir as mesmas regras a que os outros estão sujeitos. Desta forma, estes países são obrigados a reviver, em relação à Ucrânia, o mesmo sentimento de menorização que qualquer país europeu periférico sente, quando tem de se confrontar com interesses de países mais poderosos, como a Alemanha ou a França. Hoje, até estes dois se submetem aos ditames do tridente “banderista”.

Se, por toda a União Europeia, por todos os estados membros, deparamos com a propaganda do regime, relembrando-nos, a cada passo, de que tudo o que somos e temos se deve, tão só, à “divina” (ou diabólica) presença da “humana, inclusiva, democrática e livre UE”, é na capital e no seu centro nevrálgico que esta propaganda é mais esmagadora. Como um poder que se expande do centro para a periferia.

Perante a derrocada, mais do que anunciada, do regime de Kiev e de tudo o que ele significa, coloca-se à UE um desafio de sobrevivência. Pois as idolatrias têm destas coisas: falta-lhes substância. Por mais que tentem fazer aderir ao “estado-membro ucraniano” a ideia de que este constitui um bastião dos “valores europeus”, tudo se esvai quando é, na Ucrânia de Bandera, que mais se negam os direitos que a UE diz representar.

Por sua vez, foi a Rússia (na URSS) que mais contribuiu para defender tais valores. A única forma de isto não ser um completo equívoco, é se assumirmos, como premissa, que, afinal, esta UE não renega o nazi-fascismo e, ao contrário, odeia a Rússia por ter vencido aquele que havia sido criado para a derrotar.

Com efeito, admitindo a idolatria nazi ou neonazi que hoje constitui a coluna vertebral do poder político ucraniano, mas não admitindo a idolatria da operação russa, a UE diz-nos algo de terrivelmente devastador: as elites ocidentais consideram mais grave o que designam de “invasão” da Ucrânia pela Rússia, do que a invasão nazi-fascista da Ucrânia, da Rússia, da URSS, França, Polónia e por aí fora. Os factos não deixam dúvidas: persegue quem acusa de “apoiar a invasão russa da Ucrânia”, mas apoia quem sabe idolatrar as forças que invadiram e destruíram a Europa inteira. O que volta a fazer-me trazer à colação a sempre controversa questão: afinal, a UE é, ou não, antinazi?

Não se trata aqui de julgar a UE por condenar a operação russa na Ucrânia, trata-se de questionar, por que razão persegue quem diz apoiar esta operação e não persegue, com muito maior força de razão, aqueles que idolatram poderes que destruíram a Europa inteira.

Tal questão não assumiria tanta importância se a Ucrânia não fosse um estado membro. Agora, quando é, de facto, o mais importante de todos e à volta do qual roda toda a vida da União, pois nenhum nos enche as notícias, discursos políticos e colunas de opinião como este… Ao ponto de a UE tentar reproduzir, no seu comportamento, as práticas mais danosas a que o regime de Kiev obriga os seus próprios concidadãos… Também aí, a adesão à narrativa, à língua, à idolatria de Bandera, à idolatria da UE, da NATO e dos EUA, não é uma escolha, é uma prova de lealdade. Acabam agarrados aos postes, embrulhados em celofane, aqueles que não a praticam. Vá lá que, por cá, ainda não se chegou a esse ponto… Mas, no meu caso, levo muito a sério aquele poema de Martin Niemöller, “primeiro levaram os comunistas…”

De forma, tão encapotada como a que foi utilizada para integrar, na União, um estado-membro que não lhe pertencia, entregando-lhe, como diz Emmanuel Todd, o cetro de um poder que pertencia ao eixo franco-alemão, não porque contribua mais do que todos os restantes, para o orçamento comunitário, mas, pelo contrário, porque é necessário torná-lo no que mais contribuições recebe, a UE lança-se, também, numa sorrateira caça às bruxas, intensificando e generalizando, ainda mais, as provas de lealdade que já exigia. Uma vez mais, nunca assumindo que o faz. Uma outra característica que tão bem cola com Kiev. “Não foi Kiev que bombardeou a Energodar NPP”; “Não foi Kiev que bombardeou as ruas de Donetsk”; “Não foi Kiev que bombardeou a prisão em que estavam os seus próprios militares, enquanto prisioneiros de guerra”…

Consequentemente, foi o próprio Primeiro-ministro belga o encarregado de, em declarações ao New York Times, acusar parlamentares da França, Alemanha, Países Baixos e outros, de serem pagos para prosseguir interesses russos, no Parlamento Europeu. Sem precisar quem são todos os acusados, mas apontando à mesma “extrema-direita” que prolifera graças aos danos que o poder de Bruxelas infringe nas nossas condições de vida, uma vez mais, somos confrontados com as contradições desta União Europeia. E é assim que identificamos em que consiste a prova de lealdade que, agora, é exigida a todos os cidadãos. Nem que seja sob pena de censura nas redes sociais.

Assim, que coisas tão graves disseram ou fizeram os acusados? Bem, é o próprio NYT quem o diz: proferiram coisas como “Os sonâmbulos de Berlim e Bruxelas estão a conduzir-nos para uma guerra externa – sem rima, razão ou propósito” ou “Quem quer que aceite a Ucrânia na NATO está a provocar, gostemos ou não – eu também não gosto – o ataque russo. E agora pergunte-se se está preparado para aceitar a guerra pela adesão da Ucrânia à NATO.” E o que fizeram mais ainda? Opuseram-se à classificação da Rússia como “Estado patrocinador do terrorismo”.

Eis a que nível a UE, o Ocidente, a comunicação social mainstream, colocam as coisas. Não se poupam a esforços para impor, na prática, a ideia de que a Ucrânia é um estado-membro, que não é; atribuir à Ucrânia e ao regime de Kiev um peso político, que claramente não tem; incriminar pela prática do crime de propagação da desinformação russa, quando o que se disse tinha a ver com um Estado – a Ucrânia – que supostamente nem sequer é membro da União; perseguem jornalistas por apresentarem factos que desmentem os apresentados pelo regime de Kiev, que supostamente não é da UE; fecham perfis virtuais por exporem factos que contestam a informação fornecida por um país, o qual, virtualmente – e apenas virtualmente – não é membro da UE. Estão a ver a contradição?

Assim, quanto mais vazias de sentido, substância e profundidade teórica, mais perigosas se tornam as idolatrias, quase como se soubessem, os idólatras, que a manutenção da sua idolatria não depende da sua consistência, mas da força com que é imposta. Neste caso, a força com que é imposta diz-nos que, se a caça às bruxas começou, pouco falta para que as fogueiras comecem a crepitar!