(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 14/11/2024)
Nós, a multidão, passámos estes últimos anos a ser bombardeados com um novo léxico político: “desinformação”, “fakenews”, “nova normalidade”, “intrusão”.
A relação dos seres gregários funda-se na confiança. É assim num formigueiro, numa colmeia, numa alcateia, numa tribo, numa formação militar, num gangue. Na constituição de equipas para operações especiais uma das perguntas aos candidatos era: quem escolhias para te acompanhar na travessia de um rio perigoso? Isto é, em quem confias.
A organização social e a organização política que dela decorre assenta na relação entre autoridade e fiabilidade. As notas de banco são credibilizadas pela assinatura do governador, os decretos reais continham um selo de chumbo e lacre com as armas do soberano. As mobilizações para uma guerra são assinadas pelo comandante-chefe. As grandes campanhas, as fatwa, as cruzadas, as descobertas dos europeus foram decretadas com base numa verdade que as tornava imperiosas. Acreditámos no segredo profissional de médicos e advogados. Na reserva da nossa correspondência. Acreditámos nos editais e nos calendários. Eram a verdade. Hoje a verdade é uma ratoeira. É um som transmitido por um karaoke, é uma mercadoria. As nossas doenças, as nossas confissões, as nossas escolhas são vendidas, na melhor das hipóteses. Na pior, matam, como os pagers que uma empresa de telecomunicações vendeu a Israel para assassinar eventuais inimigos.
Na Bíblia, Cristo, a figura de referência civilizacional do Ocidente, proclamou: Eu sou a verdade! Maquiavel, com os pés na terra e rodeado de semelhantes, adaptou um estado ideal que de facto nunca existiu e preferiu escrever sobre a realidade concreta, estabelecendo o conceito de verdade efetiva das coisas (veritá effetuale), fundamental para compreendermos o interesse pela realidade como ela é e não como uma projeção idealizada. A verdade efetiva serviu de padrão para aferir a correspondência entre o “discurso público” dos políticos e dos dirigentes e a necessidade de obter a adesão a uma realidade. Mas a palavra continha sempre uma intenção de verdade. Os membros da sociedade continuavam a jurar. A honra continuava a ser um valor e a desonra uma nódoa infamante.
A justificação da existência de armas de destruição em massa por parte do governo de Saddam Hussein para George Bush Jr decretar a invasão do Iraque terá sido o exemplo mais próximo e mais marcante da passagem da “verdade efetiva” para a pós-verdade. Pós verdade é um eufemismo para um tipo de mentira, que pode percorrer vários patamares, da pura invenção, por mais inverosímil que seja, à manipulação de factos que podem ser plausíveis e às promessas irrealizáveis de salvação. A pós verdade é o sinónimo do logro declinado nos vários significados, de burla, de engano com dolo, de fraude, de intrujice, ludíbrio, de trampolinice, de trapaça. Vivemos no reino do logro. Do tipo das barras batizadas de “delícias do mar” e que não são nem peixe, nem marisco e que nem passaram pelo mar.
A invasão do Iraque marca uma nova era no Ocidente na relação entre governantes e governados: a vitória dos grandes aparelhos de manipulação sobre a realidade, a transformação dos cidadãos em espetadores de espetáculos de efeitos especiais, a purificação dos canalhas e a sua transmutação em exemplos, como é o caso de Paulo Portas ou Durão Barroso, os videntes que viram as provas da mistificação que justificou a invasão do Iraque e que são hoje criaturas tidas por decentes e respeitáveis. A política passou a replicar os jogos da Marvel e os políticos surgiram como “transformers” e vendedores de delícias do mar como se fossem lagosta.
Do mesmo modo que a metralhadora alterou o modo de fazer a guerra na Grande Guerra, que a arma atómica alterou a a forma de as grandes potencias se relacionarem após a Segunda Guerra, a guerra da comunicação da era da informação proporcionada pelas novas tecnologias alterou de novo as táticas e acentuou a insídia na guerra. A pós-verdade são as imagens mais ou menos manipuladas que surgem nos ecrãs de televisão com paisagens e pontos assinalados por uma cruz-alvo, são atores-comentadores a arengar uma narrativa como antigamente os contadores de histórias faziam nas feiras, são um grande espetáculo de massas. Para os manipuladores da opinião, o genocídio de Gaza é um festival de efeitos especiais. A multidão mundial está tão anestesiada pela mentira que não reage. Estamos impermeabilizados. Os pilotos israelitas que bombardeiam Gaza marcam pontos no seu ecrã de videojogos. A pós verdade é a desumanização. Começa por ser a desumanização dos outros e acabará por ser a desumanização dos detentores das máquinas de jogos, sejam caças F35 ou drones.
Os europeus, com a velha arrogância, têm apresentado a nova arte de manipular as opiniões como uma especificidade americana, de que Trump é o mais exuberante talento. Pura mistificação. A utilização da mentira e do logro sob a designação de pós-verdade está tanto na ordem do dia na Torre Trump em Nova Iorque como no edifício Berlaymont em Bruxelas, sede da Comissão Europeia. Ursula Vaon Der Leyen e os seus comissários mentem, inventam e manipulam tanto quanto a nova administração Trump. E mentem sobre os mesmos grande temas, as guerras na Ucrânia e na Palestina, mentem quanto a promessas de uma nova era de leite e mel se continuarem a drenar fundos para essas guerras, mentem quanto aos objetivos de fazer a América Grande de Novo ou a Europa um continente de prosperidade, desde que derrotem os russos, os chineses, saqueiem África, dominem o Médio Oriente e determinem o preço do petróleo, rasguem os protocolos sobre as alterações climáticas, fechem as fronteiras aos imigrantes provocados pelas suas guerras.
Que diferenças, exceto de forma, existe entre o discurso pistoleiro de Úrsula Von Der Leyen, de Borrell e da sua sucessora Kallas como representante da política externa da U E, da neoliberal Albuquerque dos secretários da nova administração Trump? Que diferença existe entre os e as warmongers americanos e americanas dos e das warmongers da União Europeia? A diferença da relação entre a verdade e a realidade no discurso dos dirigentes americanos e dos dirigentes europeus é a mesma entre um carniceiro e um assassino de arma fina. Os painéis de pastores das TV portuguesas não diferem dos painéis dos pastores nos Estados Unidos. A norma é o televangelismo.
A percepção de que a Europa não é o folclore americano resulta da desinformação a que somos sujeitos através da “armamentização” da comunicação social. O filósofo Marshall McLuhan escreveu há anos que “o meio é a mensagem”. A diferença entre a mentira sob o eufemismo de pós-verdade americana e europeia é que nos Estados Unidos o meio é agora Elon Musk, o homem mais rico do mundo que comprou uma plataforma de comunicação global, o X, e é o chefe de estado sombra do que era a maior superpotência do mundo. Essa é a diferença. Uma diferença de armamento e de dimensão entre uma tromba de água e um regador. Os Estados Unidos com a sua rede de satélites e de empresas de dados e comunicações, da Starlink ao Google, podem fazer descarregar um dilúvio de mentiras, ou de pós-verdades sobre o mundo, uma “dana” como a de Valência à escala planetária e a Europa não consegue provocar mais que chuviscos, mesmo com as tentativas em curso de censura e domínio dos meios de comunicação que ainda restam no domínio público ou fora dos grandes conglomerados.
No essencial, a germinação e cultivo em estufa de dirigentes quer nos Estados Unidos quer na Europa obedece ao mesmo processo: um grande apoderado paga uma generosa bolsa de estudos para um seu pupilo vir a ocupar um lugar na administração do Estado que favoreça os seus negócios. Musk financiou Trump, mas Peter Thiel, o cofundador do PayPal, rastejando nas sombras, garantiu que o seu homem, JD Vance, entrasse no par presidencial como vice-presidente. Jeff Bezos, atrasado para a festa, entrou na onda falhando alguns dias, mas garantindo que o seu Washington Post não endossasse nenhum candidato. Aqui na Europa ninguém que coloque em causa as verdades únicas da guerra na Ucrânia e do aumento das despesas militares chegará a qualquer posto de relevo. Apenas têm lugar à manjedoura os que que puxam a carroça do dono.
Quer nos Estados Unidos quer na Europa existe uma oligarquia no poder que funde os negócios do Estado e os negócios privados e constitui uma elite governante. Os negócios renderão biliões, milhões de pessoas morrerão e incontáveis crimes serão cometidos. Como li em algum lugar: “Estamos além do espelho. Estamos todos a viajar pelos esgotos da informação. Trump é um bacilo, mas o problema são os canos.” E pelos canos escorrem muitos outros dejetos.
O essencial são os valores. O valor da palavra dada. A democracia assenta no caráter dos cidadãos e em particular dos que têm maiores responsabilidades. Quando não há caráter há canalhas. Temos um regime de canalhas. Quando se abicam dos valores criamos um mundo de faquistas e de trafulhas.