(Helen Thompson, in UnHerd.com, 01/01/2025, Trad. Júlio Marques Mota)
Uma política míope deu a vantagem à China. As políticas de zero emissões estão a matar a indústria automóvel europeia.
A fábrica de automóveis Mirafiori é a última fábrica de automóveis sobrevivente em Turim, o centro histórico da indústria automóvel italiana. No auge do pós-guerra em Mirafiori, a Fiat fabricava um milhão de veículos por ano, empregando 60 mil pessoas.
Durante grande parte do ano passado, foram produzidos na fábrica tão poucos automóveis para a Stellantis que um trabalhador comentou recentemente que “Mirafiori já foi encerrada. Só que às vezes reabre.”
Os últimos meses têm sido terríveis para a maioria das empresas automóveis que já foram líderes mundiais. Em setembro, a Volkswagen anunciou planos para fechar pelo menos três das suas 10 fábricas alemãs e reduzir os salários em 10%, violando um acordo de 1994, para proteger os empregos no seu país de origem até pelo menos 2029, provocando greves contínuas de duas e quatro horas.
Quando a produção foi novamente interrompida em Mirafiori, em novembro, a Stellantis tornou público que a fábrica da Vauxhall em Luton iria encerrar em abril de 2025, cancelando o plano anterior da empresa de produzir ali carrinhas elétricas Vivaro. No mesmo mês, a Ford indicou que iria cortar 3.800 postos de trabalho na Europa até 2027, enquanto a Nissan anunciou 9.000 perdas de emprego e um corte de 20% na produção mundial. Um alto funcionário da Nissan terá dito que a empresa japonesa tem “12 ou 14 meses de vida”.
Para além da Alemanha, a crise no sector automóvel europeu está em formação desde há muito tempo. O emprego na Vauxhall Luton atingiu o seu pico na década de 60 e a fábrica deixou de produzir automóveis em 2002, tal como a Ford Dagenham. A fábrica Lingotto de cinco andares, da Fiat, que iniciou a produção de automóveis em série na Itália em 1923, fechou em 1982. Hoje, o edifício funciona como um complexo de lazer, albergando o maior jardim coberto da Europa. Em 2011, a Fiat ameaçou encerrar também a fábrica de Mirafiori, a não ser que os trabalhadores votassem a favor de um plano de reestruturação. Quando, três anos depois, a Fiat se fundiu com a Chrysler, adquiriu uma empresa que estava a ser sustentada com dinheiro do governo federal dos EUA desde a crise de 2008. A subsequente união da Fiat Chrysler Automotive com a Peugeot em 2021 para formar a Stellantis resultou na perda de mais de 10.000 postos de trabalho em Itália.
Mas a crise constitui também um fracasso a mais curto prazo em torno dos veículos elétricos (VE). Foi há apenas quatro anos que a Fiat Chrysler Automotive fez um investimento de 700 milhões de euros na produção de um Fiat 500 elétrico em Mirafiori. O Leaf da Nissan foi o VE mais vendido da década de 2010, mas desde 2020 as vendas caíram a nível global. A procura pelo ID 5 da Volkswagen no mercado europeu de veículos elétricos caiu 28% no primeiro semestre de 2024, em comparação com o mesmo período de 2023.
Quando, em 2019-20, os governos europeus legislaram para alcançar o nível de emissão zero em 2050, previram um futuro bastante diferente. Dos 101,7 milhões de barris de petróleo que a Agência Internacional de Energia (AIE) informa que o mundo consumiu por dia em 2023, mais de 60 milhões foram utilizados para o transporte rodoviário. Consequentemente, qualquer afastamento sério dos combustíveis fósseis sempre exigiu que a indústria automóvel fabricasse e vendesse veículos elétricos em grande escala. Não é de estranhar que a Noruega seja o único país europeu que fez progressos sustentados na descarbonização do transporte rodoviário porque a sua riqueza em hidrocarbonetos proporciona a margem de manobra orçamental para tornar os VE acessíveis a uma proporção razoável de cidadãos. Na Suécia, onde a penetração dos VE também foi comparativamente elevada, o crescimento abrandou notavelmente em 2024, depois de ter terminado o regime de incentivos à compra, no final de 2022.
Por si só, a fraca procura de veículos elétricos em grande parte da Europa constituiria um grande problema para um sector automóvel obrigado a deixar de vender automóveis de combustão interna, ICE, o mais tardar em 2035, e em 2030 no Reino Unido. Mas a surpreendente ascensão da China nos últimos três anos como fabricante de veículos elétricos significa que mesmo a lenta eletrificação do transporte rodoviário na Europa está a acelerar a desindustrialização europeia, em vez de servir, como tantos políticos europeus esperavam, como um agente de reindustrialização. A China tem, de longe, o maior mercado doméstico de VE do mundo. Nos números da AIE, do aumento de 25% nas vendas globais de VE no primeiro semestre de 2024 em comparação com o primeiro semestre de 2023, quase 80% vieram da China. Em contrapartida, as vendas na Alemanha durante o mesmo período caíram. Os produtores chineses estão agora em ascensão no seu próprio país, com a empresa BYD, sediada em Shenzhen, a ocupar sozinha 30% do mercado. Entretanto, as exportações chinesas cresceram de forma surpreendente e muito rapidamente, aumentando 1.600% entre 2019 e meados de 2024.
O sucesso produtivo da China não pode ser explicado simplesmente pelas vantagens em termos de custos laborais, devidas ao desenvolvimento industrial tardio. Deixando de lado a Tesla, os carros chineses são tecnologicamente superiores porque o governo chinês trabalhou sistematicamente para que o fossem.
Como estratégia industrial para a produção de alta tecnologia, o Made in China 2025 e o Plano Quinquenal para 2021-25 tiveram grande sucesso. O estado chinês apoia financeiramente não só as empresas nacionais de veículos elétricos, mas todas as partes da cadeia de abastecimento, desde a mineração e processamento de metais até à produção de baterias. Em comparação, os esforços políticos europeus foram financeiramente insignificantes e muito mais fragmentados, deixando os seus fabricantes dependentes de cadeias de abastecimento dominadas pela China. É extremamente difícil escapar a esta dependência, sobretudo porque a estratégia de Dupla Circulação da China para 2020 foi, em parte, um projeto para consolidar permanentemente as empresas chinesas nas partes de elevado valor das cadeias de abastecimento e forçar a dependência estrangeira delas. Estas empresas beneficiam também do facto de o estado chinês dar prioridade à segurança e ao preço energético em detrimento de qualquer preferência política por uma fonte de energia em detrimento de outra substituível. Com o carvão ainda a fornecer cerca de 60% da eletricidade da China e a constituir mais de 50% do consumo total de energia do país, os custos de energia industrial da China são significativamente mais baixos do que os da Europa, a maior parte da qual é muito mais dependente do gás natural.
Mais do que uma estratégia económica coerente para fazer avançar a indústria automóvel europeia existente, as tarifas impostas provisoriamente aos fabricantes chineses pela Comissão Europeia em Julho de 2024, e tornadas permanentes em Outubro, são uma resposta política desesperada à crise.
Quando, em maio de 2024, a administração Biden impôs tarifas de 100% sobre os VE chineses que entravam no mercado americano, os fabricantes chineses quase não tinham qualquer quota de mercado de VE e nenhum fabricante chinês de VE tinha uma fábrica operacional para exportações no México ou no Canadá para aceder aos Estados Unidos. A UE, por outro lado, é já o maior mercado de exportação da China, enquanto a BYD começará a produzir VE na Hungria no segundo semestre de 2025 e na Turquia - equivalente ao Mercado Único da UE para efeitos de exportação através da união aduaneira de longa data deste país com a UE – até ao final de 2026.
Assim, para a indústria automóvel alemã e para o seu atual governo, o protecionismo europeu é uma derrota estratégica, arriscando uma ação de retaliação no maior mercado automóvel do mundo, onde até muito recentemente prosperaram as empresas alemãs. Mesmo com a intensificação do choque dos veículos elétricos na China, a Volkswagen obteve mais de metade dos seus lucros em 2023 na China. Muito simplesmente, se a Volkswagen não consegue sequer tentar competir no mercado chinês, não pode continuar a ser um ator global na indústria automóvel.
Neste sentido, a crise automóvel europeia é um sintoma de uma história muito maior de declínio histórico relativo da Europa, impulsionado pelo aumento dos padrões de vida asiáticos sob a industrialização tardia.
Ironicamente, o governo do Reino Unido adotou até agora a abordagem favorável ao comércio livre que o governo Scholz teria adotado se a Alemanha não estivesse na UE e sem que o Reino Unido tenha fabricantes nacionais que concorressem no mercado chinês. Mas esta abertura a mais exportações chinesas é um pesadelo para as empresas automóveis sediadas no Reino Unido que desejam vender no mercado interno, especialmente quando já não conseguem satisfazer as vendas de VE exigidas pelo mandato do Veículo com Emissões Zero (ZEV), que sujeita todas as empresas que vendem no Reino Unido, provavelmente ao quadro regulamentar mais exigente do mundo para acabar com as vendas de motores de combustão interna. Na semana anterior à Stellantis anunciar o encerramento da Vauxhall Luton, representantes dos principais fabricantes de automóveis reuniram-se com a então secretária dos transportes, Louise Haigh, e o secretário de negócios, Jonathan Reynolds, implorando por mais latitude.
Não encontrando qualquer oferta, a Nissan criticou a inércia do governo. À medida que as perdas de postos de trabalho em Luton se concretizavam, Reynolds recuou, prometendo uma consulta urgente sobre o reforço das metas que deveriam entrar em vigor em janeiro. Como em 2025 os VE chineses mais baratos até ao momento – um carro da Leapmotor, no qual a Stellantis tem uma quota de 20% e o outro BYD – chegarão ao mercado do Reino Unido, é difícil perceber como poderá o governo de Keir Starmer manter tanto o veículo de emissão zero como a abertura à China sem destruir o que resta da indústria automóvel britânica. Se um único pavor consome o Gabinete do Partido Trabalhista, deve ser o encerramento da fábrica da Nissan em Sunderland, mesmo tendo sido há pouco mais de um ano que a Nissan anunciou que iria construir três modelos VE no local nordeste, apoiados por 2 mil milhões de libras de libras concedidos pelo governo de Sunak..
Em Itália, Giorgia Meloni nunca teve a ilusão de que o nível de emissão zero em geral e os VE em particular abririam um caminho para a reindustrialização das economias europeias. Imediatamente após ter assumido o cargo, Meloni opôs-se veementemente à proposta de proibição da UE de novas vendas de motores de combustão interna a partir de 2035. Tendo encontrado poucos aliados para impedir o Conselho da UE de adotar o regulamento em março de 2023, ela continuou a denunciar a política como “autodestrutiva” e prometeu aos eleitores italianos que fará com que Bruxelas “corrija estas escolhas”.
Com a provável chegada do democrata-cristão Friedrich Merz à Chancelaria após as eleições gerais alemãs de 23 de fevereiro, ela encontrará um poderoso aliado. Meloni tem sido também uma arqui-pragmática em relação à ameaça chinesa. Embora apoiasse as tarifas da Comissão, viajou para Pequim em julho de 2024 para reiniciar as relações depois de ter tirado a Itália do Programa Uma Cintura, Uma Via, sete meses antes. No topo da sua agenda está a obtenção de investimento chinês na indústria automóvel italiana, estando em curso negociações com o fabricante estatal chinês Dongfeng Motor para uma fábrica em Turim.
A produção e o consumo de automóveis marcaram durante muito tempo momentos decisivos na história política ocidental. Quando, em 1908, Henry Ford tornou acessível a massificação de automóveis com o Modelo T, imaginou que estava a salvar a democracia americana dos perigos de uma amarga divisão de classes em torno do automóvel. Quando, em março de 1943, os trabalhadores da fábrica de Mirafiori, em Turim, entraram em greve, iniciaram uma revolta laboral em todo o norte de Itália que desfez internamente o regime de Mussolini quatro meses antes do desembarque dos Aliados na Sicília. Simbolicamente, os automóveis representavam o progresso histórico concebido como liberdade individual e democrática. Durante grande parte do século XX, a concorrência comercial entre empresas automóveis representou uma época de visões ocidentais concorrentes da modernidade. Inspirada pela Ford, mas sem querer ser americana, a Fiat apresentou a fábrica Lingotto na sua inauguração em 1923 como o auge do modernismo industrial de vanguarda italiano. Como a perceção do sucesso económico nacional exigia uma indústria automóvel grande e competitiva, os trabalhadores do sector automóvel sabiam que podiam infligir tantos problemas ao nível da política que deviam ser temidos.
Mas esta história psico material começou num mundo geopolítico onde a China estava presa no seu século de humilhação [1]. A emergência da China como superpotência industrial não deixa nada deste velho mundo intocado. Sem o seu rápido desenvolvimento económico ao longo dos últimos 30 anos, impulsionando as emissões de carbono e acelerando a procura de petróleo após a estagnação da produção de petróleo convencional a partir de 2005, a transição energética teria parecido menos imperativa.
Ao comprometerem-se a acabar com a base energética da experiência histórica inicial de modernidade industrial da Europa Ocidental, sem uma estratégia viável para concretizar um futuro diferente, os governos europeus apenas aceleraram as longas forças da desindustrialização.
Agora, a China reivindicou o símbolo mais potente da transição energética para o seu próprio projeto de modernidade. À medida que o significado desta mudança começar a ser compreendido, a política democrática na Europa entrará necessariamente numa nova era de tumulto.
[1] Nota do tradutor: para perceber o que se quer dizer com século da humilhação da China, veja-se o trabalho A agenda global pretende a guerra com a China (original aqui)