Francisco Louçã
Manda o rigor que se diga que foi a jornalista da Rádio Renascença quem falou de “milagre” na conversa com a entrevistada, Teodora Cardoso, mas esta entusiasmou-se e usou-a para argumentar que, afinal, o défice é ilusório. Como a noção tinha precedência, afinal a própria entrevistada tinha sugerido no final do ano passado que só por “fé” se poderia imaginar que fosse alcançado o objectivo do défice, ficou a tese do “milagre”. Terá portanto sido coisa sobrenatural, independente da vontade ou do mérito humano.
Não foi. Foi do lado da despesa o efeito de uma sucessão de cortes antigos, só parcialmente repostos, combinado com algumas medidas excepcionais e com o impacto, esse estrutural, da melhoria do desempenho da economia e do alívio das pessoas. Ou seja, o que salvou a economia foi a viragem de 2015 com o fim do governo de Passos e de Portas.
Em contrapartida, o que para Teodora Cardoso não é do domínio da “fé” mas da “ciência”, pelo contrário, é a doutrina da austeridade. Empossada em 2011 à frente do Conselho de Finanças Públicas pelo governo de Passos Coelho, Cardoso defendeu a estratégia de cortes estruturais com a troika, chegando a declarar que o programa do PSD-CDS era “prudente, credível e fundado na melhor e mais sofisticada ciência económica” e que por isso a sua ideologia, a “racionalidade”, a levava a saudar estas medidas “científicas”.
Recapitulemos então. Para Cardoso, “milagre” é conseguir-se um bom indicador orçamental ao passo que “a mais sofisticada ciência económica” é a austeridade que agravou a recessão com cortes sociais. Mas então temos um problema: se a medida do êxito desta espiritualidade for o seu resultado, a “ciência” garantida alcançou o pior efeito e só a tal “fé” não-científica conseguiu sacudir a pressão.
Portanto, Cardoso e o seu apoio à austeridade ficam mal no retrato: nem a sua posologia resultou nem as previsões acertaram. A pergunta então será: por que razão deveríamos dar crédito às suas antecipações do diabo, se falhou sempre desde 2011 e apoiou o caminho mais prejudicial? De facto, o Conselho presidido por Teodora Cardoso revelou-se inútil: só faz previsões e são todas erradas, nunca dando uma ideia de medidas e estratégias para evitar o sofrimento da população.
A polémica sobre os offshores ilustra perfeitamente esta doutrina “científica”. Há aliás uma pulsação irritante na questão: dia sim, temos escândalo e promessas de acabar com os offshores e, dia não, temos silêncio e continuidade. Bush prometeu em 2001 acabar com eles; Obama prometeu em 2008; e, quando foram revelados os dossiers dos “Offshore Leaks” (100 mil empresas, 2013), do LuxLeaks (400 multinacionais, 2014) e dos Panama Papers (214 mil empresas, 2016), repetiu-se a mesma farsa, agora é que vai ser. Não foi e não por culpa de Paulo Núncio, que afinal é só um advogado especializado na promoção de offshores. Ora, a “mais sofisticada ciência económica” é isto: os offshores são centros da finança mundial. É por isso que a União Europeia tolera jurisdições não cooperantes como Andorra, Liechtenstein, Mónaco e Guernsey, ou respeita a Holanda, Áustria e Suíça; ou que Portugal protege a zona fiscalmente privilegiada da Madeira, onde, como aqui se escreveu, “percebemos que a UC Rusal, a maior produtora de alumínio, a British American Tobacco, a segunda maior tabaqueira do mundo, a Pepsi, a Sonangol e um total de mil empresas partilhavam uma sala de 100 metros quadrados sem terem contratado um único madeirense e sem terem atividade produtiva no Funchal.”
Aqui, sim, temos uma “fé”. Só que ela não produz milagres, antes a jigajoga fiscal no nevoeiro dos offshores.
Ovar, 5 de março de 2017
Álvaro Teixeira
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