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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Gulliver e a Europa liliputiana (estatuadesal)

 

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 26/04/2017)
soromenho
Imaginemos um cidadão europeu, de nome Gulliver, que tivesse tombado em coma em 2002, no mesmo ano em que o euro entrou em circulação e a convenção que visava estabelecer um tratado constitucional para a Europa iniciou os seus trabalhos. No ano em que intelectuais como Charles Kupchan, da Universidade de Georgetown, profetizavam que a UE seria o próximo farol do Ocidente, dada a inevitável queda dos EUA, de que a presidência de G.W. Bush era a definitiva prova. Imaginemos, ainda, que Gulliver despertava nesta Europa de 2017. Confirmaria a justeza de Kupchan, pois Trump promete ser uma mais incisiva prova de decadência do que Bush. Mas ficaria surpreendido com as brutais metamorfoses ocorridas no projeto europeu. Saberia que na UE o impacto regional da crise financeira de 2008 ficaria conhecido como "crise da dívida soberana". Muito embora a dívida dos Estados europeus tivesse escalado para acudir à derrocada do sistema bancário, e o dinheiro emprestado aos países pelos planos de resgate da troika tivesse sido menos de um décimo da quantia retirada aos contribuintes europeus para salvar a banca (uma significativa parte a fundo perdido...), o diretório europeu preferiu batizar a crise pelo nome da consequência (dívida pública) e não da causa (exuberância de imparidades de um setor financeiro deixado à rédea solta pelo péssimo desenho do euro). Gulliver ficaria também estarrecido por verificar que desde 2010 o nacionalismo e a xenofobia - as mesmas doenças europeias que devastaram o mundo em duas guerras mundiais - regressaram em força ao discurso político, começando debaixo da ideia farisaica de que povos inteiros gastaram para lá das suas possibilidades, sendo por isso a austeridade, simultaneamente, um remédio e uma merecida punição. Em vez das promessas de desenvolvimento da Agenda de Lisboa para 2010, a UE tornou-se um ciclópico centro correcional para promover a disciplina orçamental dos povos, sob os ditames de um novo tratado (2013), que promete um futuro sombrio, sem nenhuma perspetiva de investimento ou solidariedade social.
Ficaria também assustado por ver que a moeda comum se transformou num fator de divergência entre países, e entre grupos sociais, dentro do mesmo país. Perceberia que a desigualdade crescera, que o desemprego, sobretudo o jovem, atingia assimetricamente a UE, sem causar alarme nos países onde os excedentes externos funcionavam como um muro abafando as dores dos vizinhos.
Gulliver ficaria boquiaberto ao constatar que os políticos defensores deste desequilibrado "europeísmo" têm como opositores novos protagonistas, considerados "populistas", para quem bastaria um gesto mágico de supremacia da vontade nacional soberana para corrigir todos os males, como se pisar o campo minado da zona euro não implicasse um perigo mortal inaceitável. Gulliver sentir--se-ia, de facto, entre liliputianos na Europa de 2017. Ele pressentiria, com um pavor frio, que os horrores da Europa, geralmente causados por gente desmesurada e sequiosa de império, com mais vontade do que entendimento, poderiam igualmente ser provocados por gente pequenina em tudo, tanto nas suas ambições como no escasso pecúlio epistémico. Ele não saberia dizer, tal como nenhum de nós, se Emmanuel Macron, o próximo presidente francês, terá engenho e arte para impedir a única coisa gigantesca neste triste e imenso drama: o preço em sofrimento que todos teríamos de pagar se a Europa do futuro, finalmente, tombasse até ao patamar de irrelevância dos seus recentes e atuais regedores.
 
Ovar 26 de abril de 2017
Álvaro Teixeira

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