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sábado, 8 de julho de 2017

A Rússia



por estatuadesal
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 08/07/2017)
AUTOR
                                Miguel Sousa Tavares
A minha geração cresceu na convicção de que qualquer eventual loucura vinda dos lados da Rússia seria detida pelos Estados Unidos. Hoje, com a chegada de Donald Trump ao poder, põe-se a impensável possibilidade de fazer a pergunta oposta: no caso de uma eventual loucura americana, poderia a Europa contar com a protecção da Rússia? Esta hipótese absurda ocorreu-me durante um jantar oferecido por um russo no Pushkin, em Moscovo (talvez o mais bonito restaurante onde alguma vez estive). E.B. (as iniciais do anfitrião), tem 42 anos de idade, é natural do Turquemenistão, e trabalha para Putin — actualmente e numa aventurosa vida passada, onde terá desempenhado missões que poderemos classificar como de agente secreto, que lhe valeram inclusivamente duas prisões de dois anos cada, em outras tantas ex-repúblicas soviéticas. Surpreendentemente, é também um conhecedor razoável e entusiasmado de Portugal — sobretudo do fado, da literatura portuguesa e do Solar dos Presuntos. Fala como um russo: exuberantemente, empenhadamente, agitando os braços e olhando a direito, fumando muitos cigarros e bebendo muito whisky com Coca-Cola.
Quando lhe digo que nós, na Europa, temos medo da loucura de Trump e lhe pergunto se eles não têm também medo, sai uma resposta à russa:
— Não! Nós, os russos, não temos medo de nada! E vocês, na Europa, não tenham medo do Trump: ele não passa de um palhaço e nós cá estaremos para lhe fazer frente, se for preciso.
A história da Rússia confirma a sua bravata: quer no que eles chamam a Guerra Patriótica, em que enfrentaram Napoleão, quer no que chamam a Grande Guerra Patriótica, em que enfrentaram Hitler, os russos deram provas extremas daquilo a que Pasternak, reflectindo sobre o estalinismo, chamava “a nossa maldita capacidade de resistência ao sofrimento”. Mas as virtudes patrióticas e militares dos russos não se esgotaram na resposta às duas invasões sofridas e que, nos contra-ataques vitoriosos, levaram Alexandre I até Paris e Estaline até Berlim. Durante os trezentos anos que durou o reinado dos Romanovs, a Rússia esteve em permanentes guerras com a Polónia, a Finlândia, a Suécia, a França, a Prússia, a Inglaterra, a Polónia, a Turquia ou até o Japão, no Extremo Oriente, além de inúmeros e constantes combates contra os levantamentos nacionalistas das suas possessões do Cáucaso, da Ásia Menor, da Ucrânia ou dos Balcãs. E durante esses trezentos anos, acumulou vitórias sobre vitórias, acrescentando em média 142 quilómetros quadrados todos os dias ao seu território: em meados do século XIX dominava um sexto do planeta. A questão não está, pois, na capacidade e na vontade militar da Rússia, particularmente quando sentem o cerco ou a ameaça à “Mãe Rússia” — desde sempre o fundamento essencial do nacionalismo russo e o erro mais evitável em que a NATO persiste, desde o fim da URSS. A questão é saber se, fora dessas circunstâncias ou do seu instinto imperial, a Rússia estaria disposta a fazer de escudo à liberdade dos europeus. E essa questão é de resposta mais complexa.
“A Rússia — diz e repete-me E.B., convictamente — não é um país europeu. Parte do seu território é Europa e outra parte é Ásia, mas não é uma coisa nem outra. É a Rússia”. Como a Turquia, penso para comigo. Mas menos do que a Turquia. É verdade, por exemplo, que a literatura russa é um caso à parte em toda a Europa, mas apenas pela sua exuberância sem paralelo. Quando lemos Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev, Nabokov ou, mais do que todos, Tchekov, porque é que nos é tudo tão familiar e tão arrebatador? E se eu e E.B. concordamos que “Guerra e Paz” é provavelmente o melhor livro alguma vez escrito, poderiam um indiano, um japonês ou um chinês concordar connosco? A literatura não chega, responde ele. E a música, o ballet, a sua fabulosa e mal conhecida pintura, o teatro (e a paixão dos russos por Shakespeare)? Também não, insiste ele. E a Igreja Ortodoxa, filha da grega, aquela profusão de ícones, de velas, de cânticos, os fiéis agarrados a um terço, aquelas manifestações extremas de sofrimento e humilhação exibidas perante um Deus ausente e omnipotente, como em Fátima? Não, nem isso. Falemos então de São Petersburgo, a mais evidente face da Europa na Rússia.
Há alguma cidade europeia mais bonita do que São Petersburgo? Paris não é, Barcelona também não, nem Berlim; Amesterdão ou Estocolmo também não, nem sequer Praga e Budapeste, ou mesmo Florença. (Nem Lisboa ou o Porto, apesar de estarem na moda). Talvez só Veneza, por causa da Praça de São Marcos, mas São Petersburgo também tem canais rodeados de palácios e, embora mais recentes, são igualmente deslumbrantes (e mais bem conservados). Talvez Roma, pela luz e porque tem as ruínas romanas, enquanto que São Petersburgo nasceu do nada e da vontade de Pedro, O Grande, em 1703. Dirão que São Petersburgo não é a Rússia, mas uma excrescência imperial do norte, nascida para ser a capital. Mas foi dali que eles governaram todo o imenso território russo, foi dali que fizeram alianças ou começaram guerras com as outras Cortes europeias, e foi ali, para construir a cidade e essa maravilha do génio humano que é o Palácio de Inverno, que eles atraíram sucessivas elites de arquitectos, mestres, pintores, ebanistas, escultores, vindos de França, de Itália, da Alemanha, de toda a Europa. E basta apanhar o comboio para a feiíssima cidade de Helsínquia (um comboio muito usado pelo herói comunista Lenine para fugir para a Finlândia quando se sentia em perigo), para perceber que São Petersburgo não é assim por ser uma cidade do norte, mas sim por ser uma cidade onde todo o génio europeu se fundiu.
Claro, há Moscovo e Moscovo é diferente. Mas Moscovo — o Kremlin, a “fortaleza” — nasceu antes de se poder falar em Europa, no século XII (e, mesmo então, o primeiro arquitecto foi italiano). Dentro de um ano, quando for o Mundial de Futebol da Rússia, o mundo vai descobrir uma cidade de Moscovo que está a ser intensivamente restaurada e melhorada, uma cidade com flores por todo o lado, sem um papel no chão, com uma iluminação pública magnífica, lojas, centros comerciais e restaurantes de um bom gosto incrível, e mais o seu célebre e deslumbrante metropolitano, que fará qualquer americano corar de vergonha com a comparação. E, mais uma vez, o desafio é o critério de exigência europeu, não o asiático. Porque a história nunca passa impune: quando Alexandre I se encontrou com Napoleão para ambos dividirem entre si a Europa, o czar russo, notando o sotaque corso do francês, não resistiu a comentar-lhe: “Falo melhor francês do que o imperador dos franceses!”. Para lá de Moscovo começava a barbárie.
Claro que, do ponto de vista político, os russos têm necessidade de dizer que não são a Europa, mas sim o encontro entre a Europa e a Ásia. Hoje ainda, e talvez amanhã ainda mais, essa é a justificação para a geografia e sociologia do império. Porque a Rússia é o último dos impérios, e é por o ter sabido tão bem representar e interpretar que Putin goza de uma popularidade incontestável entre os russos. Bem podem, no Ocidente, denunciar os abusos autocráticos de Putin — para os russos isso é absolutamente indiferente: eles sempre viveram em autocracia e mil vezes Putin do que Estaline.
O problema não é dos russos, é nosso: é olhar para Vladimir Putin, natural dessa cidade deslumbrante que é São Petersburgo, e olhar para Donald Trump, natural dessa América profunda e perigosamente ignorante, e pensar que Putin é muito mais inteligente, culto e sabido do que o saloio do americano que achou que conseguia reproduzir Versalhes no seu apartamento da 5ª Avenida e que conseguia governar a América como governava os seus casinos.
E o que assusta é pensar que pode ter sido Putin quem, numa jogada de mestre, fez eleger Donald Trump Presidente dos Estados Unidos. E para quê, com que desígnios, eis a grande questão.

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