A cobertura mediática da tragédia de Pedrógão Grande foi logo desde o início bastante discutida. Câmaras a captar testemunhos sem filtro e em momentos inapropriados, diretos ao lado de cadáveres, drones que sobrevoavam a (rapidamente denominada) ‘Estrada da Morte’, o estranhíssimo caso do correspondente do El Mundo – Sebastião Pereira, a não-queda do Canadair… No fundo, um espetáculo intenso e com uma carga emocional invulgar, que se traduziu inevitavelmente em notícias com contornos que até agora desconhecíamos.
Poderíamos dizer, em resumo, que para além de toda a tragédia de Pedrógão Grande, este foi, também, um laboratório com alguns dos maiores desafios contemporâneos que a imprensa tradicional enfrenta: perante a turbilhão informativo do twitter, perante os lives do facebook, perante o acesso franco do público à opinião de inúmeros especialistas e “especialistas”, perante as fontes e as “fontes” que surgiam, ainda mais, de todo o lado…
Ao longo das últimas semanas, têm sido diversas as reflexões produzidas em torno do sucedido e as opiniões são mais ou menos convergentes num ponto: houve jornalistas e órgãos que tiveram prestações exemplares (demos aqui o exemplo de José António Pereira, da RTP) e houve quem tivesse reagido com grande dificuldade. Houve casos de aproveitamento explícito, especulação, propagação de notícias falsas e sensacionalismo.
Mais de um mês depois, quando já tudo parecia ter assentado, a polémica reacendeu, desta vez em torno do número de mortos do incêndio. É certo que desde 24 de Junho víamos este assunto aflorado nas redes sociais, através de muitos apontamentos individuais que sugeriam “isto e aquilo” com elevado grau de certeza, mas reduzido grau de credibilidade. Foi, no entanto, no passado sábado, 23 de Julho, que o caso ganhou outra robustez. O Expresso fez manchete com “Lista de 64 mortos exclui vítimas de Pedrógão” e estava prometido um escândalo com proporções inimagináveis.
Já aqui falámos, no próprio dia da publicação do jornal, de como este título planta a dúvida em relação ao número de vítimas, sem apresentar depois factos que confirmem a afirmação que faz. O Expresso diz na primeira página que o número era superior no plural, mas na própria peça menciona apenas mais um caso no singular, que não sendo considerado como “morte direta”, acabaria por nem pertencer à lista. Depois, afirmava que se tratava de uma lista “que o governo não queria divulgar”, sendo que ela pertencia ao Ministério Público e, estando sob segredo de justiça, era apenas ao próprio Ministério Público que cabia a possibilidade de a tornar pública. Por fim, ignorava que os critérios que determinavam os conceitos de “morte direta” e “morte indireta” eram oficiais e muito anteriores à tragédia.
“Durante semanas, o Expresso vasculhou o terreno, confrontou nomes e locais e foi construindo, passo a passo, uma lista própria e que acabou por ser confirmada como idêntica à oficial.” – Entre a manchete, o título da notícia e o seu conteúdo há uma contradição nos termos, explícita para qualquer leitor.
É esta a primeira vez que os rumores de semanas ganham forma de notícia, e logo através de um dos jornais mais lidos do país.
No mesmo dia, o jornal i lança no online uma notícia de última hora: “Incêndios. Empresária contou mais de 80 mortos em Pedrógão Grande”. Segundo a notícia, uma empresária de Lisboa, Isabel Monteiro, fez uma lista provisória com os nomes das vítimas a fim de criar um memorial de homenagem. A lista contava com mais de 80 nomes e, segundo contou ao i, o número podia ainda ser muito superior. A empresária tinha 73 vítimas mortais confirmadas pelas famílias, com nomes, moradas e local da morte.
O caso ganhava densidade à medida que outros órgãos juntavam fontes aparentemente novas e diversas à suspeita lançada pela manchete do Expresso. Mesmo considerando que essa manchete era posta em causa pela própria notícia, ela lançava a lebre, e o caso era excessivamente grave para ficar ali resolvido. Os leitores exigiam esclarecimentos.
Na segunda-feira, dia 24, o i faz manchete em papel com uma investigação que “aponta para um número de mortes muito superior ao anunciado pelo governo” e cita diversas fontes. Mais de 80, dizem uns. Pelo menos 95, dizem outros. 73 foi o número assumido pelo jornal, confirmado através da lista de Isabel Monteiro. Já não estava em causa a questão do critério para considerar “mortes diretas.” Entre estes 7 novos casos, garantia o i, havia quem tivesse morrido diretamente por força do fogo. O que aparentava ser grave acabava de se tornar gravíssimo. A partir daqui, vários órgãos republicaram a notícia, dando-lhe cobertura e difusão. A TVI decidiu entrevistar a fonte, que recusou a obrigação de fornecer as provas de que dispõe à investigação criminal em curso.
Nesta mesma noite, no Jornal da Noite, numa infografia cuja pertinência acabou por ser muito discutida, a SIC apurou que a lista da empresária continha várias imprecisões, como nomes repetidos, e reafirmou a notícia do Expresso: 64 mortes diretas. 1 morte indireta. Acrescentou ainda a possibilidade de se considerar um novo caso, de uma pessoa que veio a morrer um mês depois, vítima de pneumonia. Bernardo Ferrão, subdirector da estação, dirigindo-se ao governo, pede que “não atirem areia para os olhos.” “Esclareçam tudo. O erro foi não o terem feito logo de início” – acrescentou. Henrique Raposo, no Expresso, defende que “ocultar o número de mortos de Pedrógão para assim não prejudicar a imagem do Governo e da proteção civil já está para além da amoralidade maquiavélica da política.” Exige a queda do governo.
Na terça-feira de manhã, dia 25, o jornal i noticia que a lista já contava apenas com 69 nomes, excluindo assim as imprecisões entretanto detectadas.
Ao final desse dia, a Procuradoria-Geral da República lançou um comunicado onde divulga a lista oficial de vítimas do incêndio de Pedrógão Grande e onde confirma as imprecisões na lista de Isabel Monteiro, que entretanto circulou: “Da análise dos elementos recolhidos apurou-se a existência de diversas imprecisões quanto à identificação das pessoas indicadas na referida lista, bem como repetição de nomes em, pelo menos, seis situações”. 64. É este o número de mortos que constam na investigação ao Incêndio.
Na sua edição de hoje, a direção do i passa estranhamente ao lado do comunicado do Ministério Público. Não contesta. Não reafirma as suas diferentes versões de segunda e terça. Também não corrige. Não pede desculpa aos leitores. E decide dar um sentido curioso ao comunicado: “Ministério Público cede à pressão política.” – ignorando que a pressão era, fundamentalmente, mediática. Ignorando que essa pressão mediática tinha como um dos atores principais o próprio i. Desresponsabilizando-se e afastando-se de um caso onde esteve envolvido desde início.
Já o Expresso opta pelo auto-elogio e entende que o comunicado “confirma todas as informações reveladas” pela edição de sábado. Mas como podem considerar que o Ministério Público dá razão à sua versão quando o comunicado diz, literalmente, que “no âmbito deste inquérito [ao incêndio de Pedrógão Grande] foram identificadas, até ao momento, 64 vítimas mortais.” Não há uma contradição entre “foram identificadas 64 vítimas mortais” e “lista de 64 exclui vítimas”, como dizia a manchete de sábado? Tal como o jornal i, o Expresso também atribui à pressão política (neste caso, mais concretamente, ao PSD) a responsabilidade da divulgação do MP.
No fim de tudo isto, e no sentido de clarificar o caos que se viveu nos últimos dias, as atenções voltam-se para Isabel Monteiro, a empresária a quem parte da imprensa atribuiu, aparentemente, uma credibilidade excessiva, num caso sensível e que merecia ser abordado de forma especialmente cuidada. Diversas informações têm vindo a surgir que poderiam ter afectado a idoneidade da fonte. Elas não foram atendidas pelo jornal i e pela TVI, por exemplo. Mas será o Expresso uma exceção?
Não sabemos. Sabemos apenas que, apesar de ter optado por nunca citar diretamente a empresária Isabel Monteiro e de não assumir a fonte, o Expresso tê-la-á ouvido e considerado no processo de investigação. Poucas horas depois de o jornal estar nas bancas, às 9:25 da manhã, Isabel Monteiro usa o seu facebook pessoal para agradecer à jornalista Christiana Martins, primeira autora da notícia, “por ter acreditado.”
Expresso e i disseram que faltavam nomes à lista de 64. Outros órgãos deram cobertura à mesma tese. Agora, depois de alguns dias agitados e com uma lista oficial publicada, é preciso que a imprensa responda categoricamente às questões que ela própria levantou: Que nomes faltam a estes 64 nomes agora apresentados pelo Ministério Púbico? O Governo ocultou ou não ocultou nomes da lista de vítimas que constam da investigação ao incêndio?
Face ao silêncio e às omissões de alguns órgãos, que agora optam por deixar cair o assunto que criaram, parece que as conclusões, mais uma vez, têm de ficar a cargo dos leitores. Se o que se passou nos últimos dias é informação, em que é que esta difere da confusão?
Fonte: Aventar
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quinta-feira, 27 de julho de 2017
Lixo humano, político e jornalístico por j. manuel cordeiro
O que se passou nos últimos dias apresenta todos os contornos de uma campanha orquestrada entre comunicação social e políticos. A página dos truques faz a resenha, que aqui fica para memória futura. Creio não errar ao afirmar estarmos perante o mais rasca lixo humano, político e jornalístico a que assistimos na política pós-25 de Abril. Faltou referir o episódio do suicídio, bem como o patético ultimato do líder para lamentar do PSD e a sua vanglória pelos resultados (?) alcançados. Merece esta gente um lugar no Parlamento? Eu acho que não.
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