(Margarida Mota, In Expresso, 19/08/2017)
O Qatar é um caso de persistência nas manchetes internacionais. Em inícios de junho, o pequeno emirado ribeirinho ao Golfo Pérsico foi notícia dias a fio após ser alvo de um bloqueio diplomático e comercial — que ainda dura — decretado por quatro ‘irmãos’ árabes (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito). Há poucas semanas, arrebatou noticiários nos quatro cantos do mundo ao estar por detrás da contratação mais cara da história do futebol — a do brasileiro Neymar, comprado ao Barcelona pelo Paris Saint-Germain (PSG), propriedade de um fundo soberano do Qatar, por 220 milhões de euros.
“Nem tudo o que está relacionado com o Qatar está relacionado com política. Mas penso que, neste caso, é justo estabelecermos uma ligação dessa natureza”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Neste contexto, em que o Qatar é alvo de um bloqueio pouco usual e bastante difícil e a imprensa dos países que se opõem ao Qatar tem promovido uma imagem muito negativa do emirado, dizendo, por exemplo, que apoia terroristas, é perfeitamente plausível que os qataris estivessem interessados em promover esta transferência, para beneficiar de dias, semanas a fio de manchetes demonstrativas de uma mentalidade muito mais positiva.”
O PSG está nas mãos do Qatar desde 2011, quando a Qatar Sports Investments adquiriu 70% do clube francês. Nasser Al-Khelaifi, membro da família real do Qatar, subiu à presidência, contratou o sueco Zlatan Ibrahimovic ao Milan e logo o seu reinado começou a dar frutos: o PSG foi tetracampeão da Ligue 1 entre 2012 e 2016. O ‘penta’ foi-lhe roubado na época passada pelo Mónaco, treinado por Leonardo Jardim.
“O PSG é apenas uma peça de uma campanha mais abrangente de soft power”, diz o professor Roberts, referindo-se à capacidade de influência de um Estado através da ideologia ou da cultura (e não das armas). “Quanto dinheiro é gasto, todos os anos, pela Coca-Cola e pela Pepsi em publicidade em todo o lado? Às vezes não percebemos porque patrocinam determinado torneio de futebol ou até um jogador e o que ganham com isso. Mas toda a grande empresa no mundo gasta milhões em publicidade por alguma razão. É isso que o Qatar está a fazer também.”
Do boxeur Ali ao FIFA 2022
Esta estratégia de afirmação fora de portas através do desporto é, aliás, tão antiga quanto o próprio país. Em 1971, ano em que se tornou independente do Reino Unido, o Qatar recebeu o mediático pugilista Muhammad Ali, que realizou um combate de exibição ao ar livre no Estádio de Doha. Desde então, o país já acolheu quase de tudo, desde torneios de topo de ténis e golfe a competições de desportos motorizados e meetings de atletismo. Em 2006, a capital, Doha, recebeu os Jogos Asiáticos, uma versão regional dos Jogos Olímpicos.
Mas é o futebol, o desporto mais popular no país, que tem justificado grandes eventos. Em 1988, o Qatar organizou a Taça Asiática, o correspondente regional do Campeonato Europeu, que repetiu em 2011. Em 1995, acolheu o Campeonato do Mundo de Sub-20 (em que Portugal foi terceiro). Em 2014, o Estádio Jassim Bin Hamad, em Doha, foi palco da... Supertaça italiana, entre a Juventus e o Nápoles. Em 2022 será colocada a cereja no topo do bolo, com a realização do Mundial da FIFA.
De permeio, por intermédio da Qatar Sports Investments — a mesma que comprou o PSG —, passou a patrocinar o FC Barcelona, um dos clubes mais mediáticos do mundo, primeiro através da Qatar Foundation (2011-2013) e depois da Qatar Airways (2013-2017). Curiosamente, desde 2013 que o patrocinador principal do grande rival do Barça, o Real Madrid, é a companhia aérea Emirates, dos Emirados Árabes Unidos, um dos protagonistas do bloqueio em curso ao Qatar.
Gastar quantias avultadas no desporto não é, pois, algo de novo para o emirado. “O Qatar tem muito dinheiro. É o país mais rico do mundo em termos per capita”, diz David B. Roberts, recordando que o país tem pouco petróleo mas partilha com o Irão o maior campo de gás do mundo. “Um Estado aplica aquilo que tem. O que é que a Coreia do Norte tem? Tem ambição nuclear e armas de longo alcance. O Qatar tem essencialmente instrumentos financeiros, e está a aplica-los.”
Muito dinheiro para gastar
Obrigado a acatar 13 exigências para ver o bloqueio por terra, mar e ar levantado — entre as quais o corte de relações com o Irão (“O Qatar não pode ter uma má relação com o Irão. Têm uma relação pragmática”, defende Roberts) —, o negócio Neymar é uma jogada de contra-ataque. “O Qatar é muito resiliente, tem aliados internacionais importantes e muito dinheiro para gastar”, diz o autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017). “Mas esta crise vai-lhe sair extremamente cara, porque vai ter de reformular a origem da grande maioria das importações. Sim, podem vir do Irão ou, provavelmente, da Turquia, isso já está a acontecer, mas vai-lhe sair muito caro. É um preço que o Qatar está disposto a pagar. Eles dizem: ‘A soberania não tem preço. Para fazermos o que queremos, temos de pagar por isso.’”
No domingo passado, a Qatar Ports Management Co. anunciou a abertura de uma nova rota de navegação entre o seu porto de Hamad e o porto paquistanês de Karachi, visando contornar dificuldades impostas pelo bloqueio. Para David B. Roberts, o desfecho desta crise demorará anos, não meses.
Até lá, em campo, Neymar provará (ou não) se a fortuna que custou teve retorno. Para já, o Qatar não podia estar mais satisfeito. O brasileiro estreou-se pelo PSG no passado domingo, à segunda jornada da Ligue 1, no campo do Guingamp. Marcou um golo, participou nos outros com que o PSG venceu e foi considerado “o homem do jogo”. No final, afirmou: “As pessoas pensam que deixar o Barça é morrer, mas é o contrário, estou mais vivo do que nunca.” E com os bolsos incomparavelmente mais cheios também.
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