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domingo, 17 de setembro de 2017

‘Correio-da-manhização’



por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso, 16/09/2017)
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Não vou escalpelizar as notícias sobre a venda e compra das casas de Fernando Medina. A volatilidade do mercado imobiliário nos últimos anos, que passou de um bom momento para uma profunda depressão, seguido de uma euforia louca, torna qualquer insinuação sobre ganhos e perdas em compras de casa risível. O salto dado por alguns jornalistas, que foram procurar os negócios da Câmara com a empresa da família da vendedora, corresponde a um processo de ‘correiodamanhização’ da nossa comunicação social. Não basta que dois factos sejam verdadeiros para serem publicados juntos. Ainda mais se da associação entre dois atos legais e legítimos resultar a insinuação de um crime. Se assim for, a notícia está nessa relação de causalidade e esta tem de ser provada. Se ela não é estabelecida mas apenas insinuada, estamos no domínio do boato. O bom jornalismo não publica factos para que se investigue a relação entre eles, investiga a relação entre eles para os publicar. Não lança pistas, segue pistas.
Conhecemos o modo de fazer a coisa. Alguém faz uma denúncia anónima para a PGR. Como é natural, esta investiga. Em vésperas de eleições, alguém (provavelmente a mesma pessoa) passa para os jornais a mesma informação e o facto de a PGR estar a investigar dá credibilidade ao que é insinuado. A não ser que os compradores franceses estejam metidos na ‘marosca’, a notícia não é que Fernando Medina vendeu bem uma casa. Também não é que comprou bem outra, ao mesmo preço da casa do lado. Tem o dever de conhecer bem o mercado imobiliário da cidade que dirige. E a coisa faz ainda menos sentido quando o preço que serve de referência para calcular a aparente desvalorização da casa comprada resulta de uma transação anterior entre pessoas e empresas da mesma família, onde o mercado não teve qualquer papel. Nada no que foi publicado torna os valores da venda e da compra suspeitos. A notícia também não é o negócio da Câmara com uma construtura. Seria requentada e banal, tendo em conta a dimensão da Teixeira Duarte e da CML. Também não será o facto de a vendedora ser uma herdeira dessa construtora, coisa natural tendo em conta o seu ramo de atividade. A notícia é a relação entre os negócios da CML com a Teixeira Duarte e a compra da casa da herdeira desta construtora pelo presidente da Câmara. E sobre a relação entre os dois factos nada foi publicado. Trata-se, portanto, de uma insinuação transformada em notícia.
Não tenho intimidade com Fernando Medina para jurar da sua seriedade. Mas os documentos tornados públicos por ele deixam pouco espaço para especulações. Recuso que o papel do jornalismo seja o de alimentar a desconfiança à boleia da descrença popular na política e na democracia.
É investigar e provar. Provas diferentes das criminais, mas, ainda assim, provas. Recuso que a justiça seja um meio para dar credibilidade a insinuações em campanhas eleitorais. E recuso que a ocupação de cargos públicos implique viver sob a suspeita de ser criminoso e corrupto até prova em contrário. É por isso que não leio o “Correio da Manhã” e escolho jornais sérios para me informar: espero que quando surge a suspeita ela seja fundada e resulte de uma investigação sólida. Se assim não for, fico apenas com duas possibilidades: ou não acreditar em nenhum político ou não acreditar em nenhum jornal. Uma e outra condenam a democracia.

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