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sábado, 30 de setembro de 2017

Vamos arrasá-los!


Estátua de Sal

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 29/09/2017)

Guerreiro

António Guerreiro

A acreditar nos títulos dos jornais, no mundo político há sempre alguém a “arrasar” alguém: é a chamada linguagem bulldozer que diz muito sobre quem a usa.


“Arrasar” é o verbo mais bem partilhado nos jornais portugueses. O Google comprova-o: procurando Arrasa + nome dos mais importantes jornais portugueses, obtemos um trânsito longuíssimo da fórmula “X arrasa Y”. No dia 30 de Agosto – informa-nos o Google com a precisão de um barómetro —, o “arraso” circulou em fila compacta e foi-se deter à entrada do PÚBLICO, do Expresso, do Diário de Notícias, do Jornal de Notícias e da Tribuna de Macau. A causa não foi um fenómeno meteorológico, não houve registo de qualquer depressão sobre o Atlântico em direcção a um anticiclone situado sobre a parte mais ocidental do continente europeu; tratou-se antes de uma pequena maquinação numa reserva política de veraneio para principiantes que os vários jornais traduziram, em uníssono, para o idioma bulldozzer: Cavaco arrasa Governo. O algoritmo do Google tem a indelicadeza de mostrar que, 15 dias antes, uma revista que se dedica a relatar factos sensíveis de gente sensível para gente sensível confundiu Catarina Furtado com um bulldozer e comunicou: “Catarina Furtado arrasa em biquíni”. Mas como os furacões têm nomes de mulher, e logo a seguir aparece um título onde o verbo “arrasar” é usado no sentido literal – Furacão Maria arrasou a ilha Dominica —, somos levados a pensar que talvez estivéssemos equivocados e que o nome de Catarina Furtado designa, no idioma da revista sensível, não um efeito bulldozer provocado pela magia do biquíni, mas um verdadeiro furacão – feminino, como é o nome de todos os furacões. No mundo barroco configurado pelo Google, a reversibilidade põe tudo em movimento e mostra a finitude de todas as glórias terrenas: ora Sócrates arrasa Cavaco (no semanário Sol), ora Cavaco arrasa Sócrates (na TSF).

Como se pode perceber, o furor arrasante que soprou na primeira página do Expresso na semana passada (Relatório das secretas sobre Tancos arrasa ministro e militares) é um cliché do idioma jornalístico e nem se percebe como é que a metáfora congelada pelo uso gregário consegue provocar tanto ruído. Todos os que julgam poder dizer alguma coisa nesta língua morta deviam obedecer à injunção de um famoso crítico da “fraseologia” dos jornais: “Dêem um passo em frente e calem-se” (Karl Kraus). Tratemos então o verbo “arrasar”, nas suas declinações jornalísticas, como um facto linguístico. Ele não contém nenhuma informação, não descreve nada, mas realiza –ou pretende realizar — uma acção, isto é, tem uma intenção performativa. Sempre que num jornal se escreve “X arrasou Y” é o próprio jornal que pretende “arrasar” Y. Porque o uso de tal metáfora não indica uma constatação, implica uma tomada de posição de quem a profere e uma vontade de realizar a acção. Dizer “arrasou” não é o mesmo que dizer “criticou violentamente”. Enquanto que a segunda forma pode ser dita sem comprometer a neutralidade de quem a diz, a primeira faz o jogo da diminuição e da ridicularização do “arrasado”, diz que está a proferir sobre ele um juízo definitivo e nada nem ninguém o pode salvar. Ninguém é “arrasado” num dia e reaparece intacto no dia seguinte. Toda a crítica pode ser refutada; mas todo o “arraso” é irreversível. Há um gáudio indiscreto na sentença “X arrasa Y”. Não quer dizer que quem experimenta esse gáudio não sinta exactamente o mesmo se a situação se inverter de modo a poder dizer que “Y arrasa X”.

Mais do que as determinações ideológicas ou políticas destes enunciados, é preciso ver neles a miséria da linguagem jornalística e uma ingenuidade semelhante àquela dos escritores que, como alguém disse, julgam que basta escrever “merda” para que os leitores sintam o mau cheiro.

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