(Daniel Proença de Carvalho, 26/10/2017)
O debate na Assembleia da República da moção de censura ao governo teve o mérito de contribuir para compreender de forma mais sistematizada as responsabilidades dos governos ao longo das últimas décadas no acumular de erros que culminaram nas tragédias dos incêndios que vitimaram vidas humanas e privaram tantos de casa, fábricas, explorações agrícolas e florestais. Numa síntese, falhou o Estado numa das suas principais funções: garantir a segurança das pessoas e dos seus bens. Ao acusarem-se mutuamente dos atos e omissões cometidos nos vários governos que antecederam o eclodir desta catástrofe, os deputados e representantes do governo deram uma ajuda à compreensão das causas remotas e próximas do que aconteceu. A verdade é que todos têm a sua parcela de responsabilidade, não só os que estiveram no governo mas também os que sempre estiveram na oposição. Nenhum deles colocou como prioridade as funções de soberania do Estado, nenhum deles concebeu uma estratégia de combate ao abandono do interior rural, à estrutura fundiária que conduziu à impossibilidade material de cuidar dos campos, em suma, às causas remotas da situação de perigo em que vivem as populações nessas regiões abandonadas à sua sorte. Como lapidarmente disse o nosso Presidente, essas pessoas foram abandonadas, porque não têm capacidade nem voz reivindicativa, não contam para as contas dos partidos. Portugal fez grandes progressos na Saúde, na Educação, na Segurança Social - áreas em que o Estado e os privados investiram e competem. O Estado investiu nessas áreas porque os benefícios estendem-se por todos os eleitores, sendo certo que o maior número destes votam nas zonas urbanas e no litoral. Os privados investem, naturalmente, onde está o mercado. Quem se interessa pelas populações do interior, que não dão votos aos partidos nem receitas aos privados? A dimensão da tragédia fez-nos ver, a todos, mesmo aos que ignoram o mundo rural, que desta vez o Estado tem de agir. Esperemos que o faça com o concurso de todos e de forma competente. Outra das lições do que se passou tem que ver com a descoordenação e a falta de liderança dos sistemas de ataque aos incêndios. A forma atabalhoada e sem coordenação eficaz dos vários agentes envolvidos pôs uma vez mais a nu uma administração a precisar de um choque de liderança e eficiência. Mal refeitos do trauma dos incêndios, uma sentença de um tribunal superior confronta-nos com outro setor desprezado pelos políticos, entregue a uma autogestão à margem de qualquer escrutínio e à mercê de preconceitos que se sobrepõem ao império da lei. Dirão alguns que dois juízes não representam a Justiça e um acórdão não faz jurisprudência. Está enganado quem assim pensa. O sistema de justiça não dá confiança aos cidadãos e às empresas, como está comprovado por todos os estudos conhecidos que recolhem e avaliam as opiniões dos cidadãos. E o problema não está nas leis, está numa organização que funciona em autarcia, fechada sobre si própria, em regime de irresponsabilidade. Quando o órgão competente para a "nomeação, colocação, transferência e promoção dos Juízes (...) e o exercício da ação disciplinar" (artigo 217.º da Constituição da República Portuguesa) se declara impotente para agir perante decisões de juízes que citam a Bíblia para desculpar ou atenuar a culpa de agressores de mulheres, sob o pretexto de salvaguardar a sacrossanta independência dos magistrados, estamos, aqui também, perante o falhanço do Estado em proteger pessoas indefesas. Com a agravante de que, neste caso, o poder político diz que nos temas da justiça não se mete! Ou seja, não temos defesa perante os abusos de um dos mais poderosos poderes (passe o pleonasmo) do Estado. Como sou advogado, com uma carreira já muito longa, acrescento que conheci e conheço muitos juízes e juízas que não se reveem nestes comportamentos, que são pessoas inteligentes, competentes e sensatas. Mas custa-me não ouvir uma única voz, nem dos sindicatos que os representam, a criticar comportamentos que deveriam envergonhar-nos a todos. |
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