(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/11/2017)
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Daniel Oliveira
Quem acompanhe o alinhamento noticioso e leia e oiça a maioria dos comentadores políticos, só pode concluir que o país está à beira do precipício. Que estamos a viver uma brutal crise económica, que o Estado entrou agora em ruínas, que atravessamos uma nova calamidade social, que as contas públicas estão à beira da rutura. No entanto, não é nada disso que se passa.
É verdade que a nossa economia cresce mas não cresce o que teria de crescer para respirarmos de alívio. Nem crescerá. A nossa integração no euro, que a esmagadora maioria do país não quer questionar, impede milagres desse tipo. É olharem para a evolução dos números desde o final dos anos 90. É verdade que muitos serviços públicos estão a entrar em colapso. É o preço que pagamos pela ideologia do Estado mínimo e aquilo a que pomposamente chamam “reformas estruturais”. Apesar de terem andado a enganar as pessoas com a conversa das “gorduras do Estado”, não se emagrece o Estado sem reduzir drasticamente pensões e serviços públicos. É aí que está quase toda a despesa. É verdade que vários anos de sucessivos PEC e quatro de troika tiveram um tal efeito na sociedade portuguesa que a reposição acelerada de rendimentos não chega para reconstruir o que foi destruído. A crise social que sentimos é estrutural e vencê-la implicaria romper com várias dogmas do “consenso europeu”. E é verdade que o preço de cumprir as metas europeias é garantir um superavit primário de 3%, o que implica que o Estado em vez de contribuir para o crescimento retira dinheiro da economia. Mas só alguém profundamente desonesto não reconhece que estes dois anos mudaram tudo para melhor e mais do que se previa. É irem aos arquivos dos jornais ler o que se dizia que ia acontecer.
Há uma diferença abissal entre o que está a acontecer ao país, que vive o seu melhor momento desde 2009, e o que a agenda mediática impõe ao debate público. Essa diferença pode observar-se através do contraste entre as opiniões publicadas e o que nos dizem as sondagens. E isso, mais do que obrigar o Governo a pensar nos seus evidentes problemas de comunicação, deve obrigar a imprensa a pensar no papel que hoje desempenha no debate democrático. Mas esta é apenas uma parte do problema. Há também a própria “geringonça”, com as sua limitações e contradições. Limitações e contradições que não foram inventadas pelos media. Estão lá e são cada vez mais evidentes.
O casamento entre PS, BE e PCP era impossível e inevitável. Não totalmente inevitável, caso contrário teria acontecido mais cedo. Mas a pressão da maioria dos eleitores, que não aceitava mais quatro anos de Passos Coelho, tornava muito difícil não quebrar o velho tabu de um entendimento à esquerda. Tabu com que a direita sempre contou. Não totalmente impossível, como a realidade veio a provar. Ainda assim, muitíssimo limitado. Porque a ambição de fazer deste governo mais do que a tentativa de recuperar o que se perdeu nos quatro anos anteriores chocaria sempre com as metas europeias. Ao contrário do que se diz, não chocaria apenas com as divergências entre PCP e Bloco, de um lado, e PS, do outro. Chocaria com as divergências entre o que o país deseja para si e a agenda ideológica que aceita da Europa. Não é um problema português. É um problema de qualquer governo de esquerda em qualquer país da União. Apenas é mais grave nos países mais pobres e periféricos.
O problema é que os três partidos não parecerem querer esgotar todas as possibilidades dentro dos limites europeus que aceitamos. Isto torna-se muito evidente quando Mário Centeno procura resultados orçamentais ainda mais restritivos do que aqueles que nos eram exigidos. E torna-se evidente quando BE e PCP não parecem interessados em chegar a entendimentos em temas que ultrapassem a mera reposição de rendimentos ou participar na definição das prioridades para o investimento público. É verdade que o programa mínimo da “geringonça” é mínimo porque dentro das regras europeias as reformas de esquerda estão interditas, mas também é verdade que PS, BE e PCP parecem fazer questão, talvez por cautela, que o entendimento entre os três se fique pelo mínimo.
Depois de cumprido praticamente todo o acordo assinado pelos três partidos – o que é sinal de eficácia mas também de falta de ambição –, seriam necessários novos acordos. Caso contrário seria inevitável chegar a este momento de descoordenação. E esses acordos, ao contrário do que nos tentam dizer, podiam manter a lógica que presidiu desde o primeiro momento a esta solução: a de que o PS quer cumprir as metas europeias e por isso o BE e o PCP não se podem comprometer a mais do que a um apoio parlamentar. Haveria coisas para fazer dentro destas regras e dos limites orçamentais que sempre reduziram o alcance desta solução política.
A esquerda poderia aproveitar estes quatro anos para mostrar o mesmo arrojo em políticas de educação que a direita mostrou com Nuno Crato. Só que, no caso da “geringonça”, em sentido inverso: aproximando o nosso modelo educativo do que de mais moderno existe na Europa e libertando-o das amarras com que a direita o tem prendido a um conservadorismo elitista e bafiento. Depois de um fôlego animador na resistência ao lóbi dos colégios privados, a pasta da Educação entrou em gestão e voltámos à velha sina de tudo se resumir à negociação necessária mas redutora com os professores.
A esquerda poderia ter aproveitado para repor a contratação coletiva, dando capacidade negocial aos trabalhadores e permitindo que a desigualdade na distribuição de rendimento, que é um dos maiores problemas sociais, económicos e políticos do país, seja vencido. Fê-lo com o aumento do Salário Mínimo Nacional, mas isso apenas toca nos salários mais baixos. Esta seria, aliás, a forma mais eficaz de quebrar o fosso entre a capacidade reivindicativa dos trabalhadores do privado e do público, que facilita o populismo que vira trabalhadores contra trabalhadores para todos ficarem a perder. Mas as leis laborais parecem ser um tabu para os socialistas.
A esquerda poderia aproveitar estes quatro anos para reforçar os cuidados de saúde primários, regressando ao esforço de construção de uma rede de unidades de saúde familiar. Esta é a única forma de aliviar os hospitais, permitindo uma melhoria de qualidade sem que isso represente um aumento de custos. Infelizmente, é na saúde que assistimos à mais recuada gestão política deste governo, num processo de quase total continuidade com a política de Paulo Macedo. Tudo continua a avançar na lenta mas aparentemente inexorável degradação do Serviço Nacional de Saúde.
A esquerda poderia aproveitar estes quatro anos para fazer uma regionalização, urgente reforma para uma boa administração do Estado e do território, infelizmente boicotada por Marcelo Rebelo de Sousa quando era líder do PSD ,e pôs os cálculos partidários à frente dos interesses nacionais. Esta reforma, que qualquer pessoa conhecedora do Estado defende, acabará por se fazer. Provavelmente entre António Costa e Rui Rio. Bloco e PCP terão perdido a oportunidade de ser determinantes na definição da sua arquitetura, tornando mais prováveis os habituais entorses que o bloco central oferece a tudo o que envolva recrutamento de pessoal político para o aparelho de Estado.
Estes quatro anos poderiam servir para implementar algumas das reformas estruturais que a esquerda defende para o país e para o Estado, mostrando que tem proposta, e não apenas resistência, que não é uma força conservadora, apenas defende caminhos diferentes na mudança. Na educação, na saúde, no trabalho e na gestão do território e do Estado, a esquerda tem propostas que a distinguem do processo de privatização que é apresentado como a única reforma aceitável. Só tem de perder, como os trabalhistas britânicos estão a perder, complexos em defendê-lo e, dentro dos nossos enormes condicionalismos, aplicá-las. Infelizmente, parece bastar-lhe repor a normalidade dentro da anormalidade que se impôs ao país desde o início deste século.
Isto acontece por duas razões: o PS não deseja mais do que gerir a situação que tem e o Bloco e o PCP não querem mais do que conter os danos que este entendimento possa provocar. Os três estão concentrados em cálculos eleitorais e, no caso dos partidos mais à esquerda, numa guerra infantil em que, em vez de uma colaboração que reforce posições coincidentes, se dedicam a um imbecil concurso que ultrapassa em muito a natural competição partidária. O último episódio, em que assistimos a uma ridícula guerra para saber quem ficaria em primeiro na ordem de votação de duas propostas idênticas para o fim do corte de 10% no subsídio de desemprego, esteve ao nível das disputas para associações de estudantes.
Recuso a ideia de que este governo esteja a construir um “Estado Salarial”, como hipocritamente diz uma direita que andou a defender o emagrecimento do Estado para, de cada vez que ele entra em colapso, vir exigir o Estado máximo. Mas a reposição de rendimentos de pensionistas, desempregados e funcionários públicos, a par com o aumento do salário mínimo, não pode esgotar a agenda da “gerigonça” durante quatro anos. A oportunidade histórica de ter um governo de esquerda não pode ser desperdiçada para apenas aplicar um programa de urgência de reposição de rendimentos, deixando de fora as grandes reformas estruturais com que a esquerda tem de combater a destruição e privatização dos serviços públicos, o despovoamento do território e a desproteção crescente dos trabalhadores. Apesar de ser fundamental, a política de esquerda não se pode esgotar numa folha de pagamentos.
O impasse estratégico em que a “geringonça” se encontra, que se agravou com a fragilização do Governo desde o início do verão (real e mediática), está a criar um sentimento difuso de fim de festa. É possível que, no PS, no BE e no PCP, a avaliação mais crítica da “geringonça” não tenha em conta um sentimento muito presente entre os seus eleitores: por mais frágil que seja o que aqui se está a fazer, é bem melhor do que a Europa nos reserva e do que será o futuro depois desta experiência. É possível que, perante as dificuldades, os partidos de esquerda desvalorizem o alívio que as pessoas sentem. Se o fizerem, é provável que se precipitem em anúncios de encerramento de um ciclo, como insinuou Jerónimo de Sousa. A precipitação poderá custar-lhes caro. No caso do PS, poderá custar um regresso ao poder de uma direita recauchutada. No caso do BE e do PCP, poderá custar ou isso ou uma maioria absoluta do PS. Em qualquer dos casos, será tarde demais para fazerem o que não fizerem agora.
Não é provável que os três partidos assinem novos acordos que se concentrem em grandes reformas para modernizar o nosso sistema educativo, reforçar o papel dos cuidados de saúde primários, dar nova força à contratação coletiva ou regionalizar o país, só para me manter nos quatro exemplos que dei. Mas seria a forma disto ser mais do que um plano de emergência antes de todos voltarem às suas vidas, com mais uma década de perdas para os trabalhadores, degradação dos serviços públicos, privatizações e aumento da desigualdade social.
A esquerda portuguesa conseguiu vencer um tabu, devolveu alguma normalidade ao país e fez de Portugal uma ilha de sanidade na Europa. E isso é já um feito. Mas não conseguiu projetar-se para o futuro. Foi o que se esperava que fosse, muito melhor do que tínhamos e do que provavelmente viremos a ter, mas aquém do que seria possível.
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