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sábado, 25 de novembro de 2017

Hoje é um dia reservado ao veneno

por estatuadesal

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 24/11/2017) 

nicolau

Desculpem mas hoje é um dia reservado ao veneno. Os despedimentos podem ser necessários numa indústria em crise global mas constituem sempre uma tremenda violência. Nós, jornalistas, que escrevemos muitas vezes mecanicamente sobre os despedimentos nas mais diversas empresas, só sabemos verdadeiramente o que eles significam quando nos batem à porta, quando vemos as cadeiras que vão ficando vazias nas redações, vozes conhecidas que deixamos de ouvir, conversas de corredor que não voltarão a acontecer.

Desconhecemos em toda a sua dimensão o terramoto que os despedimentos provocam nos que estão sozinhos ou nos que têm filhos pequenos ou nos que têm de ajudar os pais e dependem dos seus salários para isso. Desconhecemos em toda a sua dimensão o choque brutal que são os despedimentos para quem deixou a pele, o suor, o sono para correr atrás do sonho de fazer a grande reportagem, de concluir uma investigação, de conseguir a noticia em primeira mão. Desconhecemos em toda a sua dimensão o impacto avassalador para quem é afastado violentamente de colegas, de amigos, da sua segunda casa onde passaram dez, doze ou mais horas por dia, semana atrás de semana, ano atrás de ano dos últimos dez, vinte ou trinta anos. Desconhecemos em toda a sua dimensão o nojo, a revolta, o vómito que sente quem é alvo de um despedimento. Não há palavras que exprimam as metástases que um despedimento provoca. Por isso, socorro-me de António José Forte e do poema que escreveu em 1958, com o título “Reservado ao veneno”.

Hoje é um dia reservado ao veneno

e às pequeninas coisas

teias de aranha filigranas de cólera

restos de pulmão onde corre o marfim

é um dia perfeitamente para cães

alguém deu à manivela para nascer o sol

circular o mau hálito esta cinza nos olhos

alguém que não percebia nada de comércio

lançou no mercado esta ferrugem

hoje não é a mesma coisa

que um búzio para ouvir o coração

não é um dia no seu eixo

não é para pessoas

é um dia ao nível do verniz e dos punhais

e esta noite

uma cratera para boémios

não é uma pátria

não é esta noite que é uma pátria

é um dia a mais ou a menos na alma

como chumbo derretido na garganta

um peixe nos ouvidos

uma zona de lava

hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo

com sirenes ao crepúsculo

a trezentos anos do amor a trezentos da morte

a outro dia como este do asfalto e do sangue

hoje não é um dia para fazer a barba

não é um dia para homens

não é para palavras

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