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sábado, 25 de novembro de 2017

Há jornalistas que querem o poder da PIDE


(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 24/11/2017)

Daniel

Daniel Oliveira

Um jornalista pediu para ter acesso a escutas sem qualquer relevância para o processo onde estão milhares de horas de conversas de Sócrates com deputados, ministros e jornalistas. Quer o que qualquer polícia política costuma ter: a capacidade de fazer escutas e usá-las politicamente contra os escutados.


Habituei-me a assistir à confusão de muitos que julgam que defender o rigor num processo judicial é apoiar o comportamento do arguido ou acusado. Uma confusão típica de quem acredita que a provável culpa de um criminoso suspende as regras do Estado de Direito. Por isso, não me preocupo com aqueles que me tratam como apoiante de Sócrates, alguém em quem nunca votei e que nunca apoiei, em quem nunca poderia ter votado e nunca poderia ter apoiado.

O que muitas vezes me levou a criticar a gestão pública do processo de José Sócrates nem foi propriamente a violação dos seus direitos. Foi um casamento perigoso entre a imprensa tablóide, que põe os interesses comerciais à frente de qualquer regra deontológica, e o poder judicial, a quem damos instrumentos excecionais que têm de ser preservados. Dito de forma mais clara: uma coisa é dar a quem investiga a capacidade de escutar telefonemas, ler mails e mensagens e violar, dentro dos limites legais, a privacidade dos cidadãos. Outra, bem diferente, é esses instrumentos serem facultados à imprensa, seja ela tablóide ou não. Bem sei que a privacidade é um valor em vias de extinção, mas ela é uma condição para a liberdade.

A semana passada ficámos a saber, através da “Sábado”, que um jornalista assistente no processo (a lei portuguesa permite-o) pediu para ter acesso a todas as escutas da “Operação Marquês”. A vontade de nos informar não chegou para a “Sábado” nos dizer quem é esse jornalista. Sabemos que o jornalista quer ter acesso a escutas que nada têm a ver com a acusação e que apenas não foram destruídas porque podem, de alguma forma, vir a ser solicitadas pela defesa. Nessas escutas estão milhares de horas de conversas do antigo primeiro-ministro e antigo líder do PS com deputados, ministros, jornalistas, aliados, adversários. Pessoas que não têm qualquer tipo de cumplicidade criminal com Sócrates e eram, na sua esmagadora maioria, totalmente desconhecedoras do seu alegado comportamento.

Como é evidente para qualquer pessoa normal, a proteção da privacidade destas pessoas (já nem sequer estou a discutir a de Sócrates, a quem não foram retirados direitos constitucionais) não pode ser beliscada quando não está em causa nenhum elemento relativo à investigação. Todos percebemos o que quer o jornalista: ter acesso a um instrumento de investigação política ilegítimo, para, através da divulgação de conversas privadas, embaraçar os envolvidos. O que deseja é o que qualquer polícia política costuma ter. Talvez seja difícil alguns jornalistas perceberem, mas escutar telefonemas não faz parte do que consideramos aceitável como forma de investigação jornalística. Pelo menos se ela tiver como conteúdo questões estritamente políticas. Os jornalistas não são investigadores criminais nem juízes. Não têm nem podem ter acesso aos mesmos instrumentos de investigação.

Segundo a mesma “Sábado”, o juiz Carlos Alexandre, em mais uma exibição de total ausência de critérios de respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, aceitou este pedido. Mandou o Ministério Público entregar a um jornal milhares de horas de conversas telefónicas de cariz político que não foram transcritas por não terem qualquer relação com a matéria em investigação. O MP anda a adiar a entrega. E faz bem. No dia em que estas escutas forem publicadas na imprensa começaremos a perguntar se podemos dar este poder de nos escutar à Justiça. Ele foi pensado para investigar e combater o crime. Não pode existir se tiver como função a intriga política e a venda de jornais.

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