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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Marcelo imitador de Cavaco

Estátua de Sal

por estatuadesal
(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 31/10/2017)
Marcelo imita Cavaco
Marcelo, nos sermões dominicais e ao longo de anos, foi repetindo com exuberante gozo que Sócrates nada podia contra Cavaco porque um primeiro-ministro está condenado a perder quando ataca o Presidente da República. E assim foi, tendo Cavaco sido reeleito apesar de ter lançado, explorado e defendido uma golpada mediática a partir da Casa Civil para tentar influenciar as eleições legislativas de 2009. Não há registo de que Marcelo tenha criticado Cavaco nesse episódio, nem aí nem nas restantes ocasiões em que desse vergonhoso Presidente da República veio um concertado esforço para fragilizar o Governo e o PS, favorecendo às escâncaras o PSD de Ferreira Leite, primeiro, e o de Passos, por fim, num processo que afundou Portugal no resgate em 2011 e em 4 anos de uma violenta e eleitoralmente ilegítima tentativa de reengenharia social a coberto da Troika. A visão de Marcelo sobre Cavaco foi tecnicamente maquiavélica, vendo na sua acção aquilo que devia ser feito precisamente porque a sua posição na hierarquia do Estado lhe dava impunidade para tal. A Constituição, a moral republicana e o respeito institucional? Balelas para agitar em frente ao Zé Povinho, ensinava Marcelo com o seu riso sardónico. O príncipe que tente ser bonzinho, e jogue ao poder respeitando as regras a que os ingénuos dão valor, será cuspido pela janela do palácio enquanto o Diabo esfrega a pestana.
O que Cavaco fez a Sócrates foi não só muito diferente como de outra ordem por comparação com o que Soares fez a Cavaco. Soares Presidente fez oposição a Cavaco primeiro-ministro também às claras, só que mantendo a dignidade do cargo, sendo decente na luta política e não tendo violado a Constituição. Por aí, a arquitectura do regime funcionou perfeitamente num sistema que permite ao Chefe de Estado reequilibrar a representatividade política calhando o Chefe de Governo estar a ultrapassar certos limites sociológicos. A “Presidência Aberta” de Soares consistiu na utilização do seu capital divulgador para introduzir no espaço público e na arena política uma realidade social que estava escondida pela maioria parlamentar e pelo Executivo laranja. Nesse sentido, foi um confronto leal e de acordo com o interesse da comunidade. Já Cavaco Presidente optou pela via conspiracionista e golpista para liderar a oposição a Sócrates. A estratégia do “Falar verdade ao portugueses” e da “Política de Verdade”, um tandem entre Belém e o PSD de Ferreira Leite, alimentava-se e promovia as campanhas negras que tentavam assassinar o carácter de Sócrates e de qualquer outro dos seus próximos, fossem políticos ou familiares. Falhando esse plano, e apesar do golpismo judicial-mediático do processo “Face Oculta” e da “Inventona de Belém”, Cavaco ofereceu o poder a Passos logo depois de garantida a sua reeleição. Fê-lo escavacando o interesse nacional que o PEC IV salvaguardava e partindo para um mandato onde foi cúmplice activo dos abusos constitucionais e da fúria castigadora de Passos e Portas. Cavaco é recordista dos índices mais baixos de popularidade para um Presidente da República em democracia. Abandonou as funções consumido pelo rancor e mergulhado numa hipocrisia sem fundo conhecido.
Marcelo teve no seu primeiro ano e meio de mandato a supina oportunidade para se demarcar do legado do seu antecessor. Se bem o pensou, melhor o fez. O seu longo treino na televisão, onde ascendeu rapidamente ao estatuto de super-estrela pelos seus dotes comunicacionais e relevância do seu pensamento, aliado à sua personalidade extrovertida e calorosa, foram um contraste chocante face à imagem de ressabiamento e fixação anal espalhada por Cavaco. Para além das diferenças de estilo, as diferenças de sentido de Estado e visão política foram igual ou ainda mais chocantes, revelando-se intransigente na defesa do interesse nacional ao lado do Governo; para crescente desespero da actual direita decadente que apenas pretendia ter um líder sectário na Presidência. Choques positivos, construtivos, fontes de confiança nas instituições e de reconciliação com a classe política – e parte inerente do sucesso registado até agora na economia nacional e na mudança de paradigma no trato dos portugueses e dos serviços públicos que os servem. Símbolo trivial desta nova cultura política nascida da mudança de actores no topo do Estado, há 10 meses Marcelo elegeu o termo “descrispação” como palavra do ano. E daqui saltamos para o seu número de 17 de Outubro.
Hoje sabemos que Marcelo traiu o Governo e foi oportunista, cínico e manipulador como nunca antes tínhamos visto na política nacional dada a sofisticação e eficácia da sua performance tendo duas devastadoras tragédias a comporem o cenário. Transformou sem a menor hesitação os mortos em arma de arremesso político, exactamente como se fez no PSD, CDS e comunicação social desde Pedrógão.
Todos os que o aplaudiram, vendo nas suas palavras o exercício da função presidencial elevada ao mais brilhante sentido de missão unificadora, têm agora de questionar o seu próprio discernimento. Porque aquele ataque ao Governo, ao primeiro-ministro e à pessoa de Constança Urbano de Sousa não tiveram qualquer outra finalidade que não fosse a de encenar uma liturgia onde ele podia fazer as pazes com a direita e agregar a comoção nacional no culto da sua pessoa. Aquele ataque não era necessário para nada de útil que tivesse relação com os fogos e sua devastação, foi um ataque escolhido para maximizar as circunstâncias de fragilidade – ou tipologia – comunicacional de Costa. Situação agravada pela crispação que Marcelo se encarregou de alimentar pessoalmente ao começar a responder às notícias da demorada reacção do Governo e do PS, e dando carta branca para que a sua Casa Civil igualmente lançasse mais gasolina no fogaréu da crispação com declarações provocatórias e soberbas. E isto leva-nos de volta a Cavaco.
Marcelo continua convencido de que poderá desequilibrar o regime a sua favor, tanto pela configuração do mesmo como pela sua habilidade popular, mas igualmente poderá estar desatento em relação ao seguinte fenómeno: com Cavaco, a figura de Presidente da República ficou conspurcada e perdeu o prestígio que tivera antes do Aníbal ter ido para Belém perverter o combate político. A profundidade desta perda de autoridade, a qual não carecia de actores e seus espectáculos para existir (Eanes e Sampaio foram a antítese da política-espectáculo, e Soares era um animal político sem carência de artifícios), poderá reservar a Marcelo uma das maiores surpresas da sua vida política caso Costa e o PS tenham a coragem, e a inteligência, de levarem a luta política contra a direita para o mais inesperado dos terrenos. Esse mesmo onde Marcelo se imagina num castelo inexpugnável com o povo em festa à espera do beijinho, do abracinho e da palavrinha.



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