Ladrões de Bicicletas
Posted: 22 Dec 2017 07:22 PM PST
No contexto da discussão do OE de 2018 e do descongelamento das carreiras da administração pública, o setor mais sacrificado pelo «ajustamento», ressurgiu o discurso sobre os privilégios dos funcionários públicos face aos do privado. A propósito dos professores, por exemplo, Lobo Xavier, referiu-se à existência de «dois sistemas»: o sistema «onde as pessoas podem fazer greve, fechar as escolas e pedir que o decurso do tempo lhes acrescente vencimentos» e o das «pessoas que sofrem desemprego (...) e que só progridem por mérito». Na mesma linha, Marques Mendes considerou que «para o país ligado ao Estado, parece que a austeridade acabou», ao contrário do «outro país, o do setor privado, dos trabalhadores por contra de outrem, dos trabalhadores independentes», que não viam «essa melhoria».
Um primeiro equívoco tem que ver, como mostra o gráfico, com a evolução do mercado de trabalho nos últimos anos. Ao contrário do que Marques Mendes supõe (ou prefere pensar), o setor público encolheu bastante mais que o privado. No período mais pesado do «ajustamento» (2011 a 2013, em valores homólogos para o 4º trimestre), o emprego na administração pública caiu -7,3%, bem acima da redução registada no privado (-3,8%). O mesmo sucede nos dois anos seguintes de vigência do anterior Governo, isto é, entre 2013 e 2015: enquanto o emprego privado regista já uma recuperação de +2,9%, o emprego público permanece em queda (-2,3%). E se analisarmos a variação homóloga para a média dos três primeiros trimestres, entre 2015 e 2017, a recuperação do emprego é mais significativa no privado (+5,5%) que no público (+1,9%). Não por acaso, aliás, a percentagem de emprego público no total da população empregada passa de 18,5% em 2012 para 16,4% em 2017.
Um segundo mito sobre os «privilégios da função pública» tem que ver com a ideia de que no privado se verificam menos progressões e promoções que na administração pública. Ora, o que um estudo recente do INE às empresas privadas veio mostrar é que, em 2016, 56% dos trabalhadores sem funções de gestão foram promovidos e que, no total (com e sem funções de gestão), 45% dos trabalhadores do setor privado tiveram prémios de desempenho. Isto num ano em que as progressões da função pública e a materialização dos resultados das avaliações de desempenho continuavam congeladas. Tratando-se de um inquérito inédito, não sabemos o que terá acontecido no setor privado em anos anteriores, mas não é despropositado considerar que se tenham registado valores idênticos (pelo menos em 2015).
As diferenças salariais são uma terceira ideia de senso comum sobre o alegado desfavorecimento do setor privado face ao público. Nestes termos, os trabalhadores do Estado, tendo melhores salários (e sendo esses salários pagos por todos os contribuintes), saem injustamente beneficiados («vivendo à custa do privado», para usar a linguagem da mesa de café ou daqueles programas em que o Camilo Lourenço participa, sempre sem contraditório). Sabemos, porém, que os patamares salariais em Portugal refletem, em grande medida, os diferentes níveis de qualificação escolar. Em 2015, por exemplo, a remuneração média de um trabalhador com o ensino superior era muito próxima dos 2 mil euros, sendo a de um trabalhador com o ensino secundário quase metade e a de um trabalhador com o ensino básico inferior a metade. Ora, considerando estes valores, e comparando a distribuição das qualificações no público e no privado (gráfico aqui em cima), percebe-se melhor, pelo menos em parte, a razão de ser das ditas «diferenças salariais».
Não se pense contudo que todos estes dados devam servir para colocar os trabalhadores do setor privado contra os do público (ou vice-versa). Essa é a lógica da direita que nos governou e que está hoje na oposição. E quanto a ela, não deixem de ler o recente artigo de Pacheco Pereira, sobre «o amor da direita radical pelos trabalhadores do setor privado». Perceberão melhor porque é que a ideia é sempre a de «puxar para baixo» (aproximando os padrões laborais do emprego público aos do privado), e porque é que esta direita - que não é social-democrata nem democrata-cristã - se opõe sempre, todos os anos, à subida do salário mínimo nacional.
Sem comentários:
Enviar um comentário