(In Jornal Tornado, 21/12/2017)
… Tolhem a democracia…
A Democracia sofre. Sofre de uma dessas doenças raríssimas. Os diagnósticos são vastos.
Há um doutor em cada um de nós que brande estetoscópios e seringas mas que não distingue uma artéria de uma veia, uma clavícula de um fémur, um ânus de uma fissura de pele. Somos confrangedoramente ignorantes – e chegamos a agradecer injeções na testa, se isso nos trouxer uma mais-valia qualquer, nem que seja a brevidade de um aplauso.
Mergulhados que estamos numa cultura que nos tornou incultos, andamos pela floresta a foçar e confundimos dejetos com turfas.
Tornámo-nos criaturas engelhadas. Velhos acabados muito antes do tempo. Povos apanhados pela raríssima progéria (o síndrome de Huntchinson-Gilford que é uma enfermidade genética extremamente rara cujos sintomas se assemelham ao processo do envelhecimento manifestando-se logo nos primeiros anos de vida).
Descobrimos que a Direita não nos serve para nada, pois faz apenas a cama dos poderosos, agindo e roubando em seu nome, e que a Esquerda nunca recuperou da humilhação da História, de quando os seus representantes reinventaram o extremismo totalitário e encheram o mundo de miséria e morte, com práticas de Direita mas linguagem panfletária de Esquerda.
Ainda nem há meio século, a “década vermelha” somava as lutas de libertação nacional (Vietnam e Palestina, em especial), do movimento mundial da juventude estudantil (Alemanha, Japão, Estados Unidos, México…), das revoltas de fábrica (França e Itália) e da Revolução Cultural na China. Ainda não há meio século, Portugal era um império a estrebuchar na ponta final de uma História que de gloriosa passara a um ultimo reduto vergonhoso de falhanços que uma ditadura de títeres mascarara tanto tempo.
Ao disparatado percurso da Esquerda histórica, a Direita brandia uma propaganda eficaz: o capitalismo era a única via alternativa, a ordem do capital devia situar-se num parlamento de práticas agradáveis aos mercados, o povo é sereno e deve sair de casa para procurar o salário mínimo e as boas graças do merceeiro que, época a época, seja a referência da moral e dos bons costumes, seja ao balcão da mercearia, seja na trincheira bem cava de uma Fundação altruísta e decisora.
A sociedade de consumo fascinou os pequenos consumidores, que fazem a despesa na loja chinesa do bairro, fascinou os médios consumidores, que se meteram em negócios mais ou menos claros para ter o carro de marca, fascinou os grandes consumidores, que se alimenta, dos pequenos e dos médios consumidores para alargar o perímetro do ventre e das suas propriedades materiais. Os franceses têm um nome para esta análise, a nova filosofia. Nela encontramos o registo de todos os disparates produzidos pelos norte-americanos e exportados para o mundo:
os argumentos do anticomunismo dos anos 1950, que divulgam como os regimes socialistas são despotismos infames, ditaduras sanguinárias; dentro da ordem do Estado, devemos opor a esse “totalitarismo” socialista a democracia representativa, que é imperfeita, sem dúvida, mas é de longe a forma menos má do poder; dentro da ordem moral, filosoficamente a mais importante, devemos pregar os valores do “mundo livre”, cujo centro e fiador são os Estados Unidos; a ideia comunista é uma utopia criminosa, que, tendo fracassado em todo o mundo, deve ceder o lugar para uma cultura dos “direitos humanos” que combine o culto da liberdade (inclusive, e em primeiro lugar, a liberdade de empreender, possuir e enriquecer, fiadora material de todas as outras) e uma representação vitimária do Bem.”
Em Portugal, com uma tacanhez provinciana que chega a ser confrangedora, fomos desperdiçando Abril e a Democracia que podia ser inovadora.
“Vai-se” para a política para fazer fortuna; desfila-se em carros de grande cilindrada pagos por instituições que apenas precisavam de um meio de transporte para fazer o que por vezes nem fazem, traficam-se influências à descarada, enchem-se as gavetas de colarinhos brancos com nódoas de crime de gravidade variável.
Não sei quem paga as viagens do Presidente, sei que está em toda a parte – coisa que nem o mais habilitado Deus consegue!
Há sacos azuis em todo o lado.
Há gestores públicos que exibem os seus sinais exteriores de riqueza e que fintam a legalidade com artimanhas de grande mestria, pois é famosa a sinuosidade dos fora da lei.
Nega-se a dignidade ao ser humano – o trabalho – o pão! -, a saúde, a educação, a paz. Em seu lugar alguns recebem pequenas esmolas, subsídios, ilusões.
Desfazem-se os bons nomes na praça pública – porque a intensidade dos recalques de cada um de nós é tão grande que, como a do pobre homem que se tornou carrasco só pelo prazer de poder matar as suas incapacidades atrás de um capuz que lhe esconda a cara, somos vítimas da nossa mais profunda frustração.
Mantêm-se os maus nomes na praça pública, porque é mais fácil rosnar no beco do que agir na rua principal. Defendemos grandes causas – abaixo o Acordo Ortográfico!!! – e viramos as costas às pequenas – a dignidade de uma vida que não se repetirá.
Conheço e reconheço políticos honestos. Conheço e reconheço políticos desonestos. Lidei com crianças azedas das Jotas partidárias que procuravam o suborno e a negociata a qualquer preço.
Mas os males da Democracia não vêm dos políticos. Vêm dos povos que os elegem, mantêm, adulam, alimentam, permitem. E sobretudo dos povos que negam ser políticos – confiando os seus destinos a meia dúzia de mãos por vezes pouco limpas.
Por isso a Democracia sofre de uma dessas doenças raríssimas. Sofre dos que lhe viram as costas à hora do voto, dos que lhe viram as costas à hora da justiça, dos que a impedem de ser… Democracia: o governo do povo, como a utopia bem define na sua origem.
Precisamos de policiar a Democracia. Antes de ser necessário mandar a Judiciária a casa deste ou daquele, para buscas ou agitações. Sim; precisamos. Mas nunca tornando-a um lugar de bufos e justiceiros de pacotilha.
A arma mais eficaz não tem cano, nem bala, nem pólvora, nem raio laser. A arma mais eficaz somos nós, nunca sozinhos.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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