Ladrões de Bicicletas
Posted: 02 Dec 2017 02:20 PM PST
O texto de David Crisóstomo sobre a putativa ida de Mário Centeno para a chamada presidência do chamado Eurogrupo tem a virtude de avançar com uma hipótese que permite clarificar ainda mais a discussão, talvez contra a vontade do seu autor: “se Centeno nos amarrar [à austeridade] é porque se calhar até concorda com isso e então, más noticias camaradas, temos um problema no Ministério das Finanças agora”.
É claro, como David Crisóstomo saberá porventura melhor do que eu, que a esquerda sempre teve um problema real e outro potencial no Ministério das Finanças. A questão não é pessoal, claro, é antes político-institucional. Esta ida para o Eurogrupo só tornará esta realidade mais saliente, se bem que a razoável conjuntura num contexto de preferências adaptativas possa eventualmente permitir ir gerindo por cá as necessárias tensões.
Da erradamente chamada estabilização do sistema financeiro à quebra do investimento público, sempre tivemos um problema real que se manifesta também da saúde à educação, passando por outros serviços públicos sob pressão. Foi de resto por aqui que Centeno terá conquistado a confiança de quem manda a norte. Mais concretamente, logo por ter aceite que Portugal continuasse a ser uma cobaia bancária no caso Banif, mesmo alardeando a sua discordância. E lembrem-se do que Centeno, já em modo Dijsselbloem, disse sobre o sucesso que tem sido a Grécia.
Mas alguém tem alguma dúvida que Centeno fará o mesmo cá ou lá se tivermos outra crise da zona euro mais ou menos semelhante, independentemente de eventuais e irrelevantes estados de alma? Felizmente, temos evitado este problema potencial, mas convém não fiar num país periférico, frágil e vulnerável, brutalmente endividado em moeda estrangeira.
Por esforço realista, defendi no texto anterior que Centeno não terá de se adaptar muito ao peso das estruturas europeias e do directório das potências, de Merkel a Macron, que de resto já terá dado o seu sintomático assentimento. Não podemos perder de vista o seu perfil ideológico, incluindo as suas posições neoliberais em matéria laboral, que, já agora, imagino não sejam irrelevantes na falta de vontade governamental em superar a herança da troika e na confiança que tal gera nos erradamente chamados parceiros europeus (como se isto fosse um debate e entre iguais). Entretanto, é evidente que, em última instância, a força de Centeno no governo sempre foi função das regras que inscrevem o fundamental do Consenso de Bruxelas nas políticas públicas. O que apesar de tudo vai contra a sua lógica, da reposição dos feriados à subida do salário mínimo, tem sido resultado das pressões das esquerdas soberanistas.
Desculpem eventualmente contribuir para estragar a festa, mas estou mesmo farto dos danos que o voluntarismo europeísta, também patente na intervenção de hoje de António Costa, tem causado às esquerdas e sobretudo aos povos dos Estados que estas têm, supostamente, a obrigação de defender sempre.
Adenda. Aproveito para relembrar um texto premonitório de João Ramos de Almeida, de final de Maio, sobre um revelador artigo de Centeno no Público, que ganha em ser relido agora: “Vai dar com os burrinhos na água. E, pior do que tudo, nós também”.
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