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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Foi-se o “tirano” ficou o “pai”

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/01/2018) 

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Também no mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, que esta quarta-feira completou dois anos, há um antes e um depois dos incêndios. Antes, era a solidariedade institucional, o que o levou a ser muito criticado por políticos e comentadores de direita enquanto era amado pelo povo de direita. Depois, vieram os recados e pequenas farpas para o Governo, o que o leva a ser criticado por políticos e comentadores de esquerda enquanto é amado pelo povo de esquerda. Há, no entanto, traços comuns ao antes e ao depois. São os que interessam. Não estando dependentes de ciclos políticos, são eles que nos dizem o que esperar dos próximos anos.

A definição mais consensual para este Presidente tem sido a do “Presidente dos afetos”. Não seria difícil este perfil depois de um Presidente distante, crispado, autoritário e autossuficiente. Marcelo compreendeu bem o temperamento português. Mais do que a bonomia de Soares, que também era a seu tempo apreciada e de que Marcelo também é um bom exemplo, o atual Presidente destaca-se como ombro amigo no momento de dor e sofrimento. Não preciso de apelar aos clichés sobre os portugueses para sublinhar o óbvio: a alma pátria pela-se por uma boa choradeira. E Marcelo está lá sempre. Mesmo não acreditando em categorias identitárias emocionais para definir um povo – e eu não acredito –, os mitos ajudam a criar uma estética. O papel de José na manjedoura, que as gentes que mais sofreram com os fogos lhe reservaram neste Natal, ajuda a explicar que lugar ocupa Marcelo no imaginário nacional.

O vínculo emocional que une o Presidente aos portugueses é intrinsecamente positivo. Não há liderança democrática sem ele. Não há, aliás, liderança sem empatia. A democracia não é apenas um conjunto de regras e processos, apesar de eles serem um elemento central da sua legitimidade. É também uma adesão voluntária que depende de uma ligação emocional entre representantes e representados. Ter, na Presidência da República, alguém de que as pessoas gostam (e não apenas que apoiam) é bom para as instituições democráticas. Mas este magistério emocional tem riscos.

O primeiro risco é o de retirar a racionalidade da política. Diz-se que Margaret Thatcher terá afirmado, um dia, que as pessoas já não queriam saber o que os políticos pensavam, só queriam saber o que os políticos sentiam. Não sei se o disse mesmo. Espero que sim, ou terá sido em vão que várias vezes citei tão sinistra figura. A forte mediatização da política, com um peso crescente da importância da imagem, torna a parte emocional e sensorial da dramatização política cada vez mais relevante. Marcelo tem levado isso até às últimas consequências - e não sei se sempre com ganho do debate político. Temos a sorte de estarmos perante um Presidente comprometido com os valores democráticos. Mas a verdade é que raramente ele apela à racionalidade do debate, quase sempre opta pela vinculação estritamente emocional à sua pessoa. Talvez seja assim com todas as lideranças carismáticas. O único problema é se elas não nos querem levar para lado algum a não ser para si mesmas. Temo que seja o caso.

O segundo risco tem a ver com este: Marcelo Rebelo de Sousa parece ser escravo da sua própria popularidade. A popularidade é o elemento fundamental de um político que dependa do voto. É ainda mais importante num Presidente da República, cuja latitude de poderes está limitada e depende em larga escala da sua capacidade de influência. Mas por vezes temos a sensação que, mais do que ter uma agenda própria, Marcelo a adapta aos humores, indignações e paixões coletivas de cada momento. Que Marcelo não lidera a opinião pública, é liderado por ela. Que é uma espécie de eco das redes sociais sem os insultos. Até agora isso não foi um problema. Mas tenho curiosidade para ver o comportamento de alguém que precisa de ser adorado se alguma vez tiver de contrariar o sentimento geral. No caso do financiamento dos partidos prescindiu, como então escrevi, de qualquer esforço pedagógico. Mas tinha, neste caso concreto, boas razões para o veto. Veremos como se comporta quando a emoção nacional e a razão política estiverem em evidentes campos opostos.

O terceiro risco é a banalização. Marcelo está em todo o lado, comenta tudo, tudo lhe merece igual atenção. Também nisto ele corresponde ao tempo que vivemos, marcado pelo fim da intermediação e correspondente hierarquização. É um Presidente que se entrega facilmente ao imediatismo, correndo riscos de que a sorte o tem salvo. O único caso caricato foi mesmo o da Cornucópia, quando, totalmente descoordenado do Governo, decidiu deslocar-se ao teatro para prometer o que não podia. Como eram coisas da cultura ninguém ligou muito. Mas um dia pode ser pior. Ainda assim, o Presidente da República, que é tudo menos parvo, tem mostrado que sabe quando não pode pisar ramo verde. O seu silêncio obstinado no caso da recondução da Procuradora Geral da República demonstra que a banalização da sua palavra não é um descuido, é uma escolha. Mas é um caso fácil, porque ele sabe à partida a relevância que virá a ter. Outros são mais imprevisíveis. E é difícil ter a última palavra quando se teve a primeira, a segunda e a terceira.

Por fim, há o risco de o árbitro se querer transformar num treinador. Cavaco correu esse risco, e o resultado foi desastroso. Não será por Marcelo ser muito mais popular que o perigo desaparece. O nosso sistema semipresidencial é, na realidade, semiparlamentar. O Presidente é o “chefe de Estado” mas tem, pelas suas funções, menos protagonismo político do que Governo e Parlamento. É verdade que o seu poder de influência, mais relevante do que os seus poderes constitucionais, depende, como o anterior Presidente tão amargamente descobriu, da sua capacidade de trasvazar as barreiras políticas e partidárias da sua eleição. Marcelo conseguiu e isso até levou, no primeiro ano do seu mandato, ao risco de termos um governo sob tutela presidencial pelo seu excessivo apoio. É compreensível que Marcelo queira ampliar a sua base de apoio. Qualquer político quer. A questão é saber se, por nunca sair do palco, isso não cria entorses no sistema.

Marcelo sucedeu ao mais impopular dos Presidentes e é impossível olhar para o tipo de intervenção que escolheu para si sem perceber que herdou uma instituição com a imagem degradada. Tínhamos um Presidente que nos sufocava com os seus sermões, passámos a ter um Presidente que nos sufoca com os seus abraços. Em qualquer dos casos, temos figuras tutelares e paternais. Não simpatizo com nenhum dos registos, mas convenhamos que o segundo é mais simpático do que o primeiro.

E que a transição do primeiro para o segundo devolveu à Presidência da República o prestígio que teve desde 1976 e que apenas Cavaco Silva interrompeu. Num tempo de crise das instituições democráticas isso só pode ser bom.

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