terça-feira, 30 de janeiro de 2018
O GOVERNO TEM DE ASSEGURAR O REGULAR FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES
O Ministério Público com o “caso Centeno” pisou manifestamente a linha vermelha, aquela linha que nas relações entre as autoridades de investigação criminal e os membros dos diversos órgãos de soberania separa a defesa do princípio da legalidade e da vinculação a critérios de objectividade da pura acção política. E quando assim acontece é o regular funcionamento das instituições que é posto em causa, cabendo ao Governo tudo fazer para o assegurar e garantir, tanto mais que essa é a única causa prevista na Constituição que permite ao Presidente da República demiti-lo.
Como já aqui foi dito, ninguém pode acreditar, a começar pelo próprio Ministério Público, que possa existir uma relação de causa e efeito entre uma isenção tributária (prevista na lei e de competência autárquica) e a oferta de dois bilhetes para assistir a um jogo de futebol num espaço exclusivamente reservado a convidados. Por outro lado, também não há qualquer identidade entre o beneficiário dessa isenção e o autor da dádiva. Portanto, por este lado, a investigação com vista à demonstração e posterior acusação de que haveria um recebimento indevido de vantagem estaria desde o início votada ao mais completo insucesso, só mesmo podendo a dita investigação prosseguir se houvesse um juiz de instrução criminal movido pelas mesmas razões que movem o Ministério Público, o que, a acontecer, apesar de ser gravíssimo para o prestígio e idoneidade da magistratura judicial, nem por isso deixaria de redundar no tal insucesso de que acima falámos, por não haver juridicamente outra resposta para esta bizarra situação.
Portanto, postos perante a investigação que o Ministério Público tem a seu cargo e dos contornos que ela tem assumido, é de esperar que na opinião pública, ou numa parte significativa dela, se tenda a fazer um juízo semelhante ao que é comum nos tais “comentários futebolísticos” a que ontem aludimos. E esse juízo é, obviamente, o seguinte: o filho do presidente do Benfica tinha um assunto “encalhado” na Câmara Municipal de Lisboa, ora como o Centeno é adepto do Benfica e é por vezes convidado para assistir aos jogos do clube no Estádio da Luz, nada melhor do que fazer suspeitar de que aquele “empurrão”, que permitiu ao filho de Vieira ver o seu assunto resolvido, tivesse sido dado por Centeno, que assim retribuiu, em eventual prejuízo do erário público, as amabilidades (interesseiras) que Vieira lhe prodigalizou. Ou seja, como ontem disse, não sendo possível acusar Centeno da prática de um crime e muito menos julgá-lo e condená-lo, já que isso seria juridicamente inviável, o que acaba por acontecer é atingi-lo na sua honorabilidade e integridade política, exactamente do mesmo modo que Passos e Cristas, ou seja, a oposição, pretenderam fazê-lo quando andaram durante mais de um mês à volta do “assunto da CGD”.
Mas aqui é que a questão se complica e muito: em primeiro lugar, para que esse efeito possa ser alcançado, posto que parcialmente, a investigação do Ministério Público e os seus contornos tem de ser amplificada pelo eco que dela é dado pela imprensa e demais órgãos de comunicação social. E como é que isto se faz? Primeiramente, filtra-se para a imprensa um email dirigido a Vieira, enviado pelo filho, agradecendo-lhe o “empurrão”; depois faz-se saber que Centeno pediu ao Benfica dois bilhetes para ver o Porto-Benfica da época passada (além da devassa em curso da correspondência do Benfica, há também toda a correspondência do clube apreendida nas buscas do MP, pelo que o conhecimento desse pedido só pode resultar de uma dessas duas fontes); a seguir o Ministério Público, depois de publicadas as primeiras notícias na imprensa do costume, faz saber publicamente que “está a acompanhar” o caso e cerca de um mês e tal depois emite uma nota anunciando que procedeu a buscas no gabinete do Ministro das Finanças, ficando a cargo dos jornais que recorrentemente publicam peças processuais ou trechos das investigações que o Ministério Público tem a seu cargo e à sua guarda, o trabalho de ilustrar os pormenores e qualificar essas buscas. A partir daí, os demais órgão de comunicação social vão dando conta do caso e discutindo-o, mantendo-o na ordem do dia. Só assim, com todo este aparato se pode tentar alcançar o objectivo acima assinalado.
Ora isto não pode ser permitido. De forma alguma. O Primeiro Ministro já hoje interveio num tom pouco habitual nele sobre este caso, que de facto seria ridículo, como ele próprio o qualificou, se não fosse dar-se a circunstância de ele ser muito mais do que isso. Ele representa um irregular funcionamento das instituições, sendo da competência do Governo garantir e assegurar o seu regular funcionamento.
Ora, como não há qualquer notícia de que hierarquia do Ministério Público tenha tomado posição sobre este assunto – como, de resto também não tomou relativamente a outros em que objectivamente não impediu, se é que não favoreceu, o julgamento dos investigados na praça pública – também não há que ter ilusões sobre o que a este respeito fará. Assim, para além da luta política que deve ser travada nos diversos quadrantes da sociedade portuguesa que se opõem a este estado de coisas, para que num futuro próximo se não vejam repetidos em Portugal exemplos que estão acontecendo noutros cantos do mundo, o Governo deve usar os instrumentos institucionais que tem ao seu alcance para actuar sem complexos nem receios de ser acusado de estar a interferir na acção da justiça, já que é exactamente disso que se trata: ou seja, O Governo deve assegurar que o Ministério Público participa correcta e legalmente na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania (a violação permanente do segredo de justiça com vista a servir objectivamente os interesses da investigação, nos múltiplos contornos de que essa investigação pode revestir, não pode deixar de responsabilizar quem tem o processo à sua guarda, representando essa permanente violação uma execução indevida e gravosa da política criminal definida pelos órgãos de soberania competentes); garantir que o MP exerce a acção penal orientada pelo princípio da ilegalidade democrática (constituindo uma violação deste princípio uma investigação que tenda a julgar na praça pública os investigados); bem como assegurar a vinculação da autonomia do MP a critérios de objectividade (impedindo que factos que jamais possam ser incriminados ou sequer objecto de uma acusação sejam fonte de investigações amplamente publicitadas nos órgãos de comunicação social com a inevitável consequência que dessa actuação resulta para a idoneidade e personalidade moral do investigado). O Governo tem de velar pela correcta execução destes princípios, sempre que eles não sejam respeitados ou sofram perigosas distorções.
Como não há, nem tem havido da parte da hierarquia do Ministério Público a preocupação de pôr termo a práticas desprestigiantes para a justiça portuguesa, o Governo por intermédio do Ministra da Justiça deve participar numa das próximas reuniões do Conselho Superior do Ministério Público para fazer uma comunicação sobre estes temas bem como para solicitar os esclarecimentos que considere necessários e dar dessa participação, bem como do seu conteúdo, público conhecimento.
Somente assim se defenderá o princípio da legalidade democrática consagrado na Constituição da República Portuguesa!
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